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Em Pauta

Ilustração: Marcos Garuti

O esforço para criar uma indústria em torno da realização de eventos ligados às artes em São Paulo visa, sobretudo, a atender a padrões internacionais de qualidade à altura de uma metrópole. O lado bom disso é que atingir o objetivo colocaria definitivamente a cidade no mapa das maiores capitais culturais do mundo. Mas como fica o apuro artístico em meio à busca por profissionalismo? Em artigos exclusivos, o professor Teixeira Coelho, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), e a socióloga Marcia Tosta Dias discutem o assunto.


Um choque de mercado (mais que um mercado chocante) - por Teixeira Coelho
O grande vilão da cultura e da política cultural no Brasil nos últimos anos, e em particular desde 2003, tem sido o mercado – aquilo que as indústrias culturais alimentam e que em troca as faz viver. “O mercado não pode ditar as regras do jogo cultural”, “a cultura não pode ser tratada como sabão” etc.

Tudo muito bem, tudo muito bom se não fosse por um detalhe: onde está o famoso mercado que de tudo é culpado? Certamente não no Brasil, onde não existe mercado de cultura e para a cultura, onde o mercado ainda é, mesmo neste início de século 21, incipiente, quando não inexistente.

Certos indicadores econômicos podem comprovar e explicar essa afirmação, com folgas. O PIB per capita no Brasil é de 4 dólares – muito abaixo daquele constatável em qualquer país desenvolvido (32 dólares nos Estados Unidos, 24 dólares no Canadá, 16 dólares na Espanha) e  abaixo mesmo de alguns países igualmente subdesenvolvidos, como a Argentina (8 dólares), México (6 dólares) e Polônia (5 dólares). Com um PIB de 4 dólares per capita/ano, é fácil imaginar que não sobra nem muito nem nada para a cultura. No Brasil, a maioria dos que vivem para a cultura não vive da cultura, com exceção de uma elite de atores globais, de intérpretes da música popular e de uma ainda menor elite de artistas plásticos. Dois escritores viviam aqui do que escreviam: Jorge Amado e Paulo Coelho. O primeiro morreu, agora só tem um. A maioria dos artistas plásticos faz outra coisa para viver. A tiragem dos jornais é ínfima e a dos livros, na média dos títulos, só faz decrescer.

Aquilo de que o Brasil precisa, na cultura, é um choque de mercado. Choque de mais mercado, não de menos mercado. O Estado nunca deu e nunca dará à cultura o necessário, menos ainda o desejável. Nem é desejável que o Estado se meta demais na cultura: quando o faz, a tragédia é historicamente certa. Há agora um movimento para exigir-se do governo federal 2% do orçamento nacional para a cultura, com a expectativa de que se vier 1% já será  fantástico – dá para imaginar, então, quanto do PIB vai hoje para a cultura. O mercado já deu coisas fantásticas à cultura: o jazz nasceu, sobreviveu e se firmou no e pelo mercado, Mozart se manteve graças a encomendas musicais, um número impressionante de obras-primas culturais no século 21, todos os gêneros misturados, veio do cinema – e o cinema é essencialmente mercado, indústria cultural, para Woody Allen, Fellini, Kurosawa ou Spielberg. Estados esclarecidos podem ser um refresco para a cultura.

Mas Estado esclarecido é artigo cada vez mais raro nas vitrinas da política, se me permitirem a imagem mercadológica. Abertura de horizontes e diversidade – aí está a palavra mágica de hoje – encontram-se mais no mercado do que em qualquer outra parte, mercado que é um motor mais decisivo e indispensável para a cultura do que se costuma pensar.

A construção de um mercado interno para a cultura é pauta imperiosa. Na economia em geral, essa já é a primeira lição de casa, para usar essa detestável expressão comum. Não logramos construí-lo ainda por aqui, na economia; mas carne de boi, soja, ferro e avião vendem-se facilmente lá fora, e assim, em época de moeda nacional fraca (o que é quase sempre) e cenário internacional favorável (nem sempre), as exportações mantêm a economia à superfície. As obras de cultura, essas não se vendem lá fora em nenhuma escala comparável à das commodities, dos produtos comerciais. As que têm a ver com a língua portuguesa, menos ainda. E, apesar do sucesso internacional da MPB, estamos longe de encontrar nessa rubrica, e menos ainda nas vendas do cinema ou das artes visuais, algo de substancial para sustentar a economia nacional como um todo, para sustentar a economia da cultura ou, simplesmente, para sustentar a cultura. Como se constrói um mercado interno cultural? Com uma economia forte, sem dúvida: sem troco no bolso não há cultura. Mas também com uma educação cultural e uma educação para a cultura – e não temos nem uma coisa nem outra.

Não temos ainda sequer a consciência do papel da cultura para o tal desenvolvimento sustentável de que tanto se fala, do ponto de vista ecológico, econômico e humano. A cultura não está, por aqui, no horizonte das preocupações políticas de governo. Na França e nos EUA, está. Talvez isso explique alguma coisa, embora não tudo.

Nesse cenário, as leis de incentivo fiscal à cultura jogam papel decisivo. Elas não são instrumento apenas do mercado e para o mercado, mas têm aí uma ação determinante. É bom não esquecer, antes de mais nada, que as leis de incentivo vieram num momento, 1985/1986, em que a sociedade estava farta da intervenção do Estado em tudo, inclusive na cultura, depois de 20 anos de ditadura, e que, nesse sentido, são uma conquista da sociedade civil. Teriam vindo, porém, é fácil ver isso hoje, mesmo que não tivesse havido ditadura. Estando aí, são instrumentos, não fins em si. Como instrumentos, precisam ser preservadas e desenvolvidas, corrigidos os desvios.

N
em tudo ao mercado, claro. A formação para a cultura é função, sobretudo, do Estado – e onde está ele? O apoio ao jovem criador cabe, antes de mais nada, ao Estado – e o que faz ele, num país onde as principais bolsas de estudo ainda são as estrangeiras? Embora mais freqüentemente parte do problema que da solução, alguma política cultural para a televisão, visando a amparar a produção autóctone, é praticada em vários lugares, com critério e bom gosto, de formas variadas e cada vez com menos xenofobia; mas a TV brasileira, aberta e por cabo, é uma selva de comerciais, em todos os sentidos da expressão: diante dela, o Estado, de qualquer tonalidade ideológica, tem fechado os olhos, e as razões para isso não são nada obscuras.

Tampouco o Estado, porém, deve carregar toda a responsabilidade e a culpa pelo constrangedor cenário cultural. A sociedade civil deve dar-se conta de que grande parte, talvez a maior parte do sucesso de uma cultura depende dela. Sobretudo a cultura que não encontra espaço no mercado. A sociedade civil precisa, ela também, vencer a preguiça intelectual que hoje a faz alinhar-se na ala dos propagadores de idéias feitas, como essa segundo a qual tudo deve ser apostado na educação. A educação, menos ainda a rala e medíocre educação que se impõe neste país, em todos os níveis, não tem condições para sustentar desenvolvimento algum, nem econômico, nem humano. A cultura tem. Educação é instrumento. Cultura é projeto. É outra coisa, outra história, e diante dessa história a sociedade civil – aqueles que podem pagar, aqueles que podem fazer pagar, aqueles que podem agitar a cena – tem sido, do mesmo modo, largamente omissa ou, no mínimo, inconstante na sua ação de mecenato.

As discussões no Brasil têm-se feito com aterradora freqüência, em todos os domínios, político, econômico e também cultural, de maneira fortemente rudimentar e com palavras chumbadas, equivalentes aos dados chumbados dos quais sempre se sabe de antemão quais números vão sair. A idéia do mercado como algo essencialmente negativo para a cultura é uma dessas idéias chumbadas. Não há e nunca houve oposição e, menos ainda, contradição de fundo, ontológica, entre mercado e cultura. Só aquelas cabeças que buscam obsessivamente o consenso e, mais ainda, a não discordância, a unanimidade, a uniformidade, buscam equacionar essas duas grandes incógnitas, o mercado e a cultura, de modo a supostamente fazer valer esta sobre aquele. As idéias mestras, hoje, são diversidade e, mais que isso, conflito. Próprio da cultura é o conflito. A cultura não tem medo do conflito com o mercado e não precisa ter, assim como o mercado não tem. Desse conflito tem saído coisa muito boa. Mercado e Estado, a criação autônoma e as indústrias criativas correm em raias próprias, não convergentes e não conflitantes. Não chego a dizer, propor ou esperar que corram em raias complementares. O importante é que corram. No momento, nem o mercado corre, nem o Estado...

Teixeira Coelho é professor titular de política cultural e coordenador do Observatório de Políticas Culturais, ambos na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)



Indústria cultural: expansão do mercado e possibilidades de acesso à cultura - por Marcia Tosta Dias
Desde meados dos anos 90, temos assistido à integração do Brasil ao circuito mundial de grandes espetáculos culturais. Tal inserção tem se mostrado cada vez mais sofisticada, tendo há muito transbordado o eixo São Paulo–Rio de Janeiro. Ao lado de grandes mostras e festivais de cinema, teatro, dança, moda e artes plásticas, em 2005 a cena musical apresentou um verdadeiro boom, recebendo atrações isoladas ou conjuntas, nacionais e estrangeiras, numa intensidade talvez nunca antes vista. Sem dúvida, tal incremento não pode ser entendido fora do contexto da grande sofisticação dos aparatos técnicos disponíveis e da profissionalização dessa área de atividade a que chamamos indústria cultural. Ademais, nos últimos dez anos, tem-se assistido a um aumento muito significativo de trocas culturais em âmbito mundial. Como entender melhor essa expansão?

Levando em consideração que em todas as áreas citadas é possível distinguir a dimensão cultural daquela do negócio propriamente dito, vale a pena relembrar algumas das características essenciais da indústria cultural, considerando que sua performance se incorporou de tal maneira à vida das sociedades que dela fazem parte como se lhes fosse natural. No capitalismo, a cultura constituiu-se como esfera de atividade autônoma – aos poucos tornada hegemônica –, em que poucos agentes se incumbem da produção e da difusão de bens e mercadorias culturais para um público cada vez mais amplo. Como forma e conteúdo, essa produção foi mesclando referências da cultura popular, da cultura erudita, de tipos variados de lazer e entretenimento, esferas antes distintas e portadoras de características socioculturais específicas. Com a indústria cultural, opera-se uma tendência cada vez mais envolvente de eliminação dessas particularidades (o que ocorre na esfera da produção) na busca de um consumo de massa para os produtos. Daí o cultivo da padronização estética dos produtos, considerando a necessidade de sua veiculação em determinados meios, como se observa com mais nitidez no rádio e na televisão aberta.

Evidentemente, a maioria das oportunidades de fruição desse tipo de cultura é mediada, em alguma altura do processo, pelo dinheiro: seja para a compra de um de seus meios reprodutores (TV, rádio, computador, telefone celular – os hardwares), seja para a dos formatos que contêm a informação cultural (os softwares – discos de todo tipo, vídeos e também os livros), seja para acessar diretamente os espetáculos de maneira presencial, por meio da compra de ingressos para cinemas, teatros, shows, exposições, concertos etc.

Atividades gratuitas são promovidas por algumas entidades públicas e privadas, mas sua ocorrência é pequena e seu alcance limitado a um espectador quase sempre esclarecido, que busca as informações sobre tais oportunidades e tem, sobretudo nas grandes metrópoles, boas condições de deslocamento. A questão do acesso, no entanto, se torna mais complexa, se considerarmos a atuação de meios como o rádio e a televisão aberta. Depois do investimento inicial na aquisição dos respectivos aparelhos reprodutores, o espectador tem contato com uma extensa programação considerada gratuita. Esse é o campo em que a indústria cultural atua com toda a sua potência e peculiaridade, oferecendo uma gama de atrações padronizadas, difundindo valores dominantes, se auto-referindo o tempo todo. É o espaço privilegiado para a interação de várias áreas da indústria cultural (novelas, música, publicidade etc.) numa programação única, compacta, que se mostra em alguns casos como obrigatória.

Mas, se o universo da produção cultural é, como se sabe, muito mais amplo do que aquele que se realiza nesse esquema, por que os milhares de ouvintes e espectadores parecem não ter outra escolha? O problema que se coloca é o do afunilamento operado pelos meios de difusão, e nesse âmbito se realiza uma das práticas ao mesmo tempo mais características e mais perversas da grande indústria cultural: a compra de espaços nos meios instituídos para a divulgação de seus produtos. A prática é conhecida pelo nome de jabá e era originalmente restrita ao rádio; espaços nas programações eram destinados à veiculação de determinadas músicas/artistas, de acordo com os interesses das gravadoras. Com a sofisticação das relações entre o marketing e os produtos culturais e o conseqüente ofuscamento entre suas fronteiras, a prática do jabá se naturalizou, se expandiu, se profissionalizou e se legalizou, represando, em torno de um determinado circuito de interesses, a programação a ser veiculada pela grande mídia. Nesse sentido, pode-se afirmar que o jabá é o espelho da indústria cultural.

Esse sistema vem sofrendo, no entanto, interessante pressão vinda do próprio desenvolvimento técnico da produção cultural de massa. Trata-se do advento e da larga atividade das tecnologias digitais e de sua parceria com a produção cultural, observada, sobretudo, na área da difusão da informação sobre cultura, via internet, e na área de produção musical. Marca da aceleração do processo de mundialização da cultura – uma das faces da globalização econômica –, a tecnologia digital tem permitido a agilização das trocas de referências e informações diversas, ampliando os horizontes culturais. Com relação à música, além de ter engordado o faturamento da indústria fonográfica nos anos 90, com o lançamento do formato CD, tem favorecido a aproximação do artista com o processo de produção, tornando mais acessíveis os estúdios e as formas de gravação. Essa quebra do monopólio da produção de discos, exercido historicamente pelas grandes gravadoras, teve o efeito polêmico de qualificar a ação da pirataria, provocando uma crise sem precedentes nessa área da produção cultural. Ao atingir “a galinha dos ovos de ouro”, a crise revelou causas mais amplas, ligadas a uma política cultural contrária à diversidade e à formação de um público ouvinte.

Mas a produção cultural, hoje mundializada, requer diversidade, como forma inclusive de atender a um mercado cada vez mais segmentado, no qual deve haver espaço para todo tipo de produto, de interesse potencial para todo tipo de consumidor. É nesse sentido que brechas importantes têm sido abertas e a fertilidade cultural, antes represada no acesso às formas de produção, ganha corpo e se posiciona diante de suas possibilidades de difusão. Se expandirmos o movimento para as todas áreas da cultura, poderemos certamente considerar que a multiplicação de espaços de difusão cultural responde, em certa medida, ao aumento da oferta de produtos a ser exibidos, bem como à existência de enorme demanda reprimida.

No entanto, isso não aponta de modo algum para o advento de um processo de democratização da cultura, por mais que se possa notar maior mobilização do poder público e de algumas instituições privadas nos sentido de incrementar a produção e o acesso. Todas as iniciativas ainda são poucas, considerando o público potencialmente interessado, que comparece às multidões quando há oferta de eventos gratuitos e mesmo em outros, de ingressos caros (dos quais as cotas de entradas com descontos se esgotam rapidamente). Há um inegável e amplo interesse por atividades culturais de toda sorte, facilmente verificado em todos os segmentos sociais.

Portanto, a expansão que se verifica no mundo da cultura enquanto business, e seu conseqüente aperfeiçoamento e profissionalização, tem ampliado as possibilidades de acesso à cultura por quem pode pagar, e pagar cada vez mais caro. Diversifica a atividade de grandes conglomerados financeiros, que, devidamente amparados pelas leis de incentivo fiscal, difundem cultura ganhando dinheiro. A atividade pode até não ser lucrativa, mas talvez ela devesse ser praticamente gratuita. No que diz respeito aos shows musicais, nacionais e internacionais, deve-se levar em conta que o aumento de sua oferta se mostra, para os músicos, como uma alternativa econômica à crise do mercado de discos.

Os benefícios culturais serão de fato construídos quando os agentes envolvidos nas várias pontas desse processo, que traz consigo inegáveis avanços, investirem objetivamente na formação cultural da sociedade, de modo a permitir a ruptura com os padrões estéticos cristalizados pela grande indústria cultural (e não sua mera fragmentação), potencializando, democrática e progressivamente as capacidades de produção e fruição de novas formas culturais por toda a sociedade.

Marcia Tosta Dias é socióloga e autora de Os Donos da Voz – Indústria Fonográfica Brasileira e Mundialização da Cultura (Boitempo Editorial, 2000)