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Neste mês se abre a temporada de homenagens ao músico gaúcho Radamés Gnattali, mestre na aliança entre o erudito e o popular que completaria 100 anos em 2006

Vale o risco: Radamés Gnattali é o músico mais completo da história da música brasileira.” É com essa frase que o músico, cineasta e documentarista Aluisio Didier inicia o livro Radamés Gnattali (Brasiliana Produções, 1996). A afirmação categórica é fruto de um intensa pesquisa, iniciada em 1983, em que Didier mergulhou na vida do mestre. O resultado de uma convivência de dez anos apareceu também em forma de documentário, Nosso Amigo Radamés Gnattali, em 1991. “Por seu talento e ecletismo, Gnattali deixou muitas marcas na música brasileira, seja como compositor, seja como arranjador ou pianista”, afirma o músico e documentarista, que trabalhou com grandes nomes da música brasileira, como Tom Jobim e Dorival Caymmi – e, claro, o próprio Gnattali. “Todos acabamos aprendendo muito com o músico, mas, sobretudo, com o homem desprendido e generoso que ele foi.”

Nascido em 1906, filho de uma pianista gaúcha e de um imigrante italiano radicado em Porto Alegre, Radamés foi envolvido desde cedo pela paixão que os pais nutriam pela ópera. Não à toa, os três filhos do casal receberam nomes ligados a esse universo: Radamés, Aída e Ernani, todos personagens de composições de Verdi. Ainda criança, Radamés aprendeu piano com a mãe e aos 9 anos ganhou um prêmio pela atuação como regente de uma orquestra infantil, que tocava arranjos feitos por ele. Aos 14, entrou no Conservatório de Porto Alegre para estudar piano e acabou dominando também a viola. Já por essa época, o adolescente, que mais tarde seria reconhecido por transitar com igual desenvoltura na música erudita e na popular, começou a freqüentar blocos de carnaval e grupos de seresteiros boêmios. Foi então que, devido à impossibilidade de levar o piano para essas rodas, se viu às voltas com o cavaquinho. “Radamés é, sem dúvida, do primeiro time da música clássica, e não só a brasileira”, afirma Didier. “E na popular, que ele nunca diferenciou da clássica em termos de nível artístico, ele teve uma trajetória singular.”

Para o violonista, compositor e arranjador Paulo Porto Alegre, que conviveu com Gnattali e há 25 anos executa a obra dele, a história mostrou a importância do músico gaúcho. “Ele se denominava um compositor neoclássico nacionalista, ou seja, modestamente se considerava um mero compositor brasileiro sem novidade alguma no plano formal e estrutural. Dizia que compunha por necessidade orgânica e achava que não tinha a menor importância. A posteridade desmentiu isso, pois quem conseguiu combinar o popular e o erudito da maneira magistral como ele conseguiu não fez pouca coisa”, explica Porto Alegre.

A pianista Rosária Gatti, que lança esse ano o CD 100 Anos de Radamés, só com composições do músico, também destaca o vanguardismo de Gnattali, em sua opinião o músico mais completo do Brasil. “Ele foi um grande inovador, ao dar um novo tratamento orquestral, tornando a música brasileira mais atraente. Tocava bem, era um excelente arranjador, maestro e compositor.”

O pioneirismo na forma como trabalhava com uma orquestra é outro destaque da personalidade artística de Gnattali, segundo o maestro Laércio de Freitas, que dirigirá a série de três shows previstos para os dias 27, 28 e 29 deste mês no Sesc Pompéia, em comemoração ao centenário do músico. “Ele foi praticamente o primeiro a trabalhar música brasileira usando a orquestra como instrumento”, diz ele.


Timbre do Brasil
Até se formar no conservatório, Gnattali estudou para ser concertista e no tempo que lhe sobrava tocava em cinemas e bailes, trabalho que lhe garantia o sustento. Em 1924, recém-formado, o jovem músico foi apresentar-se no Rio de Janeiro e nessa viagem conheceu o compositor e pianista Ernesto Nazareth, considerado um dos grandes nomes da música no Brasil daquela época. Foi então que Gnattali passou os dois anos seguintes entre Porto Alegre e Rio, sempre trabalhando com música erudita. No início dos anos 30, o gaúcho mudou-se definitivamente para o Rio, onde se deu sua estréia como compositor, com a apresentação de Rapsódia Brasileira, interpretada pela pianista Dora Bevilacqua. Por essa época, as dificuldades com a carreira de concertista pesavam nas suas finanças e foi então que resolveu investir no mercado da música popular. Com isso, deu o passo que marcaria seu trabalho para sempre. Em 1934, passou a ser o orquestrador da gravadora Victor e dois anos depois participou da inauguração da Rádio Nacional, onde ficou por 30 anos. Na Nacional, Radamés atuou como pianista, solista, maestro, compositor e arranjador, sempre usando sua bagagem erudita no trato com a música popular. A longa estada na emissora rendeu arranjos eternos, como o que criou para Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Na década de 70, ele viria novamente a contribuir profundamente para a música brasileira, reforçando o movimento de redescoberta do choro ocorrido quando jovens instrumentistas, como Rafael Rabello, Joel Nascimento e Maurício Carrilho, foram estimulados por ele a fazer releituras de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e outros expoentes do gênero.

O grande mestre da música morreu em 3 de fevereiro de 1988.


Melodias sem fim - Além da reconhecida polivalência no campo dos estilos musicais, Radamés Gnattali mostrou versatilidade profissional, ao conquistar o rádio, a TV e o cinema

A Conquista do rádio
Em 1943, o músico estreou o programa Um Milhão de Melodias na Rádio Nacional e criou a Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali, um dos maiores sucessos da Rádio Nacional, no qual o maestro tocava os arranjos que compunha. O programa foi também o primeiro a prestar homenagens a compositores como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Zequinha de Abreu.

A Sétima Arte se Rende
O cinema também se beneficiou de seu talento. São dele as trilhas de Ganga Bruta (1933) e Argila (1940), de Humberto Mauro, Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, e Eles Não Usam Black-tie (1981), de Leon Hirszman.

Na mira da TV
Em 1967, Gnattali foi contratado pela Rede Globo, onde trabalhou por 11 anos como arranjador, compositor e regente.


Música e músicos - Conheça a opinão do mestre sobre colegas, música e o ambiente de trabalho


Tom Jobim
“O Tom (foto) estava inseguro com a carreira, com esse negócio de compositor, enfim, numa fossa danada e veio me pedir um conselho. Eu já tinha passado por essa mesma fossa e disse: ‘Tom, deixa sair o que tem dentro de você. Se você ficar prendendo, não acontece nada. Não procura ninguém, porque ninguém vai te ensinar coisa nenhuma’. Ele chegou lá, né?”



Rádio Nacional
“(...) Não gosto muito de lembrar da Rádio Nacional, porque era uma exploração desgraçada. Exploravam os músicos e só quem ganhava bem era a direção, todo mundo rico, tomando uísque... A qualidade da música era da nossa responsabilidade: minha, do Léo Peracchi e Lírio Panicalli. Nós éramos responsáveis por tudo que tinha de bom e eles não sabiam nada, eram completamente ignorantes. O casting só era bom porque dava dinheiro. Todo mundo queria ouvir Orlando Silva”

Hermínio Bello de Carvalho
“Quando eu morrer, pode fazer o que quiser com minhas músicas, mas, por favor, não deixa o Hermínio colocar letra nelas”

Choro
“O Choro é o gênero mais evoluído da música brasileira. Existem milhões de choros, mas os bons são os do Pixinguinha. Bons por estar muito mais elaborados? Não, é porque ele é um sujeito genial, criou aquelas músicas e aquilo é o choro e acabou.”

Arranjos
“No trabalho de arranjador a gente aprende a economizar. Bota um bruta solo de piano, uma cifra, e está resolvido. A orquestra não faz nada, só uma bobagenzinha...”

Ary Barroso
“Ary Barroso é um grande autor porque compôs diferente, introduziu novas harmonias, na Aquarela do Brasil ele me disse pra eu botar aquela bossa no contrabaixo. ‘Não, Ary, deixa que eu faço o arranjo, não se mete nisso, não’. Botei no saxofone pra dar mais impacto, mas aquilo é dele”

Dorival Caymmi
“(...) Você vê o que ele faz harmonicamente, aquela simplicidade, só um sujeito com muita cultura musical pode fazer. Cada coisa fabulosa!”

Villa-Lobos
“(...) Villa-Lobos foi o primeiro a escrever música brasileira tirada do ambiente do folclore e do ambiente da cidade. Eu não gostava muito dele, mas não vamos discutir, já que ele é mesmo um gênio”

Pixinguinha
“(...) Pixinguinha (foto) era genial e foi o melhor flautista e compositor de choro que eu vi até hoje. Uma vez fiz um choro pra flauta chamado Tristonho e ele gostava tanto que dizia que era dele. Era meu amigo, muito bom sujeito, espiritualista e eu gostava à beça. Nunca ouvi Pixinguinha falar mal de ninguém”

Fonte: Radamés Gnattali, de Aluisio Didier (Brasiliana Produções, 1996)