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Ficção Inédita

por Índigo

Ilustração: Marcos Garuti

Um gato nunca pensaria em fincar as garras no rosto de uma pessoa e ficar pendurado ali: uma pata em cada bochecha. Não é confortável para eles. Gatos, isso eu aprendi, sempre pensam no conforto deles. Assim, quando eu saí correndo pela casa com um gato gordo cravado nas minhas bochechas, antes mesmo de me acudir, mamãe me deu uma bronca. Minha mãe tem raciocínio lógico porque ela trabalha com isso: lógica. Eu também sou boa em lógica e por isso nós nos damos bem. A não ser em casos como esse, quando eu me encontro em situações que fogem à lógica. Ao ver aquela situação, a primeira conclusão a que mamãe chegou foi que o gato não devia estar ali. Em seguida, ela deduziu que, se o gato estava ali, era por motivo de força maior: eu.

Em cinco anos, nunca o gato tinha se fincado em ninguém. Metódico como era, seria inconcebível pensar que foi tomado por um desejo repentino. Nada nele era repentino. Já, no meu caso, isso não era verdade. Na semana anterior eu tinha pulado o muro da casa da vizinha, o que resultou num ataque do cachorro deles, que abocanhou minha perna e só largou quando o filho da vizinha apareceu e deu uma vassourada na cabeça do animal. No hospital, eu admiti que pulei o muro por paixão. Eu amava o filho da vizinha. Mamãe e papai trocaram olhares e mamãe disse “Deus nos ajude”. Desde então, eu só ando de bermuda para que todos vejam a marca da mandíbula. Agora serão duas: mandíbulas na panturrilha e garras no rosto.

O bom de se ter marcas de ataque de animais selvagens é que na escola sua fama melhora astronomicamente. Mamãe cruzou os braços e ficou olhando para o animal pendurado no meu rosto. Se ela desse um grito e agarrasse o gato, ele se assustaria ainda mais e arrancaria meu olho. Ela teria de me levar para o hospital e eu ganharia um olho de vidro. Mamãe não me daria esse gostinho. A essa altura, meu rosto começava a arder por causa das lágrimas. Você conhece uma pessoa boa de lógica em situações que envolvem emoções fortes. Esse era um bom teste para mamãe. Assistir à destruição do rosto da filha é muito dolorido para uma mãe. A reação instintiva nessa hora é arrancar o gato. Isso seria errado. Mamãe me deu instruções. Primeiro, era para eu ficar calma. Depois, para eu me deitar no sofá. Fiz como ela mandou, o que foi bom, pois ao me deitar o gato sentiu-se aliviado. Recolheu as unhas e pulou para uma almofada. Gotinhas de sangue brotaram no meu rosto, em oito pontos, quatro em cada bochecha. Doeu. O gato deu meia-volta, esfregou o rabo no meu nariz e foi para a cozinha.

Mamãe também me deixou ali, estirada, com sangue escorrendo. O sofá era branco. Ela voltou em menos de um minuto com uma toalha. Jogou a toalha na minha barriga e saiu correndo de novo. Voltou logo em seguida com a farmacinha. Eu quis correr. Agora ardia muito. Gritei. Ela repetiu a primeira ordem: ficar calma.

A boa lógica diz que a coisa acabaria aí. No entanto, há um detalhe que ainda não contei. Nessa época eu tinha 13 anos de idade. A cada dia que se passava eu me tornava mais destrambelhada. Minha mãe também estava em idade de transição. Ela estava deixando de ser taurina para virar virginiana, o que podia ser muito perigoso. Meu pai era virginiano e passava álcool nos interruptores. No meu caso, a transformação era mais profunda. A dela tinha a ver com planetas. A minha, com hormônios em ebulição. No hospital, quando a enfermeira que tinha feito o curativo da mandíbula perguntou se eu estava satisfeita, eu respondi que estava. Mentira. Eu queria mais. Eu queria um pino.

O filho da vizinha era piloto de kart e tinha cinco pinos. Ele nem podia mais entrar em banco com a mãe porque não passava no detetor de metais. Ficava esperando no estacionamento, que nem bandido. Eu não tinha um kart, ainda. Eu tinha patins. Seria com patins mesmo. De preferência, na frente da garagem dele. A vizinha tinha cinco filhos homens, todos irresponsáveis. O meu era o mais novo. O mais velho dirigia uma caminhonete com pneus de tanque de guerra que se transformava numa arma letal. Foi meu pai quem falou da transformação em arma letal. Foi daí que me veio a idéia.

Demorou para conseguir o resultado desejado, mas no fim deu certo. Minha técnica era simples. Tentativa e erro. O portão eletrônico se abria e eu me escondia atrás da árvore. Os patins já estavam calçados. Ele esquentava o motor da caminhonete, fazendo um ronco cada vez mais alto. Quando o bairro inteiro já tinha notado que Roger ia sair de casa, ele engatava a ré e arrancava da garagem feito um míssil. Na rua, dava um cavalinho-de-pau e ia embora. Eu só precisava acertar o sentido e direção. Era quase uma aula prática de física. Às vezes eu passava um segundo antes de as suas rodas traseiras poderem me acertar. Às vezes eu passava depois. Mas o pior era quando eu podia ter acertado em cheio e na última hora brecava por instinto de sobrevivência. Daí eu me sentia como uma debilóide imbecil.

“É uma idiota!”, gritava Roger.

Ou idiota, dava na mesma. Eu voltava pra casa, jogava os patins na parede e ficava olhando para o restinho de mandíbula na minha perna. Estava cicatrizando rápido demais.

Todo dia, por mais que me esforçasse, eu escapava. Comecei a achar que eu era protegida por espíritos. Talvez eu fosse uma daquelas pessoas que acabam no Fantástico. Se as coisas continuassem naquele ritmo, dentro de alguns anos eu estaria dando tiro na cabeça, pulando do 20º andar, bebendo veneno no gargalo e me amarrando na linha do trem. Eu era imortal. Ou assim parecia ser.

Minha sorte mudou numa tarde de sexta-feira. Toda sexta-feira Roger e seus irmãos, incluindo meu amado, iam para a praia e só voltavam no domingo de madrugada. Se não fosse nas próximas horas, só na segunda-feira. A essa altura eu disparava na frente de qualquer objeto locomotivo que passava por aquela rua, inclusive pedestres. E foi aí que Deus me ajudou. Nessa rua passava ônibus.

Os irmãos Neves estavam arrumando as coisas na caminhonete, com o portão já aberto, quando eu passei por eles. Até aí, nenhuma novidade. Essa devia ser a 100ª vez que eu passava naquela tarde. A diferença é que dessa vez eu vinha empurrada por um ônibus. Com os braços abertos, feito uma sereia na proa de um navio pirata, eu deslizei pelos irmãos Neves. Meus cabelos ao vento. O motorista do ônibus gritava as mesmas coisas que Roger Neves costumava gritar, nem por isso eu me abalei. Os irmãos largaram suas pranchas de surfe e correram para ver o desfecho da minha trajetória. O desfecho foi que o ônibus fez uma curva e eu continuei reto, numa velocidade extraordinária, digna de um Neves. Daí eu dei uma voltinha e fiz uma reverência de bailarina. Parados no meio da rua, os cinco irmãos ficaram boquiabertos. Então aconteceu um momento de filme. Eles aplaudiram. Roger assobiou fiu-fiu. Repeti a reverência, dessa vez com um giro. A boa lógica diz que a coisa acabaria aí. Eu deslizaria para casa, eles iriam para a praia. Final feliz. Mas eu queria mais. Eu queria um pino.

Inspirada pela carona mortal, resolvi aumentar a dose. Pegaria uma carona na caminhonete dos Neves! Perfeito! Apoiada no tronco de uma árvore, como quem não quer nada e fuma um cigarro, pensando na vida, esperei o cavalinho-de-pau. Quando eles passaram por mim, acenaram um tchau. Mas eu não respondi, pois minha intenção era ir junto! Grudei na traseira da arma letal e com o rosto em chamas, ainda eufórica da carona anterior.

Ahhh... o que era um ônibus capenga da prefeitura perto da arma letal dos Neves!? Eu estava no paraíso. Grudado no vidro traseiro, meu amado gesticulava como louco. Acho que ele queria que eu me desprendesse. Eu me segurei mais firme. Então Roger entortou o espelhinho retrovisor e olhou bem nos meus olhos. Fez uma expressão de quem diz: “Se é isso que você quer...” Três pontinhos. Depois dos três pontinhos, a caminhonete começou a sambar como uma serpente. Eu era chacoalhada para um lado e pro outro. Quanto mais Roger nos sacudia, mais eu me empolgava. E assim eu fiquei por um tempo extraordinário de aproximadamente cinco minutos! Domei aquele touro mecânico até ser atirada contra um poste. Bati de frente, escorri feito desenho animado e caí estirada no chão. Eles foram para a praia.

Despertei com minha mãe chorando em cima de mim. Ela queria que eu vivesse. Eu viveria, mesmo sabendo que ela ia me matar. Era a terceira vez, em menos de um mês, que eu ia para o pronto-socorro. Saí com uma placa no nariz, braço direito engessado, perna direita imobilizada numa gaiola e curativo na testa. Pino que é bom, nada.

Tudo em mim doía. Durante 15 dias eu mal conseguia me mexer. Deitada na minha cama, feito uma múmia, eu sofri uma mutação. Foi assim: a falta de movimentação do corpo fez com que os hormônios se acalmassem. Eles foram decantando dia-a-dia, muito devagarinho, até assentar de vez. Isso aconteceu por causa de um mecanismo humano de preservação da vida. Como meu corpo precisava se recuperar, os hormônios tiveram de cessar suas atividades temporariamente, o que foi muito bom pra mim. Quarenta dias depois, quando pude voltar a calçar os patins, eu era outra pessoa. Voar em direção à caminhonete do Roger já não me parecia mais uma boa idéia. Decidi que dali em diante eu não ia permitir que uma paixão me chacoalhasse tanto. Pelo menos não a ponto de colocar meus hormônios em ebulição.

Índigo (www.73obsessoes.zip.net) é autora, entre outros, de Festa da Mexerica (Editora Hedra, 2003)