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Encontros

por Rubens Gerchman

“Faço parte de uma geração de artistas um pouco inquietos” – assim começa o pintor, desenhista, gravador e escultor Rubens Gerchman a conversa que teve com o Conselho Editorial da Revista E. Com formação de artista gráfico, começou trabalhando como diagramador da extinta revista Manchete e, em seguida, da revista de fotonovelas Sétimo Céu. O pai, também artista gráfico, era imigrante da Alemanha, que aportou no Rio de Janeiro em 1936. “Meu pai sempre dizia que era possível fazer dois tipos de arte, a pura e a aplicada, e que eu tinha de escolher qual fazer entre as duas. Eu passei muitos anos fazendo a arte aplicada, base da minha formação.”

Gerchman estuda desenho no Liceu de Artes e Ofícios, no Rio de Janeiro, durante o ano de 1957. Entre 1960 e 1961, freqüenta a Escola Nacional de Belas Artes e cursa xilogravura com Adir Botelho. Em 1967, com o prêmio Viagem ao Estrangeiro do Salão Nacional de Arte Moderna, viaja para os Estados Unidos. Entre 1968 e 1972, reside em Nova York e torna-se membro-fundador do Museu Latino-Americano do Imaginário. De volta ao Brasil, realiza Triunfo Hermético, filme colorido de 35 milímetros, do qual é roteirista, cenógrafo e diretor. Entre 1975 e 1979, dirige a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e funda a Oficina do Cotidiano. Em meados da década de 70, é co-fundador e diretor da revista Malasartes. Em 1978, com bolsa da Fundação John Simon Guggenheim, vai para o México, a Guatemala e os Estados Unidos. Em 1981, a convite de Lina Bo Bardi, realiza um painel de azulejos para o edifício do Sesc Fábrica Pompéia, em São Paulo. Nesse mesmo ano, recebe o Prêmio Golfinho de Ouro – Personalidade do Ano no Setor de Artes Plásticas do governo do Rio de Janeiro. Em 1982, passa um ano em Berlim como artista residente, a convite do Deutsche Akademischer Austauschdienst Künstler Program. Em 2000 lança, em São Paulo, álbum com 32 litografias, primeiro volume da coleção Cahier d’Artiste, da Lithos Edições de Arte. A seguir, trechos:

Vários artistas da minha geração – ao menos eu e outros como Antonio Dias, Carlos Vergara, Roberto Magalhães, Hélio Oiticica e o Pedro Escosteguy – trabalhávamos. Experimentamos um pouco dessa coisa da sobrevivência. Para fazer “arte pura” e livros de poesia, nós tínhamos de ter um trabalho fixo. Comecei desenhando capas de revistas, diagramando fotonovelas. Tinha um diretor, um velhinho que era o responsável, mas era eu quem dava ordem naquilo. Fiquei impregnado, depois escolhendo fotos da revista Manchete, das publicações e da informação que circulava num mundo em que não havia internet. Nosso processo de gráfica era um processo de clichê, umas bolinhas que pegavam os cinzas e os pretos e imprimiam. Isso inclusive veio influenciar o que se chamou mais tarde de pop art, que são aquelas bolinhas das histórias em quadrinhos, as retículas. Depois teve outro processo, a rotogravura, que deu um salto por entrar cores etc. Todo artista, eu particularmente, pensava que fazendo uma coisa em preto-e-branco, muito nítida, muito certa e severa, conseguiria uma boa reprodução. Todos os jornais imprimiam tudo meio cinza, o papel e a tinta eram muito ruins. Para mim, sair num jornal que imprimia mal tinha de ser na base do quanto mais simples e econômico melhor. Nós não tínhamos nenhum recurso e conseguíamos bons resultados. Aprendi paralelamente técnicas de gravura em madeira (xilogravura), fiz litogravura, serigrafia, comprei uma prensa e comecei a imprimir em casa. Meu pai achava uma loucura, e eu estava sempre dividido entre fazer uma grana e poder fazer minha arte. Meus primeiros quadros foram todos em preto-e-branco. Os críticos de arte chamam de “fase negra”, mas não é nada disso, era realmente falta de grana.


Além das bienais
Desenhar capas de revista lá por 1964 foi minha experiência como jornalista. Apesar de não ser responsável por textos, às vezes fazia as legendas. Eu descia para a oficina para fechar a revista. Quando não tinha ninguém e eu tinha de cortar palavras para fazer uma legenda estourada, eu virava redator e mudava. Daí o diretor, o Justino Martins, chegava e dizia que não tinha escrito aquilo e eu dizia que eu tinha adaptado. Esse tipo de coisa me deu uma habilidade muito grande em relação à leitura dos textos. Eu tinha amigos poetas, convivi muito com poetas jovens, como Armando Freitas Filho, Mauro Gama, para os quais fiz as capas de seus livros. Era outro ramo do concretismo que tinha no Rio de Janeiro. Acabei transitando entre a legenda, a imagem e desenhar letras, à mão livre – experiência que tive por conta de meu pai criar alfabetos. Mais tarde fiz esculturas gigantes que chamei de Cartilha no Superlativo, superconstruções com letras. Antes do conceitualismo ninguém falava disso, mas acho que veio também da minha experiência gráfica. Todas essas técnicas foram a minha base, além das belas-artes, que foram um ensino acadêmico, no qual copiávamos bustos e modelos-vivos. Depois fui ficando mais desabusado e quis usar outros meios, incorporei outras coisas. Comecei a crescer desmesuradamente os meus quadros, fui um dos primeiros artistas a usar grandes formatos, ninguém falava disso. Juntava várias folhas de alcatex até fazer um superpainel. Eu queria ser um muralista mexicano, como Rivera, Orosco, contar um pouco do cotidiano da minha cidade, do que eu vivia. Não se falava em pop art, ninguém tinha essa noção. Nós, entre os artistas, começamos a chamar a nossa arte de nova figuração. A gente era contrário à abstração francesa que dominava as bienais de São Paulo – mas mesmo assim a cidade já era importante para o cenário, a cada dois anos eu pegava um ônibus e vinha ver a bienal para ficar “informadinho”. Ainda que não concordasse com essa visão abstrata e expressionista do mundo das bienais. Mas vi coisas lindas aqui em São Paulo, Picasso, Pollock, Kandinski, tudo junto, aquele saco de gatos.


Arte visceral
Eu queria ter uma visão da realidade brasileira. Havia as histórias em quadrinhos, que todos nós líamos, do Antonio Dias, por exemplo, um excelente desenhista de histórias em quadrinhos. Já o Roberto Magalhães ganhava a vida fazendo rótulos de cachaça e ilustrações de bulas de remédios. O Vergara era químico, trabalhava na Petrobrás e foi o último a chegar ao grupo, dois anos depois. A gente se encontrou num salão e achou que ele tinha a ver com o que a gente estava buscando, com a nova figuração, que estourou numa exposição chamada Opinião 65, no Museu de Arte Moderna (MAM), do Rio de Janeiro. Foi a primeira vez que entrou no museu a famigerada turma de figurativos. E entrou também um rapaz de cabeça raspada, que queria ser crioulo de todo jeito, ficava sambando, chamado Hélio Oiticica. Ele estava com uma capa que chamava de “parangolé” e com dois bateristas que tocavam e sambavam. Não queriam deixá-lo entrar no MAM e ele pediu uma ajuda. Aí, todos os artistas disseram que sem ele não haveria inauguração. Foi assim que a Opinião 65 foi inaugurada, com a bateria da escola de samba da Mangueira e o Hélio de passista. Essa nossa geração chegou com muita disposição e era muito desabusada. A gente não queria fazer só uma coisa, só pintura, por exemplo. Arte não era uma profissão para nós, era um engajamento com a vida, uma opção de vida. Era uma coisa muito mais séria, mais visceral. Ninguém vendia nada, passamos mais de dez anos sem vender nada. Lembro o dia em que o Gilberto Chateaubriand entrou no ateliê e disse que havia acabado de comprar 30 desenhos do Vergara e soube que eu fazia uns objetos, queria comprar de mim. Eu estava com A Bela Lindonéia, um porta-retrato com flores de plástico, e falei que não queria vender aquilo. Ele se interessou também por uma pasta cheia de desenhos, mas falou que só levaria a pasta se eu vendesse o porta-retrato também. Aí eu tive de ceder e a Lindonéia foi-se.

O artista plástico Rubens Gerchman esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E em 18 de novembro