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Reforma tributária ou reformismo?

Problema complexo exige solução complexa

EVERARDO MACIEL


Everardo Maciel / Foto: Nicola Labate

O professor Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal, esteve presente no dia 13 de março de 2008 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac, onde proferiu a palestra "Avaliação da PEC de reforma tributária". Reproduzimos abaixo sua exposição e o debate que se seguiu.

A reforma tributária tem sido um tema presente na agenda política e econômica brasileira pelo menos desde o tempo de João Goulart. Trata-se de uma matéria cercada de certo mistério e à qual se atribui também algum poder mítico de operar transformações no Brasil, o que não é necessariamente verdadeiro.

Primeiramente digo que reformar presume pelo menos duas condições: conhecer a realidade e admitir a existência de um paradigma. Não existem paradigmas tributários no mundo, porque a matéria tributária é essencialmente política e cultural. Cada país elege uma solução que lhe garanta consistência, o máximo de eficiência, mas isso envolve essencialmente sua história. A imensa maioria das nações do mundo adota uma tributação do consumo na metodologia do valor agregado, o chamado Imposto sobre Valor Agregado [IVA]. Entretanto, introduzir o IVA em um país como os Estados Unidos significa rediscutir a própria federação americana, que é um conceito muito mais relevante que o sistema tributário.

É também um fenômeno atemporal, que está presente permanentemente nas agendas políticas de todos os países do mundo. E é, como visto, universal, já que é discutido não só no Brasil como em todas as demais nações.

Outra questão a mencionar é que a reforma tributária é essencialmente um processo contínuo, pois os sistemas tributários evoluem no tempo. Por exemplo, nos anos 1980 não fazia sentido o Brasil tributar renda em bases mundiais. O processo de globalização impôs uma mudança, de tal sorte que hoje praticamente todos os países tributam nessas bases.

Outra questão a lembrar é que são processos graduais. Qualquer mudança abrupta pode ter repercussões inimagináveis. Um exemplo: nos sistemas tributários um dos pontos mais atrasados é a tributação sobre a folha de salários, que na maioria dos países existe como forma de contribuição das empresas aos sistemas previdenciários. Essa é uma forma rigorosamente atrasada, porque estabelece um antagonismo óbvio entre tributo e emprego, quer dizer, quanto mais se emprega, mais se é tributado. E quanto mais aumenta a renda dos trabalhadores, mais se paga de impostos. Entretanto, isso é adotado em inúmeros países do Primeiro Mundo, que não mudam pela impossibilidade de avaliar as repercussões sobre a economia.

No caso brasileiro, a matriz de todas as discussões sobre a reforma tributária envolve essencialmente um conflito distributivo entre União, estados e municípios. Ninguém faz uma discussão mais aprofundada sobre o que deveria ser a fundamentação de uma partilha de rendas, qual seja, a divisão de encargos. Nossa Constituição, extremamente detalhada na divisão de rendas, não traz quase nenhuma linha sobre a partilha de encargos públicos dentro da Federação. Ou seja, quando falamos sobre esses encargos, usamos freqüentemente soluções como esta: a educação fundamental é de responsabilidade dos municípios. E sempre acrescentamos: sem prejuízo da participação de todos os outros entes federativos. Portanto, não se diz absolutamente nada. Esse conflito distributivo leva a que a reforma tributária seja discutida com elevadíssimo grau de imprecisão, de generalidade, sem que se conheça claramente o que se quer reformar.

Paradigma internacional

Para fazer uma reforma tributária, são necessários alguns cuidados prévios. O primeiro refere-se ao mito da reforma abrangente. Fazer reformas abrangentes de sistemas como o nosso significa trazer para o debate conflitos intermináveis e paralisantes. Defendo reformas focalizadas, ou seja, identificar o problema e resolvê-lo. Não construir um novo sistema, como se isso fosse possível. Em segundo lugar, evitar a compulsão pela via constitucional. Acredita-se que nenhuma reforma é importante se não decorrer de emenda constitucional. A maior reforma que se fez no Brasil em matéria tributária, nos últimos 30 anos, foi a da tributação da renda, de 1995. O Brasil, que tinha um sistema de tributação da renda muito pouco qualificado, com certeza o mais complexo do mundo, hoje tem uma tributação de renda tanto de pessoa jurídica quanto de pessoa física que é um paradigma internacional. Particularmente saliento o de pessoa jurídica, que tem alguns institutos extremamente importantes, como o juro remuneratório do capital próprio e o equilíbrio do tratamento entre a tributação de instituições financeiras e a das demais. E sobretudo aquilo que fez o sistema brasileiro ficar com um bom padrão foi a eliminação de algo que praticamente só existia no Brasil, a correção monetária, que tornava a tributação excessivamente complexa. Essa mudança, entretanto, não é registrada como uma reforma tributária. Ao contrário, todas as emendas constitucionais, sem exceção, que pretenderam modificar o sistema tributário desde 1966 conseguiram piorá-lo.

Falam em introduzir o IVA no Brasil. Mas já temos esse imposto, existe desde a década de 1960. Só que não se chamava IVA porque apenas um país do mundo tinha imposto sobre valor agregado, que era a França. Resolvemos criar um sistema à semelhança do francês, com uma diferença crucial: lá o governo é central e aqui há entidades subnacionais, os estados. E preferimos não adotar o nome francês, que é ruim, ou seja, o imposto de operações relativas a circulação de mercadorias é muito mais preciso. Valor agregado não quer dizer nada. A tributação da renda em regime de lucro real é um imposto sobre valor agregado. No consumo fica mais razoável. Mas como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias [ICM] não se chamou IVA, passamos o tempo inteiro dizendo que o Brasil precisava de um IVA.

Hoje essa forma de tributação existe em mais de 120 países, que adotaram o nome francês, mas isso é pouco relevante, desde que se saiba o que é o fato gerador do imposto, a base de cálculo etc. Temos, portanto, nosso IVA, embora com enormes imperfeições.

Qualidades e defeitos

Outra questão que cito, tomando emprestada a expressão de Nelson Rodrigues, é a do complexo de vira-lata do brasileiro, de que tudo o que existe no Brasil é ruim. Não. O sistema tributário brasileiro tem qualidades e defeitos. Por exemplo, a tributação da renda no Brasil é infinitamente superior à de qualquer país. Nos Estados Unidos é um desastre, uma solução extremamente complexa. Entretanto, dizemos que nosso sistema é muito ruim. Geralmente esse juízo de valor resulta da incompreensão das razões de nossa própria complexidade. Isso não quer dizer que não tenhamos sérios problemas no sistema tributário, mas também não significa que esses problemas devam contaminar todo o sistema brasileiro para taxá-lo de ruim.

Outra coisa, esta muito brasileira, é a eterna necessidade de mudar. Mudar o quê? Mudar qualquer coisa. É o reformismo permanente. Sem a idéia de mudar, o discurso político parece fracassar. Basta ouvir os políticos em época de campanha: "Estamos aqui para mudar..." Ainda que não saibam bem o que mudar nem para quê. Isso é um traço de nossa cultura. E existe também a ansiedade pela implantação. Tem de ser para amanhã? Não necessariamente. Essas mudanças são sempre lentas, porque implicam novos comandos oferecidos aos agentes econômicos, que precisam se estruturar.

Quanto à proposta de emenda constitucional que está em estudo no Congresso, começo fazendo um juízo de valor: como continuar a tratar dos problemas errados pela via errada? Quais são as propostas básicas? Primeiro, a criação do Imposto sobre Operações com Bens e Prestação de Serviços, que resultaria da fusão do PIS [contribuição para o Programa de Integração Social], Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social] e Cide-Combustíveis [Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico para Combustíveis] etc. Segundo, o ICMS [Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação], que teria uma legislação nacional e no qual seria adotado o princípio do destino. Pretende-se pôr fim à guerra fiscal e se estabelecem novas atribuições para o Confaz [Conselho Nacional de Política Fazendária]. O terceiro ponto é uma fusão do Imposto de Renda das pessoas jurídicas com a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido [CSLL]. E o quarto seria uma redução da incidência tributária sobre folha de salários. Esse é, em essência, o conteúdo da proposta de emenda constitucional [PEC] encaminhada ao Legislativo.

Vejamos os equívocos da proposta, primeiro os metodológicos. O principal é a via constitucional. Nada do que está na PEC, exceto os problemas criados por ela mesma, precisa de reforma constitucional. Usar essa via é abrir espaço para uma ampla discussão judicial.

Outro erro metodológico é a construção de soluções a partir de normas abertas. Por exemplo, diz-se que o ICMS tem 27 legislações. Isso é mentira: existem 27 leis, não 27 legislações. Essas 27 leis têm 60% a 70% do mesmo conteúdo. Alguém pode perguntar se não é preferível ter uma única lei no lugar de 27. Não necessariamente, depende dessa lei, que pode ser pior do que as 27 separadas. A PEC diz que existirá uma legislação única, mas qual? Todas as normas estão abertas e, portanto, são perigosas, porque podem ser qualquer coisa. Isso decorre do erro da via adotada. Se fosse uma lei em vez de emenda, entraria no assunto direto e não numa norma programática, que efetivamente não se sabe do que trata.

Há também os equívocos políticos, a usurpação da função legislativa. Está dito na PEC que as alíquotas do ICMS serão aprovadas pelo Senado Federal, tendo em vista proposta do Confaz, cabendo aos senadores tão-somente aprovar ou rejeitar. O Senado fica subordinado ao Confaz, que não é órgão legislativo, mas administrativo do Poder Executivo e dos estados. Há uma usurpação de função legislativa.

Outro ponto, que é uma coisa lamentável: temos um sistema errado de vinculação de receitas. Todos esses percentuais – as vinculações que existem para a educação, para a saúde, para a seguridade social, para a área de ciência e tecnologia etc. – são rediscutidos, reabertos. Mais grave: são reabertos sobre um dado desconhecido. Quando falo em 23,5% da arrecadação do Imposto de Renda, não há dúvida do que estou falando. Mas 23% do Imposto sobre Operações com Bens e Prestação de Serviços não tenho a menor idéia do que seja. É uma discussão, portanto, completamente aberta.

Outro aspecto, este puramente regimental, é que o atual governo mandou uma PEC tratando de reforma tributária, da qual foram aprovados alguns aspectos na Câmara, que seguiram para o Senado, que os confirmou. De volta à Câmara, estão em discussão, mas o Executivo encaminhou agora um novo projeto tratando da mesma matéria. É uma sobreposição incompreensível.

Carga aumentada

Mas vejamos os equívocos estritamente tributários da proposta. Antes de tudo, a possibilidade de aumento da carga. Primeiro, porque o Imposto sobre Operações com Bens e Prestação de Serviços reúne PIS, Cofins e Cide-Combustíveis. Ora, esses três impostos têm bases e alíquotas distintas, portanto, onerações diversas. Se tomam alíquotas de padrões diferentes e as uniformizam, é evidente que alguém terá aumento de carga tributária. Mais: lá se cita uma alíquota uniforme e alíquotas adicionais. Ora, adicional não subtrai, aumenta.

O artigo 11 diz que no segundo ano subseqüente ao da promulgação da emenda o governo encaminhará uma lei para redução das alíquotas das contribuições patronais previdenciárias. Qual a leitura disso? Primeiro, que não haverá nenhuma mudança enquanto a emenda estiver em discussão, sob pena de essa norma não ter sentido. Segundo, se só será feita depois de promulgada é porque está presumindo que haverá uma redução e que esta será compensada pelo aumento. Portanto, é visível que haverá um aumento de carga tributária.

Há um terceiro ponto para explicar isso: a tendência de aumentar os percentuais de vinculação e de partilha em favor dos estados e municípios. O Congresso jamais vai deliberar em favor da União ou discutir redução de vinculações. Para o déficit de arrecadação será adotada a solução tradicional, o aumento de alíquotas.

Outro equívoco tributário é confundir simplificação com simplismo. No projeto se diz: estamos reduzindo o número de tributos. Isso não quer dizer nada. Por exemplo, fala-se em fusão do PIS com a Cofins. Mas o PIS é igual à Cofins, a tal ponto que os chamamos de PIS/Cofins. Então o que se está fundindo é o Darf, o documento de arrecadação. Isso é matéria de uma portaria, à qual cabe determinar que PIS e Cofins devem ser recolhidos num Darf único.

Fazer a fusão do Imposto de Renda com a CSLL? Mas se os dois são iguais, está havendo fusão de quê? São diferentes apenas na destinação e em pequeníssimos detalhes puramente formais. Na CSLL se fala em base de cálculo negativo, que é exatamente igual ao prejuízo do imposto de renda. São apenas dois nomes distintos para dizer a mesma coisa. A distinção se faz em relação à destinação, um para a seguridade social e o outro não. Um é objeto de partilha com os estados e municípios, o outro não.

Portanto, trata-se de um mero arranjo para compensar desequilíbrios decorrentes de vinculação e partilha.

Regime cumulativo

Vejamos o caso de dois tributos, sobre operações com bens e sobre prestação de serviços. Primeira questão: o que quer dizer "operações"? Não existe nenhuma referência no direito positivo brasileiro. Isso quer dizer qualquer coisa, portanto, da mesma forma, coisa nenhuma. No ICMS se diz assim: "operações relativas à circulação de mercadorias". Estamos falando sobre tudo aquilo que se relaciona com circulação de mercadorias. Mas tudo aquilo o quê? Com a criatividade de nossos advogados encontraremos umas 50 definições para "operações".

No Brasil, 93% dos contribuintes optam pelo regime cumulativo. E o fazem porque é mais simples. Klaus Tipke, falecido há pouco tempo, foi certamente o mais importante tributarista contemporâneo. Num livro extraordinário chamado A Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes, dizia que, fazendo uma pesquisa nas democracias parlamentares européias, constatou que o que existe de mais comum, de mais presente como demanda tributária é a simplificação, ações contra o caos tributário. Paul Kirchhof, o grande tributarista alemão, também chama a atenção dizendo: o direito somente funciona se for simples. O direito tributário, justamente por ser complexo, não é direito. Foi ele quem propôs simplificar a tributação, subsidiando a campanha política de Angela Merkel. Aqui estamos no curso contrário.

Se os sistemas são não-cumulativos, a conseqüência inevitável é que aqueles que forem simplificados desaparecem. E está dito no texto da proposta: será não-cumulativo. Então todos os que não são cumulativos morrem, e portanto desaparecem todos os sistemas simplificados e também todos os mecanismos anti-sonegação.

A tributação do setor de combustíveis é peculiar. Por que a Cide? Existe uma história. Quando houve a liberação na distribuição de combustíveis, ocorreu um aumento muito grande na adulteração e na sonegação. Constatei que era impossível enfrentar diretamente aqueles padrões de sonegação, porque não bastava colocar a fiscalização em campo, uma vez que havia seguidas liminares, em todos os cantos do Brasil. Então adotamos uma solução eficiente, que é a da substituição tributária, apurando na refinaria. Há ações e ações contra a substituição tributária e o Supremo ainda não se definiu. Surgiu então uma nova lei: a tributação será monofásica, isto é, tributa-se só a refinaria, quem estiver na ponta não é mais contribuinte. Isso também não resolveu, surgiram ações contra esse sistema alegando que era uma forma disfarçada de substituição tributária. Novas discussões, vamos fazer uma emenda constitucional. Apareceu um novo problema: estabeleceu-se em lei que haveria a liberalização na importação de combustíveis. Existia o PIS/Cofins na tributação interna, mas não na importação. Se houvesse a liberalização, teríamos a situação peculiar de que o combustível importado seria menos tributado do que o nacional. Então só havia uma solução: colocar o PIS/Cofins também na importação, de modo a ficar isonômico o tratamento. Houve reação contra isso, então vamos aproveitar e resolver tudo, criando a Cide, uma contribuição de intervenção no domínio econômico para os combustíveis, para tratar do aspecto monofásico, da tributação com alíquota ad rem e, ao mesmo tempo, fazer a incidência na importação. Apareceram ainda algumas discussões no campo judicial, não relevantes, e acabou a sonegação de combustíveis na área federal.

Já que conseguimos fazer isso, vamos agora criar um novo imposto, fazer desaparecer a Cide e voltar à solução original, restabelecendo portanto a sonegação. Parece aquela compulsão a não aceitar o que dá certo. Uma enorme confusão para nada, contrariando o princípio da doutrina tributária de que imposto não se vincula.

Confaz, um legislativo

No ICMS, temos 27 leis. Como fazer para que exista uma menor diversidade entre elas? Simplesmente aprofundando a lei complementar da Constituição de 1988 que disciplina o ICMS. Quanto mais pormenorizados formos, menos espaço teremos para que alguém seja diferente. E ao mesmo tempo não alteramos nada, deixamos que cada estado tenha sua lei. Ao fazer isso, acontece uma coisa curiosa, esse imposto será de titularidade conjunta. Vejam como somos criativos, tínhamos três entes federativos com titularidade, União, estados e municípios. Agora temos mais uma titularidade, um novo ente federativo, o conjunto dos estados.

NEY PRADO – Com um legislativo próprio, o Confaz.

EVERARDO – Sim, com um legislativo próprio que é o Confaz. Portanto, algo estranho. Outro ponto importante: com a simples pormenorização da legislação atual, estaríamos resolvendo dois problemas, tratando materialmente da lei. Isso dá trabalho, não é simples. É simples do ponto de vista conceitual, mas dá trabalho. Pegamos todas as legislações dos estados, tentamos identificar as coisas que são uniformes, transformamos isso em lei complementar e estabelecemos também a forma de organização das leis em cada estado. Isso é perfeitamente possível. Criamos um código, sem buscar nenhum outro amparo constitucional além do que já hoje existe.

Há uma valorização excessiva do Confaz, transformado num órgão legislativo.

Quanto às alíquotas, alguns projetos pretendiam reduzi-las para três ou quatro. Essa emenda constitucional, entretanto, admite todas as que temos. Conseguimos algo interessante: quando instituímos o ICM, a Constituição dizia que esse imposto teria alíquota uniforme em todo o território nacional. A criatividade brasileira, no entanto, inventou a redução da base de cálculo. A alíquota é uniforme, mas a base de cálculo muda. Ou seja, é a mesma coisa. Seria até mais sensato instituir base de cálculo única e alíquota variável. Na Constituição de 1988 ainda deixamos a prerrogativa de variar a base de cálculo e variamos a alíquota, uma solução explosiva. Assim, temos hoje aparentemente – ninguém sabe com muita precisão – 45 alíquotas de ICMS, pela combinação de base de cálculo com alíquota nominal. Esse projeto de emenda constitucional mantém a mesma diversidade de alíquotas.

Na criação do ICM se cometeu um erro, presumindo-se que seria sucedâneo do Imposto sobre Vendas e Consignações (IVC), que era de titularidade estadual. Ao fazer isso, produzimos uma série de problemas. Entendo e justifico isso, porque na época não havia sequer um paradigma. O último que existia era o francês, que por ser um Estado unitário não tinha esse problema. Então, quando adotamos o imposto com titularidade estadual, apareceu a questão: ele fica na origem ou no destino? Se na origem, seria um sistema de transferências de estados importadores líquidos para exportadores, com efeitos econômicos, políticos e sociais. Se no destino, haveria uma fundamentação doutrinária, que é pagar no local onde se reside. Adotou-se então uma solução mista, parte na origem, parte no destino. É uma solução equilibrada que está no contexto da partilha de rendas públicas dentro do federalismo fiscal brasileiro.

Agora, no entanto, querem instituir o princípio do destino, com o objetivo de acabar com a guerra fiscal. Isso, porém, é completamente falso. Ninguém faz incentivo fiscal para tirar dinheiro de outro estado, faz para dar algum tipo de benefício a sua terra. Essa é a história verdadeira. Mais: boa parte desses incentivos são dados a indústrias que produzem para o próprio estado, não há operação interestadual. Mas o que é mais grave é que são incentivos concedidos de forma ilegal. A lei complementar 24, recepcionada expressamente pelo texto constitucional vigente, diz que não pode ser concedido nenhum incentivo fiscal fora do que ela estabelece. É uma lei extremamente severa, que era absolutamente observada. A partir de certo momento, no entanto, todo mundo resolveu descumpri-la. Foi assim que apareceu a guerra fiscal aberta. Para resolver o problema, em vez de cuidar do cumprimento da lei ou verificar no que ela é inadequada, se estabelece uma mudança no sistema de partilha de receita dentro do federalismo fiscal brasileiro. Guerra fiscal não é problema de lei, mas de cumprimento da lei, que já existe e é severíssima. Guerra fiscal no Brasil não se acaba por uma única razão: porque não se quer. Bastaria um decreto que mandasse estornar o crédito de todas as empresas que tiveram incentivo fiscal irregular. Ninguém quer assinar isso.

Por último, o maior problema que existe no ICMS brasileiro não é exatamente a diversidade de alíquota, mas a acumulação de crédito na exportação. É um elemento inibidor das vendas externas, porque a desoneração prevista no texto constitucional não se opera de verdade. E, para finalizar, tomo emprestada esta frase de Alan Greenspan, do livro A Era da Turbulência: "Analisando determinadas opções de política econômica, sempre perguntei a mim mesmo quais serão os custos para a economia se estivermos errados". Se não há risco, podemos tentar qualquer política. Mas se o custo do fracasso é potencialmente muito elevado, ela deve ser evitada. Temos um sistema com problemas que têm de ser enfrentados, mas sem criar novas dificuldades. Portanto, quando vejo essa PEC, lembro-me de um adágio inglês que diz que todo problema complexo tem uma solução simples. E acrescenta: e errada. Problema complexo exige solução complexa, não simplismo.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM –Fala-se em reforma tributária, mas existe um conceito mais amplo, a reforma fiscal. Diferentemente da tributária, ela trata também do gasto público, que no Brasil está subindo na vertente do custeio, não na do investimento. Outro ponto é o Imposto de Renda. A classe média paga um Imposto de Renda muito elevado, não pela alíquota de 27,5%, mas pelo retorno social e também pelo fato de que há abatimentos ridículos, educação é um deles. Sem falar na correção da tabela, uma questão que vem do governo FHC. Pergunto: qual é o limite de carga tributária bruta que você acredita que seja razoável para o Brasil crescer?

EVERARDO – Não existe possibilidade nenhuma de tratar de redução de carga tributária sem diminuir gastos. As duas coisas estão presas uma à outra. O que mais tem crescido no governo é a despesa com pessoal e com assistência social, naturalmente deprimindo a capacidade de investimento. Dois anos atrás, os investimentos federais foram da ordem de 0,7% do PIB, e em 2007 foram 0,9%. Com a retirada da CPMF, isso cai para 0,1% este ano. Mas ninguém discute, por exemplo, contingenciamento de aumento de pessoal e sobretudo os programas assistenciais. Costumo dizer que não existe despesa órfã, todas têm pai e mãe. E há resistências a qualquer processo de redução. Isso tem a ver com a questão do limite da carga tributária. Esse limite depende do Estado que você quer construir. Certamente no Brasil aumento de carga tributária significa ampliação do desperdício e da ineficiência e redução do crescimento. Nossa vocação é tentar fazer aqui um welfare state tropical, com muito gasto público e pouca eficiência. Em 1947 a carga tributária correspondia a 3,5% do PIB. Esse processo não teve nenhum crescimento abrupto, é contínuo. O que está aumentando é o tamanho do Estado. E se reduz a capacidade de geração de riqueza por parte da iniciativa privada.
Você levantou a questão do Imposto de Renda. É preciso lembrar que imposto não é preço, não compra. Imposto é uma obrigação, norma coercitiva. Num país com assimetrias sociais como o Brasil é muito razoável que o beneficiário do gasto público não seja o contribuinte. Estamos pagando imposto sem receber nada em troca. Não é para receber mesmo, pois se trata de imposto, ninguém está comprando nada.
O limite de isenção do Imposto de Renda da pessoa física do Brasil é o mais alto do mundo, razão pela qual apenas 7% da população economicamente ativa contribui.

ROBERT APPY – Discordo sobre a não necessidade de uma reforma tributária. Penso que ela é absolutamente necessária. Gostaria também de dizer que a classe média paga Imposto de Renda demais e a classe alta de menos. Deveríamos pensar nisso.

EVERARDO – Eu não quis dizer que o sistema tributário não mereça reformas. Estou me posicionando contra esse projeto de reforma, não qualquer reforma. Tanto que disse ser necessária uma legislação nacional do ICMS por lei complementar. O que não precisamos é de uma reforma por via constitucional. Em relação ao Imposto de Renda, quanto à classe média pagar mais do que os mais ricos, há às vezes um equívoco. O fato de alguém não recolher imposto não significa que foi menos tributado. Os titulares de empresas, por exemplo, têm isenção na distribuição de resultados. Mas já foram tributados na pessoa jurídica a uma alíquota de 34%, enquanto na física é 27,5%. É uma espécie de substituição tributária, que tem o nome de integração na tributação da renda da pessoa jurídica com física, na qual o Brasil é pioneiro. O governo Bush está tentando fazer isso nos Estados Unidos.

CLÁUDIO CONTADOR – As reformas tributárias não deveriam em princípio estar atreladas a determinados objetivos, mesmo que fossem cambiantes ao longo do tempo? Por exemplo, o objetivo de crescer. Para isso é preciso estimular formação de capital etc. Atrela-se assim uma reforma fiscal, como fizemos nos anos 1964 e 1965. Aquela reforma pelo menos tinha uma exposição de motivos convincente. Outro ponto, mais por curiosidade: o que deve ser olhado, a arrecadação bruta ou a líquida? Porque temos uma carga bruta de impostos bastante alta, mas há muitas transferências que retornam para o setor privado.

EVERARDO – Arrecadação bruta é uma coisa trivial, é o que União, estados e municípios arrecadam. A arrecadação líquida envolve as transferências intrafederativas, compulsórias ou voluntárias, que se operam, por exemplo, pela via das emendas parlamentares. Há também os fundos de desenvolvimento regional, o de compensação de importações etc. Temos de olhar é para a receita bruta. Quanto ao retorno para a sociedade, é muito difícil avaliá-lo. E não vejo muita utilidade em fazer esse tipo de coisa.

HUGO NAPOLEÃO – Tendo em vista a lei complementar 24, qual a sua impressão sobre o Fundap [Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias], aquele benefício com relação às importações no estado do Espírito Santo?

EVERARDO – No Brasil somos muito habilidosos, como no caso da alíquota constante e base de cálculo variável. É a mesma coisa. A lei complementar 24 diz que é vedada a concessão de redução de base de cálculo, anistia, remissão, crédito outorgado, deferimento etc. O estado do Espírito Santo diz que o benefício que dá não é fiscal, é financeiro. Mas a pessoa deixa de pagar, no fundo é a mesma coisa. Utiliza-se o seguinte artifício: os importadores têm de pagar 6% ou 7% do ICMS, não me recordo o número exato, e os restantes 93% são pagos em 20 anos em valores constantes, observada uma alíquota de 1%. É absolutamente ilegal.

JULIAN CHACEL – Gostei da idéia de fazer modificações através da legislação infraconstitucional, sem recorrer, portanto, a uma reforma da Constituição. Tenho apenas uma observação sobre o IVA, voltando à reforma de 1964, quando se instituiu o ICMS, supostamente à imagem e semelhança do tributo francês. Na França era o impôt sur la valeur ajoutée.
Posso estar errado, mas essa expressão surgiu justamente da contabilidade do país, das contas da nação, para evitar que, ao se fazer o cálculo do Produto Interno Bruto, houvesse dupla contagem, daí a expressão valeur ajoutée. Concordo que na essência o ICMS é um imposto sobre valor agregado, de modo que não há muito sentido em evocar um IVA para o Brasil, quando na verdade já existe, ainda que em nível estadual.
Recentemente, numa conversa sobre a reforma tributária que está no Congresso, ouvi do consultor jurídico Cid Heráclito de Queiroz a idéia de que no Imposto sobre Operações com Bens e Prestação de Serviços poderia ocorrer uma incidência sobre a mesma base de cálculo. Não sei se o entendi bem. Poderia comentar isso?

EVERARDO – A proposta fala apenas que será criado um Imposto sobre Operações com Bens e Prestação de Serviços. Num dado momento diz o seguinte: prestação de serviços é tudo aquilo que não é circulação e transmissão de bens. Assim, estou inferindo o seguinte: a parte de operações com bens é justamente isso, já que se define, por exclusão, que prestação de serviços é tudo o que não é isso. Então, se é tudo o que não é isso, se o imposto é pela combinação de operações com bens e prestação de serviços, a presunção razoável (alguém seguramente alegará isso) é que se trata de circulação de mercadorias e transmissão de bens. Em outras palavras, estaremos diante da seguinte situação: é um tributo cuja base de cálculo é o imposto sobre transmissão e o ICMS. Aí há dupla incidência que pode gerar problemas, como um conflito federativo, seja entre estados, seja entre União e estados. Concordo com o que Cid Heráclito falou, que a base de cálculo, pelo menos à luz do que está na proposta, é a mesma. Só que ampliada, porque pode chegar a uma situação onde haja incidência desse imposto sobre operações no setor financeiro.

LUIZ GORNSTEIN – A guerra tributária em si beneficia a população? Por exemplo, uma fábrica de computadores no Paraná em 2003 fabricava 21 mil unidades e em 2007, utilizando benefícios fiscais do estado, passou para 1,4 milhão. Isso não é benéfico para o país? Outra questão: o consumidor brasileiro paga US$ 370 por um Ipod, enquanto um canadense desembolsa US$ 170. Se a renda do canadense é maior, como se explica isso? Se o imposto baixar, o consumo não vai explodir no Brasil, aumentando a arrecadação?

EVERARDO – A fábrica da área de informática no Paraná é benéfica, sem dúvida. Mas o que estamos discutindo não é se é benéfica, mas se a lei está sendo cumprida. Estamos falando da regra do jogo, legalidade e ilegalidade. Estabelecer instrumentos que possam atrair investimentos para o estado, nada contra. O que é preciso é cumprir a lei. Se ela é ruim, vamos modificá-la, criar instrumentos de atração sem prejuízo para outros estados.
Quanto à outra questão, se reduzíssemos a tributação, aumentaria a demanda? Não necessariamente, depende do grau de competição. Reduzir em determinadas coisas não vai aumentar nada. Um exemplo concreto: abolimos a CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira]. Que produto teve o preço reduzido depois disso? Nenhum. Cresceu a margem de lucro. Portanto, isso depende da circunstância específica daquele produto.

EDUARDO SILVA – Qual é a sua avaliação do que aconteceu em relação à CPMF?

EVERARDO – Tenho uma avaliação técnica muito positiva da CPMF enquanto tributo. Eu a defendi abertamente, porque essa é minha convicção. Sua eliminação terá repercussão no orçamento. Com a retirada da CPMF alguém sofre, e esse sofrimento vai acontecer em uma destas duas variáveis: superávit primário ou investimento. Admitindo, só para argumentar, que não seja o superávit primário, será o investimento público.

MÁRIO AMATO – Sua palestra nos faz pensar na vantagem da sonegação.

EVERARDO – Os sonegadores têm vantagens econômicas sobre os outros, é claro. Trata-se de um desvio tributário concorrencial, uma doença oportunista. É por isso que os sistemas tributários devem considerar o padrão cultural, a tradição do país, para desenhar no sistema a prevenção. Do contrário, a sonegação aparece. Nos Estados Unidos o Sales Tax é um imposto profundamente sonegável. E por que não se sonega? Porque há 200 anos de tradição com baixo nível de sonegação. Não tão baixo, aliás, lá são 18%. Mas desde que Benjamin Franklin disse que só existem duas coisas inevitáveis, a morte e o Imposto de Renda, isso virou jurisprudência firmada e as pessoas temem a repercussão da sonegação.

ADIB JATENE – O IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] de fato capta a sonegação no cálculo do PIB? Se ele não a inclui, a carga tributária é realmente a que dizem?

EVERARDO – O maior economista tributário do mundo, Vito Tanzi, salienta a repercussão da informalidade na apuração do PIB, demonstrando minuciosamente que ela faz com que exista um PIB invisível. Não tenho dúvida de que isso acontece. No caso brasileiro, qual é o tamanho disso? Tentei fazer um cálculo usando a CPMF como base de cálculo, verificando a movimentação financeira. Extraímos dessa base de cálculo o que era aplicação ou empréstimo e remanesceu o que chamamos de pagamentos, aquilo que tem um credor numa ponta e um devedor na outra. A pergunta era: qual a parcela dos pagamentos que só recolheram CPMF? Estimamos que 34% dos pagamentos feitos no Brasil recolheram apenas CPMF no universo dos tributos. Isso significaria que a sonegação é 34%? Não. Podemos falar de isenção, de elisão, de sonegação. O certo é que o não-pagamento de tributos, qualquer que seja sua denominação, chegou a 34%. Isso foi em 1998. Em 2001 obtivemos 29,5%. Evidentemente aí existe um PIB oculto, que só é capturado por instrumentos como esse.

JATENE – Só um pequeno complemento. A arrecadação da Previdência Social pode ser considerada como não recurso do governo? Porque é recurso dos aposentados e dos pensionistas. O governo arrecada e administra, mas é um fundo de pensão.

EVERARDO – Abstratamente deveria ser como o senhor está falando. Não é exatamente isso porque ela é deficitária. Ou seja, há recursos que são aportados pelo governo. Há modelos previdenciários que são completamente autônomos em relação à arrecadação do governo. No Brasil tudo o que é arrecadado a título de receitas previdenciárias stricto sensu, que no caso são receitas sobre folha, é aplicado no sistema previdenciário. Entretanto, essas receitas são insuficientes para produzir um mínimo de equilíbrio nesse sistema. 

 

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