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A Justiça é cega, mas já usa internet

Em busca da credibilidade perdida, tribunais entram na era digital

CARLOS JULIANO BARROS


Arte PB

Burocracia, lentidão, ineficiência. Qualquer debate sobre o funcionamento da Justiça brasileira está invariavelmente recheado de reclamações dessa natureza. Há um bom tempo esses fantasmas a assombram no dia-a-dia e mancham sua imagem perante cidadãos de todos os cantos do país. Entretanto, para agilizar o ritmo de trabalho e recuperar a credibilidade, a mais recente aposta de administradores e profissionais de fóruns e tribunais espalhados pelo território nacional é uma marca registrada deste novo século: o uso intensivo de tecnologias digitais.

É bem verdade que as autoridades brasileiras têm certa experiência em adotar soluções da informática com o intuito de driblar dificuldades. Para dar mais transparência e velocidade ao sistema eleitoral, por exemplo, surgiu o voto eletrônico. E, com o objetivo de aperfeiçoar o recolhimento de impostos, veio a declaração do imposto de renda pela internet. Agora, definitivamente, é a vez de a Justiça lançar mão das mais modernas ferramentas da computação para desafogar seus gargalos.

Essa nova era tem como marco a lei 11.419, promulgada em dezembro de 2006, mas que só entrou em vigor de fato no mês de março do ano passado. Ela trata principalmente da tramitação em formato eletrônico dos processos judiciais. Isso quer dizer que saem de cena os pesados calhamaços de papel analisados pelos magistrados. Nesse novo modus operandi do Poder Judiciário, o advogado faz a petição do seu próprio escritório, acessando sites de fóruns e tribunais que já adotaram essa ferramenta. Os documentos a ser analisados pelo juiz chegam até ele não mais pelas mãos de seus assistentes, e sim pela tela do computador.

As vantagens são realmente incontestáveis: além de tornar o trâmite bem mais rápido, a via digital dá mais segurança à manutenção e à circulação dos processos, e de quebra poupa o trabalho puramente mecânico de carimbar e numerar folhas feito pelos funcionários, que podem ser alocados em funções mais importantes. Sem falar na economia de toneladas de papel.

Entre outras possibilidades, a legislação que instituiu o chamado "processo eletrônico" permite que os tribunais publiquem suas decisões em diários de Justiça na internet. Para se ter noção de como a idéia foi bem aceita, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aposentou recentemente a divulgação impressa e passou a utilizar somente a versão disponível na web. A principal corte do país, o Supremo Tribunal Federal (STF), também já torna públicas suas sentenças pela internet desde o primeiro semestre de 2007.

Um ano e meio após a lei 11.419/06 entrar em vigor, pode-se dizer que há bons motivos para comemorar. As novidades das tecnologias da informação podem ser conferidas em 22 estados brasileiros. Em cada um deles existe no mínimo uma vara – a primeira instância da Justiça, seja ela estadual, federal ou trabalhista – com sistema montado para receber petições em formato eletrônico.

De acordo com cálculos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ao menos 80 mil processos já correm de forma virtual em todo o país. Cifra acanhada se levarmos em consideração os 70 milhões que tramitam no total. Contudo, as previsões dão conta de que esse número só tende a crescer, mesmo a curto prazo. A própria ministra Ellen Gracie, que até abril ocupava a presidência do STF, chegou a afirmar que em cinco anos espera ver todos os novos processos remetidos ao Poder Judiciário protocolados de maneira digital.

Na opinião de Alexandre Atheniense, presidente da Comissão Especial de Tecnologia da Informação da OAB, o momento que a Justiça brasileira atravessa pode ser comparado a uma espécie de revolução. "Temos de admitir que as mudanças implantadas não terão volta. Precisamos nos preparar e conscientizar as pessoas de que isso vai ser para o bem", afirma.

Pioneirismo

Em um bairro típico de classe média da zona norte da capital paulista, fica localizado aquele que talvez possa ser considerado o modelo ideal do casamento das tecnologias digitais com o Poder Judiciário: o Fórum Nossa Senhora do Ó. A idéia de construir essa unidade estava nos planos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) desde 1985, mas a inauguração só aconteceu em junho do ano passado. Toda essa demora, no entanto, teve pelo menos um lado positivo. Trata-se simplesmente do primeiro fórum totalmente eletrônico da América Latina.

Isso não quer dizer, contudo, que o papel tenha sido extinto por completo. Quando algum advogado decide iniciar um processo sem acessar o site do TJSP, ele leva os documentos até o fórum, que abriga duas varas de família e três cíveis, onde serão digitalizados por meio de um scanner. "A partir daí, toda a movimentação do processo vai ser feita com o mouse. É algo revolucionário em termos de celeridade e segurança", explica Paulo Eduardo Sorci, juiz diretor da unidade.

Alguns números ajudam a entender as vantagens proporcionadas pelo uso da tecnologia. Em uma vara de família comum, que funciona no sistema tradicional, são necessários pelo menos 15 funcionários para dar conta do volume de processos a ser analisados. Com a plataforma digital, é preciso apenas um terço desse número. Sorci, por exemplo, trabalha com menos auxiliares ainda na vara sob sua responsabilidade – apenas dois. E, apesar do déficit de recursos humanos, consegue manter uma produtividade que ele qualifica de "estratosférica". "Em nove meses de existência, foram cerca de 3 mil feitos. Desse total, quase metade está arquivada, já decidida. Ninguém conseguiria fazer algo assim no sistema antigo e com apenas dois funcionários. Ainda estaria terminando de autuar as petições", afirma.

Contudo, o juiz vislumbra alguns empecilhos a ser superados para garantir o bom funcionamento do Fórum Nossa Senhora do Ó. O índice de petições que chegam diretamente através do sistema virtual do TJSP ainda é pouco expressivo – apenas 1%. E a capacidade de escanear os documentos está chegando ao limite. "Todo mundo traz para digitalizar aqui. Mas nossa estrutura não agüenta. É muita coisa: 70 petições por dia", diz Sorci.

Na avaliação das fontes ouvidas por Problemas Brasileiros, para que o processo eletrônico seja efetivamente implementado no dia-a-dia do Poder Judiciário, vai ser necessária uma completa reviravolta cultural no modo de fazer e ensinar direito no país. "Tudo o que se aprende nas faculdades brasileiras em relação à prática de processo, por exemplo, está defasado, já que ainda está relacionado a papel e ato presencial. E agora vai ser tudo digital e à distância", comenta Alexandre Atheniense.

Quem largou na frente e vem liderando a corrida pela adoção de novas tecnologias foram, juntamente com as cortes superiores (STF e STJ) e a Justiça do Trabalho, os tribunais estaduais da região norte do país. O juiz Roberto Taketomi, do TJ do Amazonas, acompanhou de perto a construção do sistema que recebe as petições digitais na maior unidade da federação brasileira. O investimento, conta ele, foi fruto da necessidade de vencer, entre outros obstáculos, a distância geográfica entre as cidades do Amazonas – o que atravanca e muito o andamento dos processos. O TJAM, inclusive, antecipou-se à lei 11.419, ao criar sua plataforma um ano antes da aprovação da nova legislação pelo Congresso. Os resultados também são para lá de satisfatórios. "Houve redução do tempo médio de tramitação dos processos de mil para 70 dias nas varas de família", afirma Taketomi.

Outro exemplo significativo de como a digitalização contribui para acelerar o julgamento de uma ação pôde ser visto no caso do "mensalão". Quando já contabilizavam impressionantes 40 mil páginas, os autos do processo foram todos escaneados, o que facilitou bastante o trabalho de acusação do Ministério Público. "O procurador da República tinha declarado que iria demorar dois anos só para fazer a denúncia. Mas, em nove meses, entregou-a ao Supremo", afirma Paulo Roberto Pinto, secretário de tecnologia da informação do STF. "O tribunal, por sua vez, disse que precisaria de quatro anos para analisar o caso. Mas o julgamento aconteceu dois anos depois da chegada da denúncia", acrescenta.

Desafios

Apesar de promissoras, as transformações trazidas pelo processo eletrônico ainda despertam algumas preocupações. Em primeiro lugar, para que ele sirva de fato como vetor de aproximação entre cidadão e Poder Judiciário, é preciso garantir acesso à internet de alta velocidade em todo o território nacional, além de não segregar os que ainda estão pouco habituados às tecnologias digitais.

Problemas dessa ordem já motivaram polêmicas. No final do ano passado, o conselho federal da OAB contestou o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 8ª Região do Pará por baixar uma resolução que tornava obrigatório o peticionamento eletrônico. Segundo a OAB, a medida restringiria o exercício da advocacia no estado, já que muitos profissionais do direito não teriam como atender às exigências do TRT. O caso foi parar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem competência para colocar um ponto final na discussão.

Os obstáculos para navegar na rede mundial de computadores também estão tirando o sono das próprias administrações dos tribunais. O TJAM, por exemplo, firmou uma parceria com o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), órgão subordinado à presidência da República, para garantir acesso à internet a 20 comarcas do interior do estado. Sem essa mãozinha do governo, o tribunal teria de pagar a uma empresa privada de telefonia cerca de R$ 7 milhões ao ano por esse serviço via satélite, já que não existe rede de fibra ótica que leve internet de banda larga a todo o Amazonas. "A arrecadação do TJ para infra-estrutura não chega a isso. E esgotar nossos recursos para conectar o interior nos deixaria de mãos atadas para realizar outras tarefas importantes", explica Taketomi.

Contudo, a dor de cabeça que mais incomoda os entusiastas da digitalização da Justiça é a diversidade de sistemas utilizados em fóruns e tribunais para receber e distribuir processos eletrônicos. Isso porque a lei não exige que todos adotem a mesma plataforma. Na realidade, cada um pode desenvolver a sua própria – o que inviabiliza troca de informações entre magistrados de estados e cortes diferentes, e atrapalha o andamento das ações.

O CNJ até criou um programa, originalmente batizado de Projudi, que é distribuído gratuitamente aos órgãos que ainda não desenvolveram seus sistemas. Talvez esteja aí o embrião de uma única plataforma que interligue toda a Justiça. Essa uniformização, no entanto, vai esbarrar na liberdade que a própria Constituição garante às administrações dos tribunais para aperfeiçoar sua gestão interna. O juiz Roberto Taketomi, por exemplo, acha que as soluções em tecnologia da informação desenvolvidas pelo TJAM estão muito à frente das formuladas pelo CNJ, e diz que adotar o Projudi seria um retrocesso.

Na opinião de Paulo Roberto Pinto, do STF, no atual momento é mais fácil e produtivo fazer com que os diferentes sistemas já em funcionamento troquem informações e conversem entre si – o que, diga-se de passagem, ainda não virou realidade – do que criar um único para o país todo. "Não sou contra o sistema único, é claro que existem vantagens. Só que os tribunais já implantaram suas próprias iniciativas. Mesmo assim, defendo o trabalho em conjunto", pondera.

Segurança pública

O processo eletrônico também pode ajudar a resolver um dos itens mais preocupantes da atual agenda do poder público: a superlotação de penitenciárias. O juiz Cláudio do Prado Amaral, titular da 1ª Vara das Execuções Criminais e corregedor dos presídios de São Paulo, produziu um estudo sobre o impacto que a informatização do processo de execução penal – que trata da concessão de benefícios a detentos – traria para desafogar o sistema carcerário brasileiro. A conclusão é impressionante: a simples adoção de tecnologias digitais poderia liberar até 20% das vagas, gerando uma economia de R$ 864 milhões por ano aos cofres públicos.

"O sistema possibilita que um pedido de benefício seja analisado mais brevemente. Então, a espera de meses cai para poucos dias. Assim, o preso fica menos tempo no cárcere, aliviando a pressão sobre o sistema prisional", afirma Amaral. "E não é uma questão só de liberação de vagas, mas também de economia, porque o Estado deixa de arcar com os custos de manutenção do cárcere. Isso representa uma economia anual que paga a implementação de um grande sistema", completa.

A adoção de novas tecnologias pela Justiça na esfera criminal também rende controvérsias, como o debate sobre a utilização de videoconferências para o interrogatório de presos. Atualmente, existem dois projetos de lei (PL) no Congresso que versam sobre o assunto. Um é de autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que calcula em R$ 1,4 bilhão por ano o montante gasto com a escolta de detentos até o local de audiência. O outro leva a assinatura do deputado Carlos Humberto Mannato ("Manato", do PDT-ES). "A idéia surgiu a partir do momento em que foi criado um aparato muito grande para transportar o traficante Fernandinho Beira-Mar. Toda vez que se desloca um preso perigoso há risco de fuga, além de isso gerar um custo altíssimo para o Estado brasileiro", justifica o deputado.

Por outro lado, os críticos da videoconferência argumentam que essa prática fere alguns preceitos essenciais da Constituição, principalmente o chamado "direito de ampla defesa". De acordo com Kenarik Felippe, juíza da 16ª Vara Criminal de São Paulo e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), mesmo que um dos projetos vire lei de fato, ele vai dar origem a uma legislação inconstitucional. "Faz parte do conceito de ampla defesa a participação nos autos processuais", explica.

Ela também argumenta que é possível contar nos dedos de uma só mão os casos de fuga ocorridos durante o trajeto até o local de audiência. E ainda diz que o Poder Executivo tem uma boa dose de responsabilidade nesse problema, ao "usar a transferência de presos como instrumento de controle. Alguém que comete um crime em Osasco vai parar em São José do Rio Preto. Isso significa ficar distante da família, não receber visita", acrescenta.

Na verdade, a adoção da videoconferência pode funcionar como um tiro pela culatra, já que a condenação de um acusado poderá até ser desconsiderada, se instâncias superiores da Justiça entenderem que foi utilizado um meio ilegítimo de obtenção de provas contra o réu. "Eventualmente, uma pessoa que deveria estar presa pode até ser solta por causa desse vício no processo", afirma Kenarik. Isso porque o próprio STF já se manifestou contrário à videoconferência, no ano passado. O deputado Manato, porém, acredita que a tecnologia garante, sim, o direito de ampla defesa, e espera que a suprema corte brasileira revise sua posição.

Sem dúvida, o universo das tecnologias da informação oferece uma infinidade de possibilidades para melhorar o funcionamento da Justiça. Infelizmente, durante décadas o país ainda sofrerá com a herança dos milhões de processos em papel que correm atualmente nas diversas instâncias. A mudança para a plataforma digital, mais do que uma boa alternativa, beira o imprescindível. E o tempo – como bem sabem os brasileiros que aguardam a resolução de seus casos pelo Poder Judiciário – urge. 


Diagnóstico on-line

As tecnologias digitais também vêm emprestando suas ferramentas para trazer à tona informações valiosas sobre a própria estrutura e organização da Justiça nacional. Por incrível que pareça, até o primeiro semestre deste ano não existia um banco de dados confiável que revelasse, por exemplo, o número de juízes existentes no Brasil ou de ações atualmente em curso.

Para reverter essa situação de autodesconhecimento, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tem a missão de fiscalizar e orientar o funcionamento do Poder Judiciário, lançou em fevereiro deste ano um programa batizado de Justiça Aberta. Basicamente, trata-se de um amplo cadastro informatizado que registra o que se passa no dia-a-dia das instâncias estaduais, federal e trabalhista.

Fóruns e tribunais de todo o país mandam por via eletrônica informações sobre localização, número de funcionários, juízes responsáveis, quantidade de processos analisados, entre outros conteúdos relevantes. O levantamento, que ainda não foi finalizado, também vai revelar dados sobre arrecadação e serviços prestados pelas chamadas "serventias extrajudiciais" – popularmente conhecidas como cartórios.

"Esse trabalho tem uma múltipla finalidade: conhecer, diagnosticar e corrigir. E também está no seu contexto o monitoramento da produtividade de cada magistrado brasileiro. Vamos poder saber, entre outras coisas, por que uma vara produz mais que outra", resume Murilo Kieling, juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, órgão subordinado ao CNJ. "É um marco divisor da Justiça brasileira. É o conhecimento total da nossa realidade, o que é fundamental para a administração judiciária", define.

 

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