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As rodovias que conduzem à morte

Há décadas, as estradas e ruas do país ferem e matam milhares de pessoas

HENRIQUE OSTRONOFF

No estado do Pará, em uma ultrapassagem proibida na BR-153, três pessoas morreram. Na BR-407, na Bahia, o motorista de um caminhão carregado com tubos de aço perdeu o controle e bateu em dois ônibus, matando também três pessoas. No Rio Grande do Sul, seis pessoas perderam a vida em conseqüência de duas colisões frontais. E no mesmo estado, na região de Passo Fundo, ao invadir a pista contrária, uma ambulância se chocou com uma caminhonete. Os quatro ocupantes da viatura de socorro morreram e duas pessoas que estavam no outro veículo se feriram gravemente.

Essas ocorrências se deram entre os dias 18 e 21 de abril de 2008 em estradas federais e são apenas alguns exemplos da enorme quantidade de acidentes que aconteceram durante o feriadão de Tiradentes. De acordo com nota do Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF), foi a primeira vez no ano em que a seqüência de quedas no número de acidentes durante os últimos feriados prolongados foi interrompida.

No total, o DPRF registrou nas estradas federais em todo o país 1.837 acidentes, que deixaram 97 pessoas mortas e outras 1.214 feridas. No feriado da Semana Santa de 2008, foram 1.657 ocorrências, com 75 mortes e 1.043 feridos.

Os estados campeões de acidentes no feriado de Tiradentes, ainda segundo o DPRF, foram Minas Gerais, com 284; Santa Catarina, com 203; Rio de Janeiro, com 167; São Paulo, com 161; e Rio Grande do Sul, com 155. Nem mesmo a rodovia Presidente Dutra, que administrada sob concessão à iniciativa privada vem recebendo melhoramentos físicos e de segurança, escapou do aumento da violência nas estradas. No feriadão deste ano, registrou 152 acidentes, com 78 feridos e 5 mortes. No mesmo período de 2007, houve 80 acidentes, com 61 pessoas feridas e 5 mortes.

As estatísticas mostram o esperado – um grande volume de ocorrências –, embora não possam quantificar o drama vivido por milhares de famílias. Mesmo assim, os números frios conseguem dar uma dimensão aproximada das tragédias que se repetem a cada dia no país e se intensificam nos feriados e nas férias, quando as estradas ficam abarrotadas de veículos.

O DPRF mantém um histórico estatístico de acidentes nas rodovias federais registrados a cada ano. Em 1995, foram 87.836 ocorrências, que resultaram em 6.616 mortos e 51.121 feridos. Dois anos depois, chegou-se ao ápice da tragédia, com 129.400 acidentes, 7.824 mortos e 66.602 feridos. Os últimos dados, de 2007, mostram que ocorreram 122.985 acidentes, com 6.840 mortos e 75.066 feridos. Nesse período de 13 anos, houve 2,47 milhões de acidentes, com 86,7 mil mortos e 822,8 mil feridos.

Perdas expressivas

Os números, porém, são na verdade ainda mais dramáticos. Isso porque os dados do DPRF, assim como os dos órgãos relacionados às rodovias estaduais, não primam pela exatidão. Mortos e feridos são computados como tais somente a partir do relato policial feito no local do acidente. As vítimas que falecem em hospitais, mesmo quando encaminhadas em estado grave, entram na categoria de feridos. E, se uma lesão for diagnosticada algum tempo depois, longe do local, fica fora das estatísticas. De acordo com o estudo Impactos Sociais e Econômicos dos Acidentes de Trânsito nas Rodovias Brasileiras, produzido em 2006 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em conjunto com o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), em 2005, por exemplo, houve nas estradas federais 4.064 casos de morte pós-acidente que devem ser somados aos 6.352 relatados. E os feridos foram 22.816 a mais do que os 66.066 informados.

O mesmo estudo traz números de 2004 referentes às rodovias estaduais de alguns estados – Ceará, Espírito Santo, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo –, além do Distrito Federal. Ainda que as estatísticas das unidades da federação não sigam um padrão comum – o que dificulta um diagnóstico mais preciso da situação em todo o país –, servem para dar uma idéia do quadro geral. Nas estradas desses estados, aconteceram cerca de 111 mil acidentes, com 4.725 mortos e 65.261 feridos. Nas federais, no mesmo ano, foram registrados cerca de 112 mil acidentes, com 6.119 mortos e 66.117 feridos. No total, entre estaduais e federais, houve uma média de 611 ocorrências por dia, ou 24 por hora.

O relatório do Ipea contém também uma estimativa dos custos financeiros dos acidentes rodoviários ocorridos entre junho de 2004 e julho de 2005 nas estradas de todo o país: R$ 22,03 bilhões. De acordo com José Aroudo Mota, coordenador de Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico do instituto, em 2007 esse valor subiu para R$ 23,7 bilhões, perto de 60% do superávit da balança comercial do Brasil no ano, que foi de cerca de R$ 40 bilhões. Mota explica que nesse total estão incluídas principalmente despesas hospitalares e pós-hospitalares, remoção de veículos e três tipos de perda: de patrimônio público e privado, de produção do acidentado e de arrecadação do Estado. Outros gastos, como os que envolvem processos judiciais, não estão contabilizados. Ainda segundo Mota, se a esse valor forem somados os custos das ocorrências em áreas urbanas, chega-se a R$ 30,4 bilhões, "o que equivale a 1,2% do PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro", diz.

O Brasil, porém, não é uma exceção no contexto mundial. A versão resumida do Informe Mundial sobre Prevenção de Traumatismos Causados pelo Trânsito, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2004, traz dados alarmantes sobre acidentes de trânsito urbanos e rodoviários e mostra que o problema atinge todo o planeta. "Estima-se que, a cada ano, no mundo, morram 1,2 milhão de pessoas por causa de choques nas vias públicas e até 50 milhões fiquem feridas."

De acordo com o relatório da OMS, a cada dia o trânsito provoca cerca de 3 mil vítimas fatais. Em 1990, essa era a nona maior causa de mortes no planeta e representava uma perda econômica expressiva: cerca de 1,5% da soma do PIB de todos os países. "O custo mundial é estimado em US$ 518 bilhões anuais, dos quais US$ 65 bilhões correspondem aos países de renda baixa e média – um valor superior ao que recebem em ajuda para o desenvolvimento."

Responsabilidade

As causas dos acidentes, porém, estão bem mais próximas do dia-a-dia do cidadão brasileiro. O jornalista Fernando Pedrosa, especialista em prevenção no trânsito e ex-coordenador nas regiões sul e sudeste do Programa de Redução de Acidentes no Trânsito (Pare) do Ministério dos Transportes, assinala: "De uma maneira bem simplificada, existem três fatores que interferem no nível de segurança de uma rodovia: o veículo, a via e o condutor". Segundo ele, "o fator humano é o que mais contribui para os elevados riscos de acidente e para a gravidade de cada um deles". Excesso de velocidade, principalmente, ultrapassagens em locais proibidos, motoristas alcoolizados, cansaço e travessia de pedestres em estradas de tráfego intenso são os principais motivos dos milhares de mortos e feridos gerados nas estradas.

Os números do DPRF confirmam as afirmações de Pedrosa. Segundo o órgão, cerca de 81% dos acidentes acontecem em pistas em bom estado de conservação, 71% em retas, 54% em plena luz do dia e 63% com tempo bom. De acordo com a assessoria de comunicação do DPRF, "dos motoristas que se envolvem em ocorrências de trânsito, um terço reconhece que não prestava atenção ao que fazia no momento do acidente". Os atropelamentos também salientam a participação do fator humano: "20,1% dos mortos em rodovias federais eram pedestres, ou 1 em cada 5. A maioria absoluta dos atropelamentos ocorre em área urbana, grande parte deles nas proximidades de passarelas", informa a assessoria.

Rodolfo Alberto Rizzotto, editor do site Estradas.com.br e criador do SOS Estradas, programa que visa à redução de acidentes nas rodovias, aponta também o fator humano como o responsável por 90% das ocorrências. No entanto, segundo Rizzotto, dirigir ignorando as regras de trânsito não é a norma geral. "A maioria dos motoristas costuma respeitar os limites de velocidade e mantém um comportamento relativamente seguro. Em uma rodovia como a Bandeirantes [estrada estadual de São Paulo], em que o limite é de 120 quilômetros por hora, a maioria dos motoristas não o excede. Os que provocam acidentes são aqueles que normalmente abusam da velocidade, fazem em rodovias de pista simples ultrapassagens perigosas, dirigem sob efeito do álcool, e os que não respeitam o limite do próprio corpo e dirigem cansados."

A seu ver, o cansaço é um problema muito grave quando se trata de condutores profissionais – embora seja comum também entre motoristas de automóvel particular –, uma vez que compromete o nível de atenção. "Não estou me referindo à possibilidade de a pessoa cochilar ao volante, mas ao fato de que o motorista cansado equivale em algumas circunstâncias àquele alcoolizado. Vários estudos feitos fora do Brasil fazem essa comparação", afirma Rizzotto.

O chefe do Departamento de Medicina Rodoviária da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), Lambros Katsonis, estudou os problemas que os motoristas de caminhão enfrentam nas estradas. No início dos anos 1990, o médico montou um consultório num posto de gasolina à beira da rodovia Presidente Dutra, em Barra Mansa (RJ), onde atendeu voluntariamente 130 caminhoneiros. Em 2003, coordenou a área médica de um grupo que fez atendimento itinerante nas estradas, e teve contato com 495 motoristas. Durante esses trabalhos, Katsonis teve acesso a alguns dados importantes: cerca de 70% dos condutores de caminhão admitiram consumir bebidas alcoólicas e 50% tomavam os chamados "arrebites" – anorexígenos (remédios para tirar o apetite), que têm como um dos efeitos colaterais a insônia.

"Os caminhoneiros fazem uso de ‘arrebites’ para se manter acordados por muito tempo e chegam a dirigir até 20 horas por dia", diz Katsonis. "E quando o efeito dessas medicações está acabando, o motorista não tem como saber: ele simplesmente apaga e dorme. Essa é uma das principais causas de acidentes."

Em 2007, segundo o DPRF, cerca de 25% dos acidentes tiveram o envolvimento de caminhões, contra 47% de automóveis. No entanto, da frota brasileira, estimada pelo Denatran em cerca de 49 milhões de veículos, eles representam algo em torno de 6%, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT) de novembro de 2007. José Fonseca Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), que conta com cerca de 100 mil filiados, todos autônomos, credita essa alta porcentagem de participação de veículos de carga nas ocorrências à má conservação e sinalização deficiente das rodovias, à idade elevada da frota – média de 18 anos – e principalmente ao mercado predatório do serviço de transporte de cargas, que impõe preços aviltantes aos caminhoneiros autônomos e prazos exíguos para descarga, motivando longas jornadas de trabalho – de até 18 horas por dia – e o excesso de velocidade. "O caminhoneiro está nas mãos do agenciador de carga, que tira sua pele. E se ele recusa o valor do frete, o serviço é passado para outro", afirma o presidente da entidade. Para proteger a categoria, a Abcam está lutando pela aprovação de uma proposta feita pelo Ministério da Justiça de uma lei que limita a jornada de trabalho dos motoristas de caminhão a 14 horas diárias, com a obrigatoriedade de descanso de pelo menos 30 minutos a cada 4 horas de viagem.

Legislação falha

O presidente da Abcam levanta outro aspecto da questão, unanimemente lembrado pelos especialistas: a má fiscalização nas vias incentiva os motoristas a cometer infrações. Rodolfo Rizzotto atribui não só à falta de punição, como às falhas na legislação, as barbaridades que ocorrem nas estradas brasileiras. E lembra duas medidas recentes que ajudam a aumentar o número de acidentes. Primeiro, a alteração do Código de Trânsito Brasileiro, realizada em 2006, que aumentou de 20% para 50% o limite acima da velocidade máxima para que o motorista seja punido com a suspensão de sua carteira de habilitação. "Como existe ainda uma tolerância de 7% do radar, numa rodovia em que é proibido passar dos 120 quilômetros por hora, o motorista só terá a carteira suspensa se trafegar a, pelo menos, 194 quilômetros por hora", diz Rizzotto.

Outro ponto é a Resolução 214 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que entrou em vigor em maio de 2007, obrigando à clara visualização pelo motorista da localização de radares medidores de velocidade, inclusive daqueles móveis, que devem contar sempre com a presença de um agente policial. Dessa maneira, o condutor pode saber onde estão os equipamentos e diminuir a velocidade antes de passar por eles. "Não existe paralelo disso em nenhum país sério do mundo. Na Inglaterra, por exemplo, policiais rodam pelas estradas à paisana, em veículos descaracterizados, com equipamentos de filmagem para registrar as infrações cometidas pelos motoristas" , afirma Rizzotto.

O governo federal tenta reverter as falhas na legislação mediante mudanças que tornem mais severo o Código de Trânsito Brasileiro. Cabe lembrar que o endurecimento das penalidades instituídas pelo atual código, em 1997, produziu uma significativa e imediata redução no número de ocorrências nas estradas. Segundo dados do DPRF, nas rodovias federais os acidentes passaram de cerca de 129 mil em 1997 para 120 mil em 1998, apesar do aumento da frota de veículos.

O Ministério da Justiça propõe tornar as punições mais efetivas. Entre as propostas de anteprojeto de lei, está a de tornar mais rígidas as classificações das infrações por excesso de velocidade – as médias passariam para graves e as graves para gravíssimas, haveria suspensão do direito de dirigir e multas bem mais pesadas para quem excedesse de 31 quilômetros por hora a 50 quilômetros por hora a velocidade máxima permitida e, ultrapassando esse limite, o motorista flagrado teria como pena complementar a prestação de serviços à comunidade, por até dois anos, em hospitais da rede pública que atendam vítimas de acidentes de trânsito. Além disso, pensa-se em aumentar o valor das multas para as ultrapassagens em locais proibidos.

Em mais um esforço do poder público para diminuir os acidentes, em abril deste ano a Câmara dos Deputados aprovou a medida provisória (MP) assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva que proíbe a venda de bebidas alcoólicas em estabelecimentos às margens das rodovias federais, a não ser que estejam localizados em áreas urbanas. Ao mesmo tempo, inseriu um dispositivo mais restritivo no Código de Trânsito, já que a MP, se aprovada também pelo Senado Federal, determinará que dirigir sob a influência de álcool ou outra substância psicoativa em qualquer quantidade passará a ter classificação gravíssima, com multa de cinco vezes o valor-base desse tipo de infração e suspensão do direito de conduzir veículos por um ano. Além disso, no momento da autuação a carteira de habilitação será apreendida e o veículo, retido.

Desde janeiro de 2008 outra MP proibia a venda de bebidas alcoólicas nas margens das estradas federais, independentemente de os estabelecimentos se encontrarem em zona urbana ou rural. Essa medida, por si só, não surtiu efeito imediato e foi muito criticada por prejudicar a economia de algumas cidades cortadas por rodovias. De acordo com o DPRF, o número de ocorrências permaneceu praticamente igual depois da MP, usando-se como base comparativa o carnaval de 2007 e o deste ano: 2.358 e 2.369, respectivamente. No entanto, os mortos passaram de 145 para 128, e os feridos, de 1.590 para 1.472.

Fernando Pedrosa acredita que a legislação e a punição são fundamentais para coibir os abusos nas rodovias. "Não adianta fiscalizar, emitir uma multa e o cidadão continuar trafegando. É necessário que haja a norma, sua fiscalização e a punição exemplar e justa imediata." Ele considera, no entanto, que as medidas punitivas não são suficientes para alterar a situação das estradas. "Isso só vai mesmo ocorrer com mudança de cultura e de comportamento, através de um processo permanente de educação. E essa ação não deve se restringir apenas à educação formal do condutor, tem de incluir todos os níveis de formação como cidadão, começando em casa, com o exemplo que o pai e a mãe dão ao filho, passando pelos bancos escolares, de maneira que seja definitivamente assumida e incorporada. Aí as coisas ficam mais fáceis", conclui. 

 

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