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Terremoto: a energia que destrói

A intensidade é menor, mas o tremor de terra à brasileira também deixa suas marcas

FRANCISCO LUIZ NOEL


Povoado de Caraíbas (MG): casas derrubadas
Foto: Osvaldo Afonso/Secom MG

O silêncio prometia mais uma madrugada tranqüila a Caraíbas, povoado rural de 400 habitantes em Itacarambi, no norte de Minas Gerais. De repente, pouco depois da meia-noite, uma força incontrolável sacudiu com violência o lugarejo. Arrancada do sono para um pesadelo na vida real, em meio a gritos e correria, a população esteve no epicentro de um terremoto de 4,9 graus na escala Richter. O pavor vivido em 9 de dezembro de 2007, um domingo, nunca será esquecido. Seis casas foram abaixo e outras 70 ficaram inabitáveis. Numa das que ruíram, Jessiane de Oliveira Silva, de 5 anos, morreu sob os escombros. A menina é a primeira vítima fatal de um tremor de terra no Brasil.

A tragédia em Itacarambi, às margens do rio São Francisco, a 663 quilômetros de Belo Horizonte, lançou por terra um lugar-comum entre os brasileiros. Como as casas simples de Caraíbas, também foi ao chão a confiança imprevidente de que o país é uma ilha de tranqüilidade quando o assunto é terremoto. "Realmente, o Brasil está numa região que não é propensa à ocorrência de fenômenos sísmicos de magnitude muito grande, maior que 6,5 na escala Richter. Mas não estamos imunes a abalos como esse, que podem ocorrer em outros pontos do país", alerta o geofísico Jesus Berrocal, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP).

O tremor que atingiu cinco estados na noite de 22 de abril deste ano, alcançando 5,2 graus na escala Richter, é exemplo. Por cinco segundos, às 21 horas, milhares de pessoas em cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina sentiram os efeitos do sismo, que teve seu epicentro a 218 quilômetros do litoral paulista, sob o Atlântico. O susto foi tão grande que, só em São Paulo, o Corpo de Bombeiros recebeu mais de 3 mil telefonemas em menos de 24 horas, com relatos de rachaduras em paredes e outras avarias em residências. O maior estrago ocorreu em Mogi das Cruzes, onde o deslocamento de uma adutora deixou mais de 20 mil pessoas sem água.

Não foi, porém, o maior tremor no Brasil. Em 1955, dois abalos superaram 6 graus na escala Richter – o primeiro, de 6,2 graus, com epicentro na serra do Tombador, em Mato Grosso, em 31 de janeiro; o segundo, de 6,1 graus, no mar do Espírito Santo, em 28 de fevereiro. "Foram os de maior magnitude de que temos certeza", afirma Berrocal, observando que não houve destruição porque os epicentros estavam em áreas despovoadas. O geofísico é um dos autores do livro Sismicidade no Brasil, lançado em 1984 pelo IAG, com registros de 594 tremores ocorridos desde o século 16. "Há estudos geológicos e sismológicos que apontam a possibilidade de terem ocorrido sismos com magnitude maior de 6,5, principalmente no nordeste", diz.

A região lidera os registros de abalos no país. Dois anos após o lançamento do livro, uma sucessão de tremores com epicentros na região de João Câmara espalhou medo no Rio Grande do Norte. Na área, durante dez anos, foram mais de 60 mil sismos – dos imperceptíveis à população aos que superaram a magnitude 5 na escala Richter. Atualmente, o principal foco de atividade sísmica do nordeste está no norte do Ceará. Em Sobral e municípios vizinhos, mais de 700 abalos aconteceram desde 28 de janeiro deste ano. Embora 90% não tenham sido percebidos, os restantes foram suficientes para avariar moradias e espalhar o medo. O mais forte, de 3,9 graus, ocorreu em 4 de abril.

"O fenômeno é causado pela fraqueza das rochas em áreas onde elas estão submetidas a esforços", explica, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o técnico em sismologia Eduardo Alexandre Menezes. Principal referência em sismologia no nordeste, graças ao conhecimento acumulado desde os abalos ocorridos em João Câmara, a UFRN mantém estações sismológicas na região de Sobral desde 2007. Na linguagem dos especialistas, fraquezas de rochas ocorrem em zonas da crosta terrestre fraturadas no passado remoto. São as chamadas falhas geológicas, passíveis de novas quebras, dependendo de fatores como o peso exercido sobre elas.

O mais antigo registro citado em Sismicidade no Brasil data de 1560, quando o mundo sequer sonhava com os sismômetros e sismógrafos que hoje detectam esses eventos nos quatro cantos da Terra. Num dia entre abril e junho daquele ano, no litoral paulista, "um tremor de terra horrível" atingiu as vilas de São Vicente, escreveu o padre Simão de Vasconcelos em Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil. Como o livro é de 1663, o jesuíta deve ter tomado por base relatos preservados na congregação. Em 1690, outro religioso, Samuel Fritz, registrou em seu diário um "grandessíssimo terremoto" que deixou "árvores arrancadas e terras desmoronadas" perto de Manaus, no Amazonas.

No século passado, o salto no número de registros foi proporcional ao avanço dos estudos sismológicos no país. Em 27 de janeiro de 1922, um tremor de 5,1 graus, com epicentro em Espírito Santo do Pinhal (SP), foi sentido no estado e vizinhas regiões de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Outro abalo de impacto, de 4,1 graus, com epicentro em Cunha (SP), ocorreu em 22 de março de 1967. Pela intensidade incomum, lembra Jesus Berrocal, esse sismo serviu de referência para a construção da usina nuclear Angra I, em Angra dos Reis (RJ). Em operação desde 1982, a usina é resistente a abalos e desliga-se automaticamente em caso de sismo que ultrapasse a margem de segurança do projeto.

Placa contra placa

A crosta terrestre é um quebra-cabeça com 12 peças em movimento – as placas tectônicas, que suportam continentes e mares. Em vez do encaixe perfeito das pecinhas de papelão que divertem crianças e adultos, há tensão entre esses gigantescos blocos de rocha, fazendo com que se desloquem sobre o magma derretido do núcleo da Terra. Os movimentos e fraturas nos pontos de contato das placas geram os grandes sismos, que liberam, do fundo do planeta, as poderosas ondas de energia mecânica capazes de fazer a terra tremer. Quando o evento ocorre sob o oceano, pode haver maremotos e tsunamis semelhantes ao que matou, em dezembro de 2004, 220 mil pessoas em 12 países do sul e do sudeste da Ásia.

"Como o Brasil está no centro da placa sul-americana, os tremores no país resultam de causas locais, intraplaca, em conjunto com outras decorrentes do movimento da placa como um todo", explica, no Observatório Sismológico da Universidade de Brasília (UnB), o geofísico George Sand França, que mantém um blog sobre terremotos na internet (http://tremordeterra.blogspot.com). Ele cita como exemplo o nordeste, onde a atividade sísmica ocorre próximo à borda de uma bacia sedimentar. "O peso dessa bacia pode alterar o sistema de pressão no interior da Terra e afetar regiões que já têm fraturas", diz. "São teorias que se aplicam ao nosso país, por sua posição no centro da placa."

A placa sul-americana espraia-se do oceano Pacífico ao Atlântico. "O território brasileiro é caracterizado por uma geologia antiga e típica das regiões tectonicamente estáveis", tranqüiliza, no Rio de Janeiro, o chefe de sismologia do Observatório Nacional, Jorge Luiz da Silva. A oeste, em pontos de atrito da placa sul-americana com a oceânica de Nazca, ocorrem sismos a mais de 600 quilômetros de profundidade. A leste, no meio do Atlântico, onde as placas sul-americana e africana se encontram, os sismos são rasos, a 50 quilômetros. Dando curso a um processo iniciado há 200 milhões de anos, com a separação dos continentes, as duas placas afastam-se quatro centímetros a cada ano.

Movimento oposto entre as placas indo-australiana e da Eurásia levantou as ondas gigantes que devastaram a costa asiática em 2004. O choque aconteceu sob o oceano Índico, perto da ilha indonésia de Sumatra – região conhecida por vulcões e pela ocorrência de sismos semelhantes. No caso do tsunami, o evento sísmico afundou o fundo do mar em até 20 metros na faixa de contato das placas, 6 mil metros abaixo da superfície. Como a energia liberada impôs à massa de água uma velocidade proporcional à profundidade da lâmina de água, as ondas atingiram velocidade de até 700 quilômetros por hora, causando impacto instantâneo e avassalador ao atingir as áreas costeiras.

Apesar do número de mortos, esse tsunami não foi a maior tragédia relacionada a sismos que a humanidade já presenciou. A mais destruidora aconteceu em 1556, matando 830 mil pessoas, na China, mesmo país onde em 12 de maio último ocorreu um terremoto de 7,9 na escala Richter, arrasando a província de Sichuan. No rescaldo da destruição, acompanhada no mundo inteiro pela TV, as autoridades contabilizaram mais de 80 mil mortos e desaparecidos, outros 300 mil feridos e 5 milhões de desabrigados. Nas cidades, milhares de edifícios e casas desabaram. No campo, 12 milhões de bovinos e frangos morreram e milhares de hectares de lavoura foram devastados.

Do tremor de 1556 – registrado em livros como Introduction to Seismology, do alemão Markus Bath, de 1973 –, a magnitude é uma incógnita, por falta de instrumentos de medição. A escala Richter somente surgiria em 1935, criada pelo americano Charles Richter para quantificar a energia liberada pelos sismos e mensurar sua magnitude. Mesmo a escala Mercalli, que apenas considerava os efeitos dos terremotos sobre pessoas e estruturas na superfície da Terra, só foi elaborada pelo italiano Giuseppe Mercalli em 1902.

Território a descoberto

Ao contrário de países vulneráveis a grandes terremotos, o Brasil não dispõe de uma cobertura sismológica feita de forma organizada. A Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda, porém, que cada país tenha uma rede nacional operada por um centro de dados, para o monitoramento e o fornecimento de informações sismológicas. "O Brasil tem e não tem uma rede nacional. Há diversas instituições de pesquisa fazendo estudos, mas não existe um órgão que gerencie essa cobertura", lamenta George Sand França. "Temos estações bem melhores que muitos países, mas falta uma política de integração e cooperação."

O geofísico da USP Jesus Berrocal atribui essa desarticulação ao tamanho do país e ao desinteresse generalizado pelos fenômenos sismológicos. Por conta dessa despreocupação, observa, a sismologia é ciência jovem no país, tendo tomado corpo só nos anos 1960, quando um arranjo de estações foi instalado no planalto Central por uma expedição da UnB com a Universidade de Edimburgo, da Escócia, e o Centro Regional de Sismología para América del Sur (Ceresis), organismo internacional com sede em Lima, no Peru. Outro impulso à pesquisa, a partir da década de 1970, foi dado pela construção de hidrelétricas, que impuseram a instalação de estações para o estudo de sismos induzidos por grandes reservatórios de água.

O risco de abalos como o de 22 de abril último levou a Petrobras a aplicar R$ 6,1 milhões na criação da Rede Sismográfica do Sul e Sudeste, numa parceria iniciada em 2007 com o Observatório Nacional, do Ministério da Ciência e Tecnologia. Além de produzir mais de 80% do petróleo nacional na bacia de Campos, no norte fluminense, a empresa investe no aumento da oferta de gás do mar capixaba e aposta pesado na bacia de Santos. Nessa área, novas descobertas vêm se juntando à do megacampo de Tupi. Toda atividade sísmica ao longo da costa será registrada com precisão pelas 12 estações sismológicas da rede, instaladas de Linhares (ES) a Tubarão (SC).

Uma rede como essa teria fornecido informações importantes, em 24 de outubro de 1972, sobre tremores originados no mar. Às 12h30 daquele dia, um abalo de 5,3 graus na escala Richter, com epicentro no oceano, assustou milhares de pessoas da capital do Rio de Janeiro à do Espírito Santo. O sismo de Macaé, como ficou conhecido, por ter sacudido com grande intensidade casas e edifícios nessa cidade e na vizinha Campos, foi sentido numa área de mais de 200 mil quilômetros quadrados. Foi o mais forte tremor registrado na área batizada em 1976 como bacia de Campos, época em que a Petrobras fez as primeiras descobertas das reservas off-shore que jorram mais de 80% da produção atual de petróleo no país.

"A rede vai nos permitir conhecer mais a sismicidade da região", destaca o geofísico Darcy do Nascimento Júnior, um dos coordenadores da Rede Sismográfica do Sul e Sudeste. Quando as estações começarem a operar, no fim de 2009, os registros vão compor um banco de dados sísmicos da plataforma continental e das duas áreas mais populosas do país. A segurança das operações não é o único interesse da Petrobras, que espera ter dados úteis a descobertas. "As empresas só sabem de petróleo e gás conhecendo a subsuperfície da Terra", resume Darcy. Outras redes custeadas pela estatal estão previstas para o nordeste, norte e centro-oeste, abrindo caminho a uma cobertura nacional.

A exemplo da rede que começa a ser financiada pela Petrobras, o Observatório Sismológico da UnB tenta tirar do papel um projeto de monitoramento sísmico do território brasileiro. "Esses projetos poderiam se somar, com diminuição dos custos", assinala George Sand França, defendendo a cooperação entre as instituições. Um desafio é a manutenção e a proteção das estações sismológicas em pontos remotos do país. "Para viabilizar a rede, é preciso ter uma equipe de pesquisadores que dêem credibilidade e envolver todos os institutos de pesquisa sismológica do país." Desde 2001, a formação de uma rede brasileira também vem sendo proposta pelo Observatório Nacional.

Tragédia imprevista

Na linha de frente da sismologia brasileira estão USP, UnB e UFRN, além do Observatório Nacional – o primeiro a ter criado uma estação sismológica no país, em 1906. Na USP, o IAG faz estudos como o da região de Bebedouro (SP), onde mantém várias estações. "Nesse local há a atividade sísmica mais importante da atualidade no estado, embora a grande maioria dos eventos seja de pequeníssima magnitude", explica Jesus Berrocal, destacando que esses sismos são induzidos pela ação humana. "A principal causa é a perfuração inadequada de poços para exploração de água subterrânea na bacia do Paraná."

O Observatório Sismológico da UnB está presente em regiões como o norte mineiro, onde desembarcou antes da tragédia de Itacarambi. "Até agora só podemos especular as causas", ressalta George Sand França, para acrescentar que os mais de 800 sismos registrados na região – a maioria de baixa magnitude – podem ter sido provocados pela reativação de uma falha geológica. Os cientistas da UnB foram alvo de cobranças da população, inconformada por não ter sido avisada do risco de um abalo como o que matou a menina Jessiane e inutilizou mais de 70 casas. Para abrigar as famílias, o governo mineiro está erguendo 76 moradias populares em outro local, na área urbana.

"Antes, estive em Caraíbas e dei uma palestra sobre como proceder em caso de terremoto. Normalmente fazemos isso para acalmar a população", conta George Sand França. Depois do tremor, ele assinala, alguns moradores chegaram a agradecer pela palestra e pelo que aprenderam, embora muitos outros tenham cobrado o aviso prévio do abalo. "O problema é que na região não havia casos de terremoto acima de 4 graus na escala Richter", observa. "E a ciência não pode afirmar que vai acontecer um sismo com magnitude 5. A probabilidade de ocorrer, no Brasil, é mínima. Infelizmente, não poderíamos ter previsto a tragédia."

O Observatório Sismológico da UnB e o Laboratório de Sismologia da UFRN enviam suas informações à Secretaria Nacional de Defesa Civil, para que sejam transmitidas aos estados. Governos e sociedade ainda estão longe, porém, de saber como agir antes, durante e depois de tremores intensos. Em regiões de atividade sísmica, como no nordeste e no norte de Minas, uma medida preventiva depende das prefeituras, que poderiam prescrever cuidados estruturais nas novas edificações. Em Caraíbas, lamenta George Sand França, "não existe a mínima segurança nas residências. O pior é que isso parece ser geral, nas casas rurais de baixa renda".

O extremo da precaução seria passar a usar estruturas metálicas nas edificações para que resistam a sismos, como no Japão, mas os especialistas acreditam que o Brasil não precisa chegar a tanto. "Erguer prédios com estrutura sismo-resistente no sudeste seria aumentar desnecessariamente o custo de construção. No caso do nordeste, pode existir essa necessidade", afirma Jesus Berrocal, ressalvando que os cuidados apropriados a essa região estarão mais claros com a implantação de um projeto amplo de estudos sísmicos, que congregue várias instituições brasileiras. Ele também descarta a possibilidade de precisar evacuar a população por causa de fenômenos sísmicos no Brasil.

Divulgar noções de sismologia entre professores, para que as repassem aos alunos, também é uma idéia vista com bons olhos pelos cientistas. Outra iniciativa bem-vinda é a aproximação dos centros de pesquisa com a defesa civil – forma de cooperação prevista pelo Observatório Nacional para o monitoramento sísmico do território fluminense, em projeto recém-aprovado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). "Tudo o que se pode fazer é reduzir o problema", afirma o coordenador do projeto, Jorge Luiz da Silva. "Sismo sempre existiu, existe e vai existir. Faz parte da evolução do planeta."

 

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