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Ciência supera limites do corpo

Avanço das pesquisas aperfeiçoa próteses robóticas e amplia seu uso

NILZA BELLINI


Ilustração: Leandro Shesko

Está próximo o dia em que a neurofisiologia e a robótica, juntas, serão capazes de produzir vestes para devolver o movimento a pessoas tetraplégicas. Essa possibilidade, que lembra histórias de ficção como a do ciborgue – organismo híbrido de máquina e corpo –, está contida nas experiências que um cientista brasileiro faz na Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos. Ali, Miguel Nicolelis, paulistano formado pela Universidade de São Paulo (USP), comanda uma equipe de neurocientistas que estudam a comunicação entre o cérebro humano e as próteses. Por suas pesquisas, ele poderá ser o primeiro brasileiro a ganhar um prêmio Nobel de Medicina.

Esses estudos só foram possíveis porque as técnicas aplicadas no laboratório de Nicolelis provaram que o cérebro tem enorme plasticidade na associação entre a visão e o movimento. Certo de que um neurônio sozinho de nada servia – ao contrário do que acreditou por décadas a neurofisiologia – e importam os circuitos elétricos de um conjunto deles, Nicolelis desenvolveu, no início dos anos 1990, uma técnica para monitorar até 500 de uma só vez, em tempo real. Implantou no cérebro de animais de seu laboratório (primeiro ratos e depois macacos), centenas de eletrodos que não interferem nas atividades normais e se tornam quase uma parte do organismo. Enquanto isso, outros pesquisadores de seu grupo registraram a atividade neural emitida por esses eletrodos para desvendar a linguagem cerebral. Conseguiram transformá-la, de impulsos elétricos, em comandos interpretados por computadores. Essa interface cérebro-máquina permite distinguir sensações experimentadas pelo animal, como expectativa e memória do que foi vivenciado.

Nicolelis treinou macacos como Aurora, especialista num jogo de computador que exigia o uso de um joystick para movimentar uma bolinha exibida na tela de um monitor e com ela atravessar um disco. Quando isso acontecia, o disco desaparecia da tela. Em 2003, os cientistas notaram que Aurora, mesmo sem o joystick, conseguia comandar as ações do jogo por meio de um braço robótico que recebia os impulsos elétricos dos eletrodos ligados a ela. Ou seja, ela fazia o braço robô acertar a esfera só com a força de seu "pensamento".

Outra macaca do laboratório, Idoya, executou neste início de ano uma façanha ainda mais fantástica. Aprendeu a caminhar numa esteira rolante instalada no laboratório de Duke e enviou, por meio de impulsos de seu cérebro, os comandos para um robô andar do outro lado do mundo, no laboratório de robótica ATR de Kyoto, no Japão. A atividade cerebral de Idoya foi transmitida por uma conexão via computador ultra-rápida – mais veloz do que as instruções transitavam do cérebro para suas pernas. Sensores no robô japonês encaminharam a sensação da caminhada de volta para a macaca.

"Nossos ancestrais inventaram ferramentas, começando pela pedra lascada. A tecnologia aos poucos se sofisticou a ponto de agora ser possível integrar ao homem tecnologia como as próteses robóticas", explicou Nicolelis, durante uma palestra para médicos realizada na Faculdade de Medicina da USP, no início de maio. "A interface do cérebro com máquinas permitirá que, em breve, ele se liberte dos limites do corpo", acredita o cientista brasileiro.

O ponto final dessa estrada é imprevisível. Há muito tempo, o homem quer integrar artefatos e corpo. Referências a aparelhos protéticos estão no Rig Veda, o primeiro e mais importante dos quatro Vedas, livros sagrados do hinduísmo, escritos por volta do ano 3000 a.C. Heródoto, historiador grego, relatou em suas Histórias, em 440 a.C., o caso de um soldado que fabricou uma perna de pau para substituir parte de seu pé amputado e, assim, voltar ao campo de batalha. Na Idade Moderna, as próteses foram construídas pela primeira vez em 1560, pelo cirurgião francês Ambroise Paré. No século 17, foram feitas luvas de metal para proteger o restante das mãos de espadachins, feridos durante duelos. O alemão Otto Bock, em 1919, modernizou as botas para encaixar em tocos de pernas, dividindo-as em três partes: o engate, o pilão e o pé.

A descoberta de Pasteur, em 1870, de que muitas doenças eram contagiosas ou infecciosas levou à introdução de técnicas anti-sépticas cirúrgicas desenvolvidas por Joseph Lister, dez anos depois. Foi, então, possível fazer a distinção entre a infecção do tecido causada pela rejeição do implante de próteses e as contaminações decorrentes da falta de assepsia. Estava aberto o caminho para a era dos ciborgues.

Materiais biocompatíveis

Livre-docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a engenheira Cecília Amélia de Carvalho Zavaglia, especialista no desenvolvimento de novos materiais, explica que substâncias biocompatíveis permitem recuperar as funções de tecidos ou órgãos. Metal, cerâmicas especiais ou tecidos biológicos podem ser matéria-prima para próteses de quadril, joelho, cotovelo, perna, braço, mão ou raízes dentárias. Os tecidos biológicos vêm do ser humano ou de animais como a ovelha, o boi ou o porco: é deles que são feitas algumas das válvulas cardíacas.

O cirurgião cardíaco Domingo Braile, um dos precursores dos transplantes cardíacos no Brasil, famoso por sua perícia e por sua indústria de biotecnologia, a Braile Biomédica, nota que, muitas vezes, a descoberta da biocompatibilidade se deveu ao acaso. A cirurgia de catarata evoluiu muito em 1949, quando o médico inglês Harold Ridley implantou a primeira lente intra-ocular, feita de plástico rígido. "Era de um material semelhante ao dos pára-brisas de aviões, que, bombardeados durante a 2ª Guerra Mundial, respingavam no olho do piloto sem provocar reações colaterais", conta Braile.

Feitos por especialistas de diferentes áreas médicas e da engenharia de materiais, os biomateriais combinam propriedades mecânicas, químicas, físicas e biológicas para tornar viável sua utilização como substitutos de partes do corpo. Essa biocompatibilidade é específica para cada parte do organismo e depende não só dessas características, mas também do local do implante e da tarefa que o corpo vai executar.

Os biodegradáveis são totalmente absorvíveis. Os bioativos interagem com os tecidos do entorno e, por causa de reações biofísico-químicas, têm favorecida sua fixação. Os bioinertes não interagem com o meio biológico e mantêm suas propriedades físicas e mecânicas. Esse é o caso das próteses feitas de metais como titânio, ouro e platina, cerâmica e silicone.

O material ideal, além de biocompatível, bioativo, deve apresentar a biofuncionalidade necessária para garantir flexibilidade ou suportar peso, como acontece com os da odontologia e da ortopedia. Nessas especialidades, os mais usados são as ligas metálicas e as cerâmicas especiais. Talvez porque o Brasil apresente alto índice de acidentes de trânsito, o país é também um dos centros mais avançados do mundo em implantes. Além disso, o envelhecimento da população levou ao aperfeiçoamento das técnicas médicas e da qualidade dos produtos destinados a corrigir o desgaste ósseo provocado pela idade. No joelho e no quadril, eles substituem ossos e cartilagens quase perfeitamente e duram mais de dez anos. Os procedimentos cirúrgicos necessários para sua inserção foram simplificados. Agora o paciente deixa o hospital em dois dias; há cinco anos precisava de uma semana. O tamanho do corte também diminuiu: no quadril caiu de 15 para 8 centímetros.

A professora aposentada Jacyra Prata, de 84 anos, depois de perder a capacidade de andar devido à porosidade dos ossos do joelho direito, substituiu-o por uma prótese. A cirurgia foi feita pela equipe de Eugênio Faccio, em Ribeirão Preto (SP). Cerca de 50 dias depois do procedimento, dona Jacyra caminhava no quintal de sua casa, com a ajuda de uma bengala. Três meses depois, ela dispensou a bengala. Então, fez a cirurgia de catarata nos dois olhos. "Não sou a Mulher Maravilha, mas tenho olho de vidro e perna de metal", diz, bem-humorada.

A prótese usada na professora é de titânio e cerâmica especial. As desse tipo estão entre as mais avançadas. O titânio serviu inicialmente para a indústria aeronáutica, por ser resistente à corrosão e ao desgaste. É caro. Para baratear o custo dos implantes, o Sistema Único de Saúde (SUS) ou convênios e seguros médicos fornecem próteses feitas de aço inox austenítico, que apresentam menos durabilidade, resistência e biocompatibilidade que as ligas de titânio. O risco de rejeição, nesses casos, é maior.

A grande novidade são as próteses controladas por microprocessadores. São usadas para substituir membros amputados e permitem que o paciente "sinta" a perna perdida e consiga praticar diferentes tipos de atividade que exigiam, antes da amputação, força muscular.

A reconstrução do crânio e da face

Luciano Dib, coordenador bucomaxilofacial da disciplina de Cirurgia de Cabeça e Pescoço da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), é um dos principais especialistas brasileiros em operações de alta complexidade do crânio e do maxilar. Ele refaz a aparência de quem perdeu ossos da face ou do crânio, implantando próteses reconstrutivas com a ajuda de parafusos de titânio. Os procedimentos adotados por Luciano Dib ajudam a devolver a mastigação e a fala e facilitam a reintegração social das vítimas. "Essa é uma área ainda em desenvolvimento", avisa ele.

Próteses como as usadas por Dib podem contar, desde 2006, com a ajuda de um software feito no Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPRA), uma instituição do Ministério da Ciência e Tecnologia localizada em Campinas (SP). Foi ali que o engenheiro Ailton Santa Bárbara montou seu InVesalius, um programa capaz de criar modelos virtuais, tridimensionais, de estruturas anatômicas, a partir de imagens tomográficas. O software possibilita ainda a modelagem de próteses reparadoras para quem tem alto grau de deformidade crânio-facial e é distribuído gratuitamente aos médicos.

O nome InVesalius é uma homenagem ao anatomista belga Andreas Vesalius, que viveu no século 16 e é considerado o pai da anatomia moderna. "A biomodelagem faz peças idênticas às do crânio ou da face que se quer reconstruir e também define o molde de placas ou peças a ser usadas em outras partes do corpo", diz Ailton. A imagem virtual obtida pelo software facilita, ainda, a visualização clara do problema, a escolha mais adequada da intervenção e o planejamento exato e o ensaio dos procedimentos cirúrgicos.

A sede da alma

As válvulas cardíacas de pericárdio bovino idealizadas e fabricadas no Brasil por Domingo Braile, precursor no segmento, são produzidas quase artesanalmente, sem a ajuda de softwares, mas com sofisticada bioquímica. A Braile Biomédica mantém convênios com diversas instituições, do Brasil e do exterior, para o aperfeiçoamento desse material e de outros destinados aos implantes no coração. "Próteses cardíacas são sempre reconstrutoras. É impossível eliminar um pedaço do coração doente e manter o paciente vivo", explica Domingo Braile.

Reconstruir as válvulas do coração humano com material biológico tratado ou do próprio corpo do paciente é um procedimento rotineiro, atualmente. Para chegar a esse estágio, a medicina viveu uma grande revolução, inclusive porque o órgão era considerado a sede da alma até a década de 1960. A Igreja Católica definia o momento da morte como o da parada cardíaca. A ciência fez essa idéia mudar. Hoje, menos de 50 anos depois do primeiro transplante cardíaco e de milhões de implantes de material não-humano em corações, ninguém mais discute a ética ou a eficácia dessas técnicas. Alguns pacientes que receberam prótese valvular orgânica biológica porcina ou de pericárdio bovino fabricada pela Braile Biomédica vêm sendo acompanhados há mais de 20 anos, sem complicações.

Adolfo Leirner, médico e engenheiro que projetou e construiu o primeiro marca-passo de dupla câmara do mundo, festeja o grande progresso no tratamento de insuficiências cardíacas a partir de transplantes do coração ou do uso de próteses valvares. Nada o fascina mais no momento, entretanto, que a chamada medicina regenerativa. Diretor da Divisão de Bioengenharia do Instituto do Coração (InCor), o cientista, que se graduou engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 1958 e médico pela Faculdade de Medicina da USP em 1978, entusiasma-se com os anúncios dessa nova era médica.

"Dezenas de companhias de biotecnologia e laboratórios de universidades do mundo todo estão desenvolvendo formas de substituir ou regenerar partes do corpo a partir do crescimento de células humanas", nota. Se até agora só era possível pensar na aplicação da engenharia às ciências biológicas com preponderância de peças artificiais, esse cenário começa a mudar. "O novo é pesquisar a possibilidade de o coração de um porco transgênico ser utilizado na substituição de um coração humano. As perspectivas se ampliaram", diz Leirner.

Engenharia de tecidos

Muito possivelmente, daqui a 20 anos a medicina poderá ter abandonado os materiais biocompatíveis, substituindo-os por técnicas de crescimento celular. Laboratórios já ensaiam clinicamente, por exemplo, o crescimento do osso tibial. Para isso, células-tronco são inseridas em um material poroso cortado de forma específica. "Temos um projeto semelhante aqui na Unicamp", diz Cecília Zavaglia. "Mas esses processos de engenharia de tecidos são muito complexos, porque dependem do tamanho e da interconectividade dos poros do material que serve de amparo para o tecido biológico amadurecer", explica.

Nos Estados Unidos, um produto do laboratório de biotecnologia Organogenesis, equivalente à pele, foi o primeiro tecido originado de célula humana a ganhar a aprovação da Food and Drug Administration (FDA), instituição americana que fiscaliza a fabricação de drogas e outros materiais médicos. Essa pele é utilizada no tratamento de úlceras da perna. No Brasil, a Unicamp é também a instituição mais avançada nesse tipo de pesquisa.

A fabricação de tecidos humanos servirá para substituir qualquer órgão, mas essa conquista ainda vai demorar. Domingo Braile prevê o dia em que surgirão válvulas cardíacas, artérias e veias. "Será que estarei vivo?", indaga o médico, com seus setenta e poucos anos. É possível. Em alguns avançados centros de pesquisa americanos e europeus, proteínas geneticamente engenhadas já têm sido utilizadas com sucesso na reconstrução de vasos sanguíneos.

Proteínas são também usadas para criar novos dentes em cães. Em Boston, médicos construíram bexigas humanas a partir de células da pele e as implantaram em ovelhas. Agora querem testá-las em humanos. Proteínas chamadas "aquaporinas", que permitem às células secretar água, têm sido empregadas para recriar glândulas salivares deterioradas por doença ou irradiação. Glândulas estão sendo produzidas para secretar drogas. A reconstituição do fígado e do pâncreas está próxima. No caso do fígado, uma membrana esponjosa semeada com células-tronco já permite a criação de pedaços do tamanho de uma moeda dessa que é a maior víscera do corpo humano.

Um grupo americano formado por diversas instituições de pesquisa está empenhado em regenerar membros inteiros de mamíferos por meio de técnicas de crescimento celular. O modelo aplicado é o de um animal fascinante, a salamandra, que quando perde uma pata passa por um processo natural de regeneração que leva à reconstrução do membro perdido. No caso dos mamíferos, as células conseguem apenas fechar o corte, deixando uma cicatriz no local do ferimento.

"Falta ao homem, para conseguir essa proeza, aprender a conversar adequadamente com as células, para que elas reconstituam membros ou órgãos específicos e complexos em sua forma, tecido e função", diz Braile. "Conversar" com as células é uma ação mais árdua do que capacitar robôs a processar pensamentos, como prometem as experiências de Nicolelis. Falta, também, à ciência resolver importantes questões éticas. Quando esses obstáculos estiverem vencidos, será pequena a chance de escritores de ficção científica imaginarem novas histórias sobre o futuro da medicina.

 

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