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“Fazer rima é a parte mais fácil”

Em desafios movidos a improviso, o freestyle faz sucesso na periferia

MAURÍCIO MONTEIRO FILHO


Integrantes do Brutal Crew: origem da Liga dos MCs
Foto: Maurício Monteiro Filho

As primeiras notas da música fazem a mente viajar pelo velho oeste americano – um assobio misturado a ruídos de vento ao fundo intensifica a sensação de sonho. Quase dá para ver dois cowboys em posição de duelo, diante de uma audiência de donzelas, xerifes e foras-da-lei de todo tipo.

São diferentes, porém, os caminhos que o imaginário de Emicida, o compositor da canção, percorre. Nem John Ford nem Sergio Leone o inspiram, mas a Vila Zilda, bairro da zona norte da capital paulista, as histórias em quadrinhos da infância e da adolescência, um teclado Casio repetindo a mesma nota por horas a fio e "a cozinha mais esquisita do mundo: um fogão, uma geladeira e umas quinze caixas de som".

"Triunfo" é o primeiro single lançado, de forma completamente independente, por um dos mais promissores artistas do cenário hip-hop nacional. E não é coincidência alguma que seus compassos iniciais evoquem o tempo do faroeste.

Emicida foi forjado a ferro e fogo em duelos muito particulares: as batalhas de mestres de cerimônia (MCs). Ali, as armas se convertem em microfones, os cowboys saem de cena, dando lugar aos mais hábeis rimadores de que se tem notícia, e o velho oeste é substituído por boates, teatros ou até salas de sinuca que compõem a cena marginal do hip-hop nacional. A trilha sonora fica a cargo da poesia livre e ritmada, em forma de rap, conhecida como "freestyle", composta de improviso no espaço de alguns segundos, diante de centenas de pessoas.

O estilo se vale das fórmulas de ritmo e composição do rap, mas tem um diferencial: a criação é instantânea. Não vale decorar as letras, ou sequer escrevê-las. Tudo é feito em cima da hora, sob o julgamento atento de uma platéia cada vez mais diversa. E o pior: na forma de uma disputa entre MCs que dura poucos minutos e se divide em rounds. O melhor rimador, no entender do público, vence.

"Só eu faço rap no país"

Em 2007, o estilo atingiu o auge em termos de exposição e amplitude. Pela primeira vez foi realizada uma edição nacional da Liga dos MCs, o mais importante evento do gênero na atualidade. Com etapas eliminatórias em cinco capitais – Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e São Paulo –, a competição representou um marco para uma modalidade de hip-hop que surgiu de forma completamente descentralizada, com manifestações espalhadas por boa parte do território brasileiro.

Essa pulverização foi a marca do movimento hip-hop como um todo, em suas origens. Na época em que começaram a chegar ao Brasil, a cultura e a música rap atingiram as margens das áreas metropolitanas, de forma desordenada. Isso causava a impressão, nos primeiros que aderiram a essa corrente, de que eles eram os únicos a fazê-lo em todo o país.

O mesmo ocorreu com o freestyle. Foi só quando grandes eventos voltados para o público hip-hop começaram a acontecer, no fim da década de 1990, que os talentos da modalidade foram se desentocando, trocando experiências, e uma cena específica do freestyle começou a surgir.

Se São Paulo foi onde o rap convencional mais se difundiu, o Rio de Janeiro desempenha o mesmo papel para o improviso. As primeiras sementes do estilo, que hoje caminha de mãos dadas com o hip-hop original na capital carioca, foram lançadas na Festa Zoeira. No final do século passado, o evento serviu de ponto de encontro para jovens rappers e acabou representando a descoberta de que já havia bastante gente envolvida com o movimento.

Esse intercâmbio foi responsável por impulsionar iniciativas semelhantes, que divulgavam outras vertentes da cultura hip-hop, entre elas o improviso. Assim, se o coração do freestyle brasileiro estava no Rio de Janeiro, seu epicentro ficava na Lapa. Foi lá que um grupo de amigos lançou as bases do evento que viria a se difundir por todo o Brasil sob o nome de Liga dos MCs.

Ainda por volta de 1998 e 1999, o coletivo hoje conhecido como Brutal Crew – "crews" são as células básicas de organização dentro do hip-hop e representam grupos de reflexão e criação, seja de músicas, eventos ou outras formas de expressão – decidiu levar a brincadeira de improvisar para fora das salas de amigos.

Da L.A.P.A. para o Brasil

A emancipação definitiva do freestyle ocorreu quando a Festa Zoeira acabou, em 2002. "Foi um ano em que quase nada aconteceu no mundo do hip-hop carioca", comenta Aori, um dos fundadores do Brutal, sobre o período que sucedeu ao fim da Zoeira.

Para preencher esse vácuo, ele e seus colegas do Brutal Crew, numa sexta-feira qualquer de 2003, resolveram fazer suas rimas instantâneas numa sinuca na Lapa. "Quando a batalha começou, havia seis pessoas e um cachorro no salão", relembra, rindo, DJ Babão, um dos presentes.

A baixa audiência não os demoveu da idéia de levar o encontro adiante. Surgia naquela noite a "Batalha do Real". O nome, à primeira vista filosófico, se refere, na verdade, ao formato criado por seus idealizadores para agregar mais MCs. "Cada participante pagava R$ 1 para entrar na disputa, e o vencedor levava tudo", explica Aori.

Na semana seguinte, depois de uma promoção mais intensiva, o evento se repetiu, no mesmo lugar. Em seis meses, já atraía entre 200 e 300 pessoas, com 16 MCs batalhando por noite.

"Tinha chegado a hora de fazer um campeonato. Precisávamos de mais exposição, assim como trazer MCs mais experientes", diz Aori. César Schwenck, outro membro do Brutal Crew, rabiscou um regulamento que previa cinco semanas de disputa, com uma fase de classificação em que os MCs batalhavam contra o maior número possível de adversários. Nas etapas finais, valia o sistema de eliminatória. Nesse formato, foi criada, em 2003, a Liga dos MCs, no Rio de Janeiro.

A primeira edição da competição foi uma verdadeira aposta dos integrantes do Brutal, que tiraram dinheiro do próprio bolso, contando com poucas parcerias. Em meio ao mais autêntico calor carioca, cerca de 700 pessoas lotaram o salão de sinuca nas primeiras batalhas, onde não cabiam mais de 300. As ruas da Lapa pararam com o engarrafamento causado pela multidão do lado de fora.

Não bastasse o sucesso inicial, por volta daquela época estreava nos cinemas o filme 8 Mile – Rua das Ilusões, sobre a trajetória do rapper americano Eminem. E a produção ecoava nas telas muitas das cenas que os rimadores daqui vivenciavam na realidade.

A despeito da participação no campeonato de figuras de nome no circuito hip-hop do Rio de Janeiro, o vencedor foi um novato até então: Papo Reto. Hoje, ele figura entre os artistas de maior repercussão no rap produzido no estado.

Dali em diante, a competição só ganhou notoriedade. No ano seguinte, chegava ao Teatro Rival, importante espaço cultural do Rio de Janeiro. A repercussão foi tanta que atingiu os cadernos de cultura de grandes jornais. Nos anos 2005 e 2006, a Liga se mudou para o Teatro Odisséia, no coração da Lapa, e contou com convidados de envergadura, como Marcelo D2 e Mr. Catra. Durante todo esse tempo, a cena do freestyle carioca continuou contando com as Batalhas do Real.

O sonho inicial dos membros do Brutal Crew havia se concretizado. "Queríamos ser diferentes de um recital de piano, que é inacessível", declara Aori. DJ Babão arremata: "Um músico erudito pode ser um virtuose, mas um rimador utiliza um canal que todo mundo domina: a fala".

Mesmo se atendo a sua origem independente, a Liga atraiu parceiros de peso em razão do impacto local que gerava. Marcas e empresas famosas como Nike, Universal e Light chegaram a dar apoio. Na edição nacional, a parceria foi feita com a Red Bull.

Cruzando fronteiras

O ano passado, porém, superou as expectativas. As etapas estaduais ficaram lotadas por um público que até então só acompanhava as batalhas pelo computador ou rádio. "A versão nacional movimentou toda a cena", relembra DJ Babão.

A maior prova da amplitude que a Liga atingiu está no fato de que o campeão brasileiro saiu de Belo Horizonte, fora do eixo predominante Rio-São Paulo. MC Simpson começou a ouvir rap ainda na infância, por influência da mãe, que era dançarina de soul. "Escrevi as primeiras letras com 11 anos", conta ele. O interesse pelo freestyle veio mais tarde, quando teve contato com os rimadores do Rio de Janeiro e de São Paulo, através da Rádio Favela. Entre seus ídolos está o próprio Aori, fundador da Liga. "Estourei uma Moët Chandon, aquela de piloto de corrida, ao lado dos caras que admirava de longe", narra ele, que derrotou dois cariocas na etapa final, em pleno Rio de Janeiro, diante de 1,5 mil pessoas.

Simpson é como a maioria dos artistas que somaram um novo valor ao verbo "batalhar". Além das batalhas de MC, vivencia a luta cotidiana de "ser peão", como ele mesmo diz. "Hoje, estou trabalhando como pintor. Cada dia a gente faz algo diferente." Ao menos, o mineiro de 22 anos encara o tempo dividido entre o rap e as tarefas que garantem seu sustento como algo positivo. "Quando estou lidando com outras coisas, arrumo mais inspiração para fazer minha música." Com sua vitória, ele incluiu Belo Horizonte definitivamente no circuito. E o freestyle segue derrubando fronteiras.

Diretamente da Lapa para o morro do Vidigal, a vida de rappers e improvisadores cariocas toma conta da tela, em uma pequena sala da ONG Nós do Morro, que promove o acesso a cultura aos moradores da comunidade. A paisagem hip-hop se sobrepõe ao conhecido cenário do morro crivado pelas luzes dos barracos, reinando sobre a Avenida Niemeyer. A projeção é de um documentário chamado L.A.P.A., realizado por Cavi Borges e Emílio Domingos. O vídeo narra a vida de artistas que buscam emplacar no mundo do hip-hop.

MC Macarrão é um deles. Desconfiado, segue na contracorrente da onda do freestyle. "Se você faz improviso, ninguém mais compra teu show", diz ele. Por isso, recusa-se a participar de eventos desse tipo.

Ele entrou no rap por um atalho. Sua relação com esse tipo de música era de ouvinte, enquanto fazia carreira no jogo do bicho. "Eu sou do tempo da galera que sabia roubar no talento", define. Morador da Vila Mimosa, famosa área de prostituição do Rio de Janeiro, por boa parte da vida – "Saí da zona com 29 anos" –, suas composições diferem daquelas feitas pelos que vêm do morro. "Eu falo do Estácio, bicho, não faço protesto."

Mas, ao fim da sessão, Macarrão flexibiliza seus padrões e toma o microfone de assalto. Nem o mais cético dos rappers resiste ao improviso. Talvez seja efeito do vídeo, a décima versão de um trabalho que durou dois anos e rendeu cem horas de material. Depois de ter sido premiado na Holanda, deve ser lançado em breve no circuito nacional.

Tendo acompanhado o desenvolvimento da cena hip-hop da Lapa – que é chamada de "L-A-P-A" pelos membros do movimento, o que justifica o título da obra –, Borges declara que o freestyle é muito bem aceito pelo público. "É uma forma de os artistas promoverem sua imagem."

O vencedor

O dilema entre ser rapper e fazer improviso foi facilmente resolvido por um dos rimadores de maior peso do Brasil. Como em tudo a que se dedica, ele optou pelo caminho mais difícil: acumular quase todos os títulos que se pode contabilizar no cenário freestyle e, com um nome construído, se dedicar de corpo e alma a sua música. Entre dezenas de conquistas, arrematou a Liga dos MCs de 2006. "Nenhum MC trabalha para ser o segundo", define Emicida.

Sua trajetória na música teve início por intermédio de seu pai, DJ de bailes black. Era ele quem empilhava caixas de som na cozinha, o que deixava o filho intrigado.

Emicida, no entanto, começou a se arriscar nas rimas pela via oposta. "Minha mãe freqüentava a igreja evangélica, e eu ia aos cultos junto com ela", relembra. Quando voltava para casa, de posse de um gravador, compunha hinos religiosos.

Uma de suas virtudes maiores está em ter entendido alto e claro as regras do jogo. Afinal, o freestyle não tem a ver com aproveitar-se dos defeitos do outro – o que muitas vezes ocorre nas batalhas –, mas sim com vencer pela competência. Não é à toa que esse é um dos únicos estilos capazes de criar diálogo entre artistas de periferias do Brasil todo e representantes de classes ricas, ou mesmo de transpor as barreiras entre facções rivais do tráfico no Rio de Janeiro.

Foi essa competência que Emicida demonstrou de sobra na final da Liga de 2006, na qual derrotou o carioca MC Gil. Depois de um duelo parelho, na casa do adversário, encerrou assim a batalha – as rimas se encaixando perfeitamente no tempo cadenciado pelo metrônomo que ele mantém funcionando 24 horas por dia na cabeça: "Vai morrer filhote no improvisado/ Eu sou caranguejo/ Ele vai vazar de lado/... Vai fazer o quê, contra o Emicida?/ Senhor Jesus, pelo amor, me tira daqui com vida".

O inusitado é que Emicida entrou de vez no mundo do improviso por mero acaso. Ele tinha 15 anos quando recebeu um prêmio – uma viagem de avião ao Recife – num concurso de histórias em quadrinhos. "Até então, nunca tinha saído do meu bairro. Para mim, o mundo acabava no Metrô Santana", relembra.

Na volta, tentou se inscrever em uma oficina sobre o tema, mas perdeu o prazo. No mesmo espaço, aconteceria um workshop sobre rap. Lá, ele teve sua primeira experiência com freestyle. "Engasguei assim que comecei a falar." Voltou para casa decidido a sair-se melhor no dia seguinte. E, por cautela, escreveu três páginas de rimas, que decorou. "Mas, quando subi ao palco de novo, as palavras sumiram", recorda-se. Por falta de opção, apelou para o improviso mesmo, numa performance que até hoje lhe rende contatos de trabalho.

Emicida não é apenas seu nome de MC. É também sigla para "Enquanto Minha Imaginação Compuser Insanidades, Domino a Arte". E o faz tão bem que gravadoras nacionais e estrangeiras já o sondaram por seus trabalhos no rap.

Para se dedicar a eles, Emicida deixou de lado as batalhas. Seu desafio agora é reproduzir no rap o impacto que atingiu com o freestyle. "Triunfo" – disponível na internet (www.myspace.com/emicida) – é sua mais forte investida nesse sentido. E, com ela, o objetivo não deve tardar: "... Se o rap se entregar, a favela vai ter o quê?/ Se o general fraquejar, o soldado vai ser o quê?/ ... No fim das contas, fazer rima é a parte mais fácil/ Já escrevi rap com as ratazanas passeando em volta, tio/ Goteira na telha, tremendo de frio/ Quantos morreram assim e no fim quem viu, meu/ Vocês ainda querem mesmo ser mais rua que eu?" 


Brasilidade

Considerado por muitos um estilo fechado, o hip-hop tem se aberto a novas influências. E um forte elo de conexão entre esse ritmo e outros tipicamente brasileiros é o freestyle, que tem semelhança com manifestações como o repente nordestino ou o partido carioca.

Assim, os MCs têm atingido um rap de nome e RG indiscutivelmente brasileiros, rompendo com a versão americana. Aori diz que seus primeiros ídolos eram todos estrangeiros, "mas a geração criada nas batalhas admira muito mais os artistas brasileiros".

Reflexo disso é que a Liga de 2007 deu espaço para ritmos regionais em seus palcos. Um trovador abriu o evento no Rio Grande do Sul, um embolador no Recife, um partideiro no Rio de Janeiro, entre outros.

Emicida nasceu num 17 de agosto, mesma data do compositor Candeia, uma de suas fortes referências. E outro sambista domina suas vitrolas atualmente: Cartola. "Ele é o elemento que preciso para trazer brasilidade a minha música", justifica.

Outro rapper que trilha esse novo caminho do hip-hop é o pernambucano MC Maggo. Ele representou o estado na Liga de 2007. Hoje, inclui o repente e a cantoria de viola na música produzida por sua banda. "Esse casamento surgiu naturalmente", relata Maggo.

O conjunto participou do festival Rap Repente, ocorrido em 2007 em Campina Grande, cidade paraibana famosa por seu forró. O evento foi o primeiro a reunir representantes dos dois estilos, e atraiu multidões de até 15 mil pessoas durante três dias.

A banda foi apadrinhada por um grande cantador local de viola, Ivanildo Vila Nova, que participa de uma das faixas presentes na página do grupo no MySpace (www.myspace.com/confluenciape). O nome da composição é "Nordestina". E em suas letras, sobrepostas a uma base de rap, está a síntese do futuro do hip-hop no Brasil: "Ao invés de partir, unificar/ É assim que pretende o Confluência/ ... Conseguindo na hora palma e fama/ Confluência deseja, sonha e clama/ Longa vida aos poetas imortais/ Ver o rapper juntar-se ao violeiro/ Mas ligado à métrica e oração/ Cada um com a sua inspiração/ Procurando ocupar o mundo inteiro".

 

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