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As vantagens do respeito à natureza

Empresas investem em eficiência ecológica e aumentam competitividade

CELIA DEMARCHI


Tecido Gueto: a partir de sobras
da indústria / Foto: Divulgação

Criar produtos e serviços de qualidade que consumam cada vez menos insumos e matérias-primas não é um desafio novo para as empresas. Há pelo menos duas décadas, as grandes companhias vêm buscando a ecoeficiência para atender mercados mais exigentes, melhorar a competitividade e aumentar a produtividade. Embora invenções como torneiras que otimizam o uso da água, sensores de presença integrados a sistemas de iluminação, eletrodomésticos, motores industriais e automotivos que consomem menos energia e combustível representem grandes conquistas, tudo isso ainda equivale a gotas num oceano de incertezas. O que é, afinal, um produto ecoeficiente?

Um bom exemplo de como a eventual eficiência ecológica de um produto pode surpreender vem da Basf, a maior fabricante de produtos químicos do mundo. Preocupada com a perda de mercado, na Alemanha, de seu Lucantin Pink, sintético químico empregado para garantir a coloração alaranjada ao salmão de cativeiro – nessa situação privado de ingerir algas marinhas que contêm a substância natural astaxanthin –, a empresa decidiu comparar seu produto com as alternativas que o mercado considerava menos agressivas ao meio ambiente. E acabou demonstrando, por meio de sua ferramenta de avaliação de ciclo de vida (ACV), que, apesar de obtido por processo químico, o produto é o que causa menor dano ambiental.

O estudo comparou os impactos da criação de salmão alimentado com ração enriquecida com astaxanthin obtido por três processos: o químico (da Basf), o natural (a substância é extraída de algas cultivadas especialmente para a finalidade) e o biológico, que possibilita produzir astaxanthin por meio de fermentação.

O sistema natural demonstrou ser o que mais consome matéria-prima, mas ficou à frente do biológico, o menos eficiente de todos, em uso do solo, emissão de poluentes, toxicidade potencial e consumo de energia. Em todos os aspectos, o Lucantin Pink foi o que apresentou menor impacto, o que lhe rendeu o selo de ecoeficiência e a reversão da curva de queda de mercado na Alemanha. "O custo de produção é semelhante nos três casos. O maior benefício, justamente do produto químico, é ambiental", diz Georgia Cunha, diretora vice-presidente da Fundação Espaço Eco, da Basf.

Outro exemplo de ecoeficiência comparativa que surpreende o leigo, demonstrado ainda pela ferramenta de ACV da Basf, são as embalagens plásticas de 500 ml da fabricante de produtos lácteos alemã Müller Milch, escolhidas após análise que bateu as cartonadas e as de vidro. Este último material recebeu a pior avaliação para a finalidade, pois sua produção exige exploração maior do solo e mais espaço de armazenagem, além de oferecer mais riscos de acidentes. A embalagem cartonada perdeu pontos devido à dificuldade e ao alto custo de seu processo de reciclagem.

Se o estudo fosse feito para uma empresa brasileira, porém, o resultado poderia ter sido outro, pois a capacidade de reciclagem de plástico na Alemanha – que tem uma rigorosa política de resíduos sólidos – é superior à verificada atualmente no Brasil, que recolhe apenas algo em torno de 45% das garrafas PET, por exemplo. "Na Alemanha, o consumidor paga pela embalagem e recupera o dinheiro ao devolvê-la para o varejo", lembra Georgia.

A ferramenta de ACV da companhia analisa o produto a partir de 22 referenciais e é considerada superior aos sistemas utilizados pelo grupo financeiro Storebrand para classificar investimentos ambientalmente responsáveis, pela Shell e pelo World Business Council for Sustainable Development (WBCSD). Empregada na Alemanha desde 1996 e nos Estados Unidos desde 2002, foi disponibilizada no Brasil a partir de 2005. No país, a Fundação Espaço Eco realiza as análises para outras grandes companhias, como grupo Votorantim, Braskem, Alcoa, Vicunha, Santista e International Paper: "Como nossa estrutura é enxuta e a equipe ainda pequena, selecionamos os clientes. A estratégia é atender empresas grandes, que possam replicar o conceito na cadeia produtiva", explica Sonia Chapman, diretora presidente da fundação.

Ela informa ainda que a Fundação Espaço Eco promove cursos de gestão ambiental rentável para pequenas e médias empresas, com recursos da GTZ, agência oficial de cooperação tecnológica do governo alemão. Esse segmento adota projetos mais pontuais, uma vez que os custos de ACV são altos em relação a sua capacidade de investimento.

Banco de dados

O Brasil, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia, em parceria com instituições de ensino, órgãos oficiais e entidades empresariais, começa a preparar seu próprio banco de dados para uso em ACV. "O conhecimento está evoluindo nessa área. O bambu, antes festejado como eficiente para fabricação de fios para a indústria têxtil, acabou condenado ao se descobrir que o processo de produção é muito poluente", diz Cyntia Malaguti, professora de mestrado em design e de graduação em design de moda, gráfico e industrial do Centro Universitário Senac, em São Paulo. "Estão surgindo muitos materiais novos e interessantes para a indústria em geral. A grande limitação é a falta de um banco de dados brasileiro para ACV."

Ainda assim, a indústria nacional vem concebendo produtos cada vez mais eficientes. A Mueller, da pequena Timbó, em Santa Catarina, fabricante de eletrodomésticos para as classes C e D, é um exemplo. No final de 2006, lançou a lavadora de roupas semi-automática SuperPop, desenhada para ser eficiente e chegar ao consumidor com o preço mais baixo possível. Para reduzir o custo de transporte – um dos mais altos, incluindo o combustível –, a máquina, que pesa apenas 6,8 quilos, é desmontada, e uma de suas partes é encaixada na outra. Assim, ocupa 50% do espaço necessário para acomodar as lavadoras convencionais em veículos e áreas de estoque.

A SuperPop tem outras qualidades: demanda metade do plástico e, na operação, consome um terço do volume de água em relação aos modelos semelhantes do mercado. "Isso decorre do conceito de construção do produto", diz Gustavo Chelles, da empresa de design Chelles & Hayashi, de São Paulo. O projeto também prevê o fim do ciclo do produto: de acordo com o designer, todas as peças da lavadora são identificadas com a simbologia internacional da matéria-prima empregada, para facilitar o processo de reciclagem.

A simplificação dos produtos de consumo e seu direcionamento a públicos cada vez mais específicos como forma de economia de recursos já é tendência mundial. Cyntia Malaguti cita um exemplo: a proposta de telefones celulares da empresa japonesa Muji, popularizada por fabricar uma variada gama de produtos (relógios, malas, artigos para iluminação e papelaria) com materiais obtidos por processos que respeitam o meio ambiente. Os aparelhos dispõem do mínimo necessário de funções e têm como foco o consumidor idoso.

A designer lembra, no entanto, que o auge da personalização foi atingido pelo software Bodymetrics, criado na Inglaterra por Suran Goonatilake. Com o programa, a rede Selfridges, de Londres, abriu, em 2004, uma butique que fornece jeans de grife sob medida. A iniciativa foi seguida pela Harrods em 2006: "O software possibilita eliminar o desperdício de tecidos", diz Cyntia Malaguti.

No Brasil, a popularização dos programas de uso racional de água na década passada promoveu mudanças importantes nas linhas de produção industriais. O desafio era promover economia, conservando os benefícios dos produtos. Assim, surgiram chuveiros eficientes em consumo de água, mas que mantêm o jato forte, bacias e válvulas sanitárias que demandam 6,8 litros de água por descarga, torneiras que lançam água misturada com ar para poupar o insumo, preservando a sensação de frescor.

Em outra frente, foi criado o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), cuja conseqüência foi a produção de motores industriais e eletrodomésticos mais eficientes. Mas essa iniciativa ainda precisa evoluir, na opinião de Marcelo Vespoli Takaoka, do Conselho Brasileiro de Construção Sustentável: "O consumidor vê um selo do Procel e fica satisfeito, mas não sabe que a etiqueta que leva a letra A [a escala vai de A a G] é a que indica o equipamento realmente mais eficiente".

Agora, a indústria da construção civil está articulando uma terceira etapa, que objetiva padronizar medidas de produtos como esquadrias e vidros, segundo Takaoka, para reduzir resíduos de fabricação.

De acordo com Vanderley John, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), o setor é um dos mais ineficientes em termos mundiais. Para mudar essa situação seria necessário adotar processos de reciclagem e escolher materiais adequados e certificados, além de combater a informalidade.

O Banco Real decidiu dar o exemplo, e construiu, em 2006, um prédio sustentável – o que abriga a agência da Granja Viana, em Cotia, na Grande São Paulo. A obra foi acompanhada em todos os detalhes pela SustentaX Engenharia de Sustentabilidade, que concedeu no ano passado à agência o selo USGBC, do U.S. Green Building Council, que atesta construções em que se observaram os critérios do Sistema de Avaliação Ambiental de Edifícios (LEED). Foi o primeiro prédio a receber o selo na América do Sul, segundo Paola Figueiredo, diretora da SustentaX.

Como o projeto previa pé-direito alto e fachada de vidro, a empresa buscou soluções para reduzir a carga térmica em todo o edifício. O vidro recebeu película especial e foram acrescentados brises e marquises do lado externo. O sistema de ar condicionado inclui o equipamento conhecido como "evaporativo", que consome menos energia, e o tradicional chiller, acionado somente quando o calor é intenso. Todos os materiais empregados, como tintas, madeiras, carpetes e selantes são considerados eficientes do ponto de vista ecológico. E a obra foi conduzida de forma a causar o menor impacto possível, o que pode significar preocupação com detalhes aparentemente irrelevantes. Por exemplo: os caminhões só deixavam a construção após ter os pneus lavados (com água de reúso), para evitar poluição do ar com a dispersão de areia e outros materiais.

É difícil compilar produtos eficientes no Brasil, onde ainda não existem testes de qualidade. "Por isso, criamos o selo SustentaX, que já foi concedido ao piso elevado Tate, da Giroflex, após a empresa ter trocado o selante por um produto não tóxico", conta Paola Figueiredo, lembrando que um outro piso, da Paviflex, está em vias de receber a certificação e que outros 50 produtos estão sendo avaliados. "As empresas estão se interessando."

Evolução

O setor de embalagens também vem evoluindo, como lembra Luciana Pellegrino, diretora executiva da Associação Brasileira de Embalagem (Abre). Basta comparar a espessura das garrafas de vidro de refrigerante de cerca de duas décadas atrás com a de hoje, muito mais fina – o que representa, por exemplo, economia de recursos naturais e de combustível (pela redução do peso da carga no transporte). Ou relembrar as antigas garrafas PET, que agregavam uma base de cor preta, descartada após a evolução do design.

Segundo a executiva, no entanto, o consumidor muitas vezes resiste às mudanças, pois tende a entendê-las como perda de qualidade: "Já é possível fabricar vários tipos de embalagem com materiais reciclados, mas não se pode comunicar isso ao consumidor brasileiro, que eventualmente compreende tal fato como negativo".

Algumas empresas, porém, começam a enfrentar esse desafio. Uma delas é a Natura, que informa na embalagem atual de sua linha de cosméticos Ekos o percentual de materiais recicláveis e o fato de esta ser mais leve do que a versão anterior.

É uma forma de conscientizar o consumidor e prepará-lo para um novo cenário, que já começa a se configurar com os recém-lançados programas de recolhimento de embalagens e artigos tóxicos, como pilhas, das grandes redes varejistas e até de um banco (o Real). As empresas se antecipam à política nacional de resíduos sólidos, que está prestes a entrar em vigor, após sete anos de debates. A lei determinará o papel de consumidores, varejo e indústrias na destinação final dos produtos.

Luciana Pellegrino enfatiza ainda que a concepção da embalagem considera qualidade (para assegurar a conservação do produto e a segurança no transporte), redução de eventual desperdício e otimização – tamanho e formato devem permitir o acondicionamento da quantidade máxima possível, sem deixar vazios desnecessários: "Algumas embalagens, como as de salgadinhos, exigem até 10% de espaço vazio, para que o conteúdo não se danifique no transporte", diz, lembrando também que o processo de preencher embalagens de alimentos em pó, que entram misturados com ar, evoluiu: "O sistema empregado nos produtos da marca Toddy já permite que praticamente todo o invólucro seja ocupado".

Cada componente da embalagem moderna também leva a simbologia internacional para os vários tipos de plásticos e papel, que facilita a separação e a reciclagem. "Não se propõe substituir materiais, como o plástico, mas estender ao máximo seu ciclo de vida", diz a diretora da Abre. A entidade está lançando uma cartilha para estimular o consumidor a identificar e separar os materiais. "É preciso esclarecer também que os biomateriais, extraídos de fontes renováveis, ainda não receberam aprovação da Anvisa para aplicação em alimentos, responsáveis por cerca de 40% do consumo de embalagens."

Contudo, o grande gargalo do ecodesign, especialmente no Brasil, está no setor automobilístico, até por causa de seu gigantismo e sua importância econômica. "A cadeia automotiva continua sendo a principal indústria no século 21", explica Sergio Casa Nova, coordenador dos cursos de design industrial, gráfico e de produto do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo.

Os veículos evoluíram bastante nos últimos 20 anos. Passaram a incorporar motores mais eficientes (e agora com capacidade para operar com vários tipos de combustível), peças de plástico recicláveis, que reduziram significativamente seu peso, componentes feitos a partir de fibras longas naturais biodegradáveis (que substituíram a fibra de vidro) ou totalmente confeccionados com PET reciclado, como carpetes e revestimentos.

Apesar de alguns modelos estarem perto de se tornar totalmente recicláveis, ainda não há estrutura para tanto, apenas iniciativas isoladas em todo o mundo. O principal problema, porém, continua sendo o do consumo, na opinião de Casa Nova: "Os veículos ainda são máquinas burras, pois precisam de muito mais energia para transportar a si próprios do que aos passageiros".


Matéria-prima: resíduos

Em todo o país, pipocam iniciativas para reciclar materiais e estender a vida útil de matérias-primas não-renováveis. Uma das mais bem-sucedidas vem da Gueto Ecodesign, do vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul. A empresa cria produtos a partir de resíduos de indústrias da região, que assim conseguem uma destinação mais adequada a esses materiais, normalmente levados para os aterros sanitários. A Gueto ainda aquece o mercado de trabalho dos artesãos locais, para os quais repassa a produção.

Um dos ícones do escritório de design é o Pufe Cubo, recheado com etil vinil acetato (EVA), resíduo das fábricas de calçados do vale dos Sinos. Em vez de lixo, o material vira artigo de decoração de casas nos EUA, que importam a maior parte da produção. Em média, a Gueto mantém estoque de 200 pufes, que pesam 8 quilos cada um.

A empresa produz também o tecido Gueto, composto de retalhos de couro, usado para revestir móveis fabricados na região. "O cliente encomenda no tamanho exato para a peça. Assim, não há sobras", explica Solange Wittmann, sócia da Gueto, que confecciona por mês de 50 a 150 metros quadrados do tecido. Ela costuma visitar outras empresas para avaliar o material descartado e verificar o que é possível produzir com ele: "As indústrias normalmente acham que não geram resíduos ou que estes não servem para nada".

 

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