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Indústria descobre classes populares

Crescimento da renda das camadas mais pobres muda foco dos fabricantes de bens de consumo

ALBERTO MAWAKDIYE


Loja de eletrodomésticos em São Paulo
Foto: Arquivo PB

Voltadas, tradicionalmente, para os consumidores de maior poder aquisitivo, celebradas fabricantes brasileiras de bens de consumo – secundadas por outras não tão famosas, mas nem por isso menos elitizadas – começam a descobrir que produzir em grande escala para as classes populares também pode ser um ótimo negócio. Tais empresas já não estão deixando que esses consumidores recém-chegados ao mercado – na esteira do atual período de bonança econômica e de crédito farto – continuem a ser atendidos unicamente pelas pequenas indústrias quase domésticas que, historicamente, supriram as necessidades dessa faixa de renda por roupas, desodorantes, alimentos, móveis e todo tipo de artigos.

Entre as empresas que começam a disputar o – para muitas delas – inédito mercado, enfileiram-se verdadeiros ícones da indústria brasileira e mundial, como a Unilever, do setor de higiene e limpeza, a Nestlé e a Danone, da área de alimentos, a fabricante de equipamentos de informática Positivo e a produtora de pisos e revestimentos cerâmicos Eliane, só para citar algumas.

A lista é muito maior e poderia ser aumentada indefinidamente. Inclui fabricantes de todos os bens de consumo possíveis e imagináveis. É como se a indústria nacional, tão eficiente e diversificada que já oferece ao brasileiro médio equivalentes de praticamente todos os produtos de que americanos e europeus dispõem – deixando de lado, é óbvio, desagradáveis detalhes comparativos como tipos, marcas e modelos –, tivesse descoberto um exótico Extremo Oriente, ávido por mercadorias, em seu próprio quintal.

"De fato, uma parte importante da indústria brasileira vem adaptando suas linhas de produção para também atender as classes C, D e E, que hoje têm mais renda e parecem bastante dispostas a consumir", diz Roberto Nicolsky, diretor-geral da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec).

De acordo com ele, esse processo de inclusão é benéfico não só para as indústrias e os consumidores, mas também para o próprio país, já que um mercado interno robustecido é fundamental para o crescimento. Também pode servir como uma espécie de compensação para as empresas que estão tendo dificuldade para exportar, por causa do valor do dólar, excessivamente baixo, e como trampolim para as indústrias ampliarem sua base produtiva e, assim, terem reservas para investir mais em inovação tecnológica e concorrerem em melhores condições no mercado internacional. "Foi esse o caminho seguido pelo Japão, pela Coréia e contemporaneamente pela China, e pode muito bem ser agora trilhado pelo Brasil", resume Nicolsky.

Potencial

Diga-se que não é um mercado insignificante esse que as indústrias começam a perseguir. Muito pelo contrário. Acredita-se que, nos últimos dois anos, nada menos do que 20 milhões de brasileiros – para uma população pouco superior a 180 milhões – ascenderam de uma situação de pobreza para se acotovelarem na classe C. Com 86,2 milhões de pessoas, essa faixa de consumo – cuja renda mensal familiar registrou uma média de R$ 1.062 no ano passado – já é a maior do país, com uma participação de 46%.

No cômputo geral, calcula-se que o mercado formado pelas famílias brasileiras que ultrapassaram a linha de pobreza e pelos estratos mais baixos da classe média englobe hoje 120 milhões de pessoas, ou quase 70% da população.

Sozinha, a classe C apresentou potencial de consumo de impressionantes R$ 365 bilhões em 2007, de acordo com cálculos baseados em pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É um pouco mais de um quarto da capacidade total de compra de todas as famílias que moram nos municípios brasileiros, que atingiu R$ 1,4 trilhão no ano passado.

Como termo de comparação, o potencial de consumo da classe B, em 2007, foi de R$ 602,5 bilhões e o da classe A, de R$ 341 bilhões – um pouco menos que o da classe C, portanto. Somadas, as classes A e B perfazem 15% da população.

A ascensão a um maior nível de consumo não se limita, no entanto, a esse estrato social. A massa de renda do total das famílias brasileiras cresceu quase 20% nos últimos dois anos, devido à recuperação da renda e do emprego, à estabilidade de preços, à maior facilidade de crédito e ao crescimento dos recursos para os programas sociais, como o Bolsa Família e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

O papel de alavanca da mobilidade social desses dois programas vem tendo grande importância, por exemplo, no nordeste brasileiro. Graças a eles, a região, que sempre foi uma das mais pobres do país, viu aumentar em 6 milhões o número de pessoas que fazem parte da classe C.

"Mal ou bem, estamos vivendo no Brasil a década da redução da desigualdade", não se cansa de dizer o especialista carioca Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). De fato, segundo estimativa da FGV, de 2001 a 2006 os 10% mais pobres da população tiveram um ganho de renda de 57,5% per capita. A classe C teve, mais ou menos entre esses anos, um acréscimo de renda de R$ 79,5 bilhões. Nas classes D e E, o ganho foi de R$ 38,7 bilhões.

Já os 10% mais ricos do país tiveram 6,8% de ganho real entre 2001 e 2006 – o que, de qualquer modo, não deve ter-lhes causado muita tristeza, dado o patamar bem mais alto de onde partiu esse crescimento.

Estratégias

É fácil entender, portanto, o interesse – mesclado de alguma ansiedade – das indústrias em passar a atender o novo e afluente mercado constituído pelas classes localizadas no meio e na base da pirâmide social. Nesse período imediato, afinal de contas, elas nada têm a perder e muito a ganhar – e estão agindo com o necessário ímpeto.

Isso tem significado, para quase todas elas, traçar estratégias específicas para atender essa enorme demanda, cujo perfil é diferente do observado nas classes médias, que se acostumaram com produtos concebidos para os mercados afluentes dos países desenvolvidos.

Como o preço é um fator determinante – as classes C, D e E podem ter ascendido no nível de renda, mas continuam intrinsecamente pobres –, tem havido, principalmente, a preocupação de adaptar os produtos ao gosto mais popular, sem incorporar inovações tecnológicas radicais (o que os encareceria) e facilitar as condições de compra. A redução dos custos de fabricação, nos casos em que as empresas preferem aproveitar a tecnologia já disponível na produção de artigos para as classes mais afluentes, é outro objetivo que vem sendo obsessivamente buscado por aquelas que se voltaram para o mercado popular.

Vias e modos de distribuição que poderiam ser vistos como "alternativos" pela classe média – como os mercadinhos de bairro, no lugar dos hipermercados – também têm de ser privilegiados pelas empresas interessadas em vender para esses segmentos. Elas não têm hesitado em dotar esses locais da necessária infra-estrutura para elevar as vendas. Um exemplo é a fabricante de lácteos frescos Danone. A empresa tem instalado freezers em pontos-de-venda afastados dos grandes centros, de modo a aumentar o consumo de seus produtos naqueles locais.

As indústrias sabem que essa espécie de corpo-a-corpo é fundamental num mercado onde o preço tem de ser baixo e a distribuição física também precisa custar pouco e, ao mesmo tempo, primar pela agilidade. Afinal, para as empresas que sempre trabalharam com as classes C, D e E, nada mais comum que reduzir o custo do transporte dividindo a ida e volta dos caminhões distribuidores com outros segmentos – um mesmo veículo pode levar sabão para uma cidade e trazer utensílios domésticos como lastro no retorno.

A repaginação de produtos também tem sido uma constante. A Nestlé, que faz mais de três anos mantém uma divisão especialmente dedicada aos consumidores de baixa renda, passou a vender, por exemplo, seu tradicionalíssimo leite em pó Ninho em sachês – o produto era, antes, comercializado somente dentro da lata amarela que se tornou inconfundível para a classe média. A empresa não se arrependeu dos investimentos feitos na sua nova divisão, de R$ 300 milhões. O segmento de baixa renda já responde por 2,5% de seu faturamento total, e a meta é que essa porcentagem suba para 10% nos próximos dois anos.

Por seu turno, a Cônsul, fabricante de eletrodomésticos da linha branca, passou a produzir equipamentos para as camadas populares com a mesma tecnologia presente nos itens destinados às classes A e B. Investindo fortemente na redução de custos, a empresa conseguiu desenvolver uma geladeira com saída para água potável na porta por R$ 1.000, e uma lava-roupa automática nessa mesma faixa de preço.

"O segredo é mesmo a especialização", afirma Carlos Tilkian, presidente da tradicional fabricante de brinquedos Estrela, que em algumas linhas cresceu até 12% em 2007, graças ao foco nas classes C, D e E. Segundo Tilkian, a empresa sempre teve produtos para todos os nichos e com todos os preços – há brinquedos vendidos por R$ 7,90, enquanto outros custam centenas de reais por causa da tecnologia envolvida.

"Não há dúvida que as faixas de baixa renda vêm ocupando lugar cada vez mais crucial no nosso portfolio de vendas", esclarece Tilkian. "Boa parte dos 280 novos brinquedos que pretendemos lançar em 2008 será voltada para as classes populares."

É possível que a empresa que mais tenha investido – estratégica e logisticamente – para se aproximar dos estratos populares tenha sido a multinacional Unilever, gigante na área de produtos de higiene e beleza e que tem um pé também no setor de alimentos.

Na verdade, a Unilever começou a realizar pesquisas e a lançar produtos exclusivamente para o público de baixa renda já na década de 1990. Na época, um grupo de gerentes da empresa,orientado por sociólogos, passou uma temporada no nordeste para entender os consumidores locais – na região, a maior parte da população pertence às classes D e E. Dessa iniciativa, surgiu o detergente em pó Ala, o primeiro produto da Unilever desenvolvido diretamente para os consumidores de baixa renda, e criado e vendido apenas para aquela região.

"Hoje, a marca Ala é a segunda mais comercializada no nordeste, com 23% de participação no mercado de detergentes, perdendo apenas para a nossa Omo, que detém 36,6%", conta Luiz Carlos Dutra, vice-presidente de Assuntos Corporativos da companhia. "Em 1996 o produto tinha uma fatia de apenas 0,9%", acrescenta.

O salto nas vendas do Ala mostra, com tintas fortes, como uma indústria tradicionalmente voltada para atender a classe média pode se dar bem, igualmente, nos mercados de baixa renda. O produto foi desenvolvido especialmente para a consumidora nordestina, que é bastante diferente das de outros locais do país, mas que também desejava usar um detergente em pó de qualidade por um preço acessível.

Acondicionado em embalagem plástica, capaz de preservar o detergente mesmo em contato com a água – característica fundamental numa região onde é comum lavar as roupas em rios –, o Ala é realmente muito barato (a revolucionária versão de 200 gramas pode ser comprada por R$ 0,86) e se apresenta em variedades coloridas e perfumadas como os detergentes comercializados para a classe média. Outros produtos destinados às camadas menos afluentes foram posteriormente lançados pela Unilever, com a mesma fórmula que alia qualidade, preço e especialização, a exemplo do desodorante Rexona Compact, do shampoo Suave e do sorvete Kibon sabor cajá, uma fruta tipicamente nordestina.


Endividamento coloca expansão em risco

Há dúvidas no mercado sobre a permanência da capacidade de consumo das classes C, D e E ao longo dos próximos anos. Embora exista um consenso de que o aumento da renda se deve em boa parte ao crescimento econômico do país – e ao conseqüente aumento do emprego e da renda familiar –, é certo também que o crédito vem cumprindo um papel talvez demasiadamente importante nesse processo.

"A massa salarial está ancorando o crédito, mas a triste verdade é que este está crescendo mais do que aquela", diz Fábio Silveira, diretor da RC Consultores. "Ambos estão descasados, e em algum momento a massa salarial vai ter de ser usada para pagar o crédito. Aí, não haverá como deter a queda do consumo."

De fato, chega a espantar o grau de endividamento das classes populares brasileiras, propiciado principalmente pelo interesse dos bancos e das diversas entidades de crédito em ampliar o portfolio de clientes. Estima-se que houve, no geral, um aumento de 60% no comprometimento da renda dessas faixas com empréstimos nos últimos três anos.

O crédito, para todos os efeitos práticos, já faz parte do orçamento do brasileiro de baixa renda. De acordo com o Programa de Administração de Varejo (Provar), mais da metade (58,8%) dessa população tem hoje até quatro financiamentos contratados e 72,5% parcelam as compras.

Enquanto isso, os juros cobrados nos financiamentos continuam altíssimos para essa faixa de renda. Qualquer produto pode ter, na prática, seu preço dobrado se for financiado em 36 ou 48 parcelas, por exemplo.

Já se pressente hoje o que pode acontecer amanhã. Atualmente, o brasileiro precisa de nove meses de trabalho para pagar empréstimos. Em 2004, eram seis meses. De acordo com a Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), entre os paulistanos a inadimplência está girando em torno de 35%. Das pessoas com renda de até três salários mínimos, 46% não mantêm os pagamentos em dia. Para 31% do total de inadimplentes, o atraso chega até a 30 dias, enquanto para 24% fica entre 30 e 60 dias.


Baixa renda hoje também busca status

Produzir para as faixas de baixa renda nem de longe significa, hoje, fabricar artigos baratos, feios e de pouca qualidade. Ao contrário, esse público, além de se expandir e ganhar poder de consumo, torna-se cada vez mais exigente, bem informado e ciente do valor do que leva para casa. O fenômeno foi impulsionado pela estabilização econômica, pela consolidação do Código de Defesa do Consumidor e pela globalização cultural promovida pelos meios de comunicação.

Não por acaso, o design tem cumprido um papel fundamental na ofensiva das indústrias dirigida à conquista dos mercados populares. É atualmente óbvio para as empresas que as pessoas de baixa renda têm os mesmos desejos que as de maior poder aquisitivo, e esperam, com os produtos que compram, incrementar como aquelas a qualidade de vida, o status e a auto-estima. Assim, beleza e praticidade são fundamentais.

Naturalmente, os produtos têm de ser concebidos de modo a corresponder aos padrões culturais e às aspirações dos consumidores de baixa renda. Um dos escritórios pioneiros no desenvolvimento de produtos para essa faixa de renda, o paulistano Chelles & Hayashi, projeta desde os anos 1990 eletrodomésticos voltados para as camadas populares tão bonitos como os vendidos para a classe média, mas que apresentam algumas diferenças sutis em relação àqueles.

Um exemplo é a lavadora SuperPop, cujo projeto envolve, além do desenho atrativo e da preocupação com a redução de custos de fabricação, aspectos relacionados à preservação ambiental (ver matéria sobre ecodesign, nesta edição). Segundo Gustavo Chelles, diretor do escritório, alguns "truques" também têm sido empregados pela indústria de modo a tornar seus produtos ainda mais convidativos para as classes populares. Nos equipamentos da linha branca para o segmento, os fabricantes estão hoje tendendo a usar muito brilho, para compensar o fato de essas pessoas nem sempre terem condições de azulejar as paredes da cozinha – os eletrodomésticos acabam agregando valor à residência. O mesmo raciocínio tem sido aplicado aos acessórios para banheiro.

 

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