Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Com a marca do sol nascente

Artistas japoneses e seus descendentes conquistam espaço no Brasil

CECÍLIA PRADA


Painel de Tomie Ohtake no metrô de
São Paulo / Foto: Arquivo PB

Quem vive em São Paulo há muito está habituado à exótica mistura de ingredientes culturais os mais diversos, aportes que integraram, desde as últimas décadas do século 19, o quadro da nossa imigração. A metrópole veio digerindo e assimilando a colorida peculiaridade das várias nacionalidades européias e asiáticas aqui chegadas em sucessivas levas, dispostas à sedimentação em solo brasileiro e ao transplante de suas raízes e tradições culturais.

De todos os imigrantes, foi o japonês – representante de uma cultura do outro lado do mundo, inteiramente diversa da nossa – que teve de enfrentar as peripécias históricas, políticas e econômicas mais desfavoráveis e até mesmo dramáticas, nesse processo. Mas, se há algumas décadas o paulistano ainda estranhava, com humor, que o saguão do Banco do Brasil mais parecesse alguma filial do Banco de Tóquio, tal o número de cidadãos de olhos puxados postados por detrás dos guichês, hoje os brasileiros que ainda continuamos a chamar de "japoneses" ocupam de maneira normal as mais diversas posições em todas as profissões e segmentos sociais.

Atualmente, o Japão está na moda – fenômeno cultural que tem sido registrado no correr dos últimos anos e que se apresenta em toda a sua vitalidade neste ano que marca o centenário da imigração japonesa. Bandos de adolescentes entregam-se com furor aos modismos dos mangás e animês, das danças exóticas e dos concursos de trajes japoneses – é a cultura pop americana transplantada e desenvolvida no Japão de maneira crescente desde o pós-guerra, que aqui repercute, assimilada de muitas maneiras. Tanto que Jo Takahashi, diretor de Projetos em Arte e Cultura da Fundação Japão em São Paulo, não hesita em dizer que "a área mais exuberante da presença nipônica na cultura brasileira é certamente a cultura pop". Multiplicam-se também os cursos de japonês, e o idioma, que outrora chegou a ser proibido, não só flui com naturalidade nas ruas do bairro da Liberdade como volta a ser usado com exclusividade em muitas famílias ("meus avós só falam japonês", atestam muitos jovens) e até mesmo em centros culturais nipo-brasileiros espalhados por várias cidades.

Vale lembrar, porém, que manifestações culturais japonesas mais permanentes e importantes do que as do pop apresentam-se hoje no mundo inteiro, com grande destaque no campo das artes plásticas, na arquitetura, na música, no teatro e na dança, na cinematografia e na literatura. No Brasil, um relevo especial merece ser dado à presença ininterrupta, há mais de 70 anos, de artistas plásticos que não somente conquistaram um espaço próprio e importante entre nós, criando obras de grande originalidade, mas atingiram notoriedade internacional – como Manabu Mabe, Tomie Ohtake, Yoshiya Takaoka, Tomoo Handa, Flávio-Shiró, Jorge Mori, Tikashi Fukushima e seu filho Takashi, nascido em São Paulo em 1950, entre muitos outros.

"Os fora do comum"

Tomoo Handa (1906-1996), artista plástico e historiador, aqui chegado aos 11 anos, descreveu em um artigo de 1968, "Senso Estético na Vida dos Imigrantes Japoneses", o esvaziamento cultural apresentado pelos primeiros aqui chegados. Arrancados de um habitat inteiramente diverso do nosso, defrontados com dificuldades lingüísticas quase insuperáveis, obrigados a concentrar todos os esforços na luta pela sobrevivência, os imigrantes não sabiam o que fazer de um espaço doméstico que, além de exíguo, não tinha nada a ver com o japonês. Em seu país, o senso estético popular – diz Handa – constitui uma tradição viva no cotidiano da comunidade.

Aqui, a atitude depressiva da maioria dos pioneiros manifestava-se no desleixo no vestir e na falta de cuidado com a moradia – o senso de provisório predominava. O japonês, "atrapalhado ao extremo", materialmente afastado dos elementos imprescindíveis para sua música, cantos e danças, limitou-se a imitar tão-somente os aspectos externos, mal assimilados, do modo de viver brasileiro. Essa lacuna impediu o que seria um mero continuísmo de tradições e fez surgir nos adolescentes nikkei talentosos a vontade de reproduzir o meio em que viviam em obras figurativas, retratos e paisagens influenciados pela estética européia, já filtrada na arte brasileira. Essa forma de expressão foi por vezes erroneamente tomada como mera adesão, um tanto disfarçada, ao academicismo – que quebrava lanças, na década de 1920, com os "modernistas". Tanto mais que, vindos diretamente da lavoura para a capital, os nipônicos procuravam a princípio os tradicionais e rigorosos cursos da Escola Paulista de Belas-Artes e de escolas profissionalizantes, como o Liceu de Artes e Ofícios.

Ainda nos anos 1920, e principalmente durante os 1930, vieram para o Brasil e se radicaram artistas que já haviam iniciado, ou mesmo concluído, sua formação no Japão – como Massao Okinaka e Hajime Higaki, Walter Shigeto Tanaka e Yuji Tamaki. Sua importância foi fundamental para o período formativo da nova geração que, enfim, por seu intermédio, conseguia ligações com os aspectos tradicionais, fundamentais da arte japonesa, somados a sofisticadas inovações "modernistas". Nessa época chegaram ao Brasil, com suas famílias, dois artistas que assumiriam algumas décadas mais tarde papel do maior relevo: Manabu Mabe, em 1934 (tinha então 10 anos) e Tomie Ohtake, em 1936 (com 23 anos) .

A fundação do grupo Seibi (Seibi-kai), em 1935, representou o fortalecimento dos laços profissionais e de apoio mútuo dos jovens artistas da colônia, mas expressou também um desejo de entrosamento "com artistas brasileiros ou de outros grupos" – como dizia a primeira ata da associação. Ligaram-se especialmente com os componentes do Grupo Santa Helena, constituído informalmente em meados dos anos 1930 por pintores saídos do meio operário e de origem italiana, como Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Alfredo Volpi, e pelo descendente de espanhóis Francisco Rebolo. Participavam de sessões de desenho de modelo-vivo e organizavam excursões em conjunto para pintar paisagens da periferia de São Paulo ou do interior.

Como eram muito discriminados por outros grupos de pintores provindos das classes mais abastadas, assumiram sua originalidade e definiram-se como "os fora do comum", isto é, desligados do enquadramento sumário do tipo "modernistas versus acadêmicos". Com estes últimos partilhavam algumas escolhas temáticas (paisagens e naturezas-mortas, retratos) e algumas técnicas formais. Mas, como enfatiza a crítica Cecília França Lourenço (in Vida e Arte dos Japoneses no Brasil), faltava aos acadêmicos "coragem ante as variações luminosas, cromáticas e tonais", enquanto artistas como Higaki, Handa, Takaoka, Tamaki buscavam uma comunhão cósmica, "com um resultado mais individualizado, solto e vivaz".

Durante a 2ª Guerra Mundial, os nipo-brasileiros sofreram uma severa e prolongada repressão governamental, que os obrigou ao enclausuramento, com a proibição de viajar, reunir-se e até mesmo falar seu idioma ou conservar documentos e livros japoneses. O Grupo Seibi paralisou completamente suas atividades, embora alguns artistas ainda mantivessem contatos discretos entre si e procurassem expor seus quadros sempre que possível. O japonês Tadashi Kaminagai, porém, conseguiu ganhar uma medalha de prata na Divisão Moderna do Salão Nacional no mesmo ano em que chegou ao Brasil, 1941.

O pós-guerra

Com o final simultâneo da guerra e da ditadura Vargas, o Seibi-kai pôde retomar suas atividades, e muitos de seus artistas passaram a freqüentar também outros grupos – como o Guanabara, surgido em 1949 em torno do pintor e "moldureiro" Tikashi Fukushima, que, depois de uma passagem pelo Rio de Janeiro, instalara sua oficina no antigo Largo da Guanabara, no bairro paulistano do Paraíso, e que congregou grande número de artistas nipônicos e brasileiros, como Wega Nery, Arcangelo e Thomaz Ianelli, Ismênia Coaracy, o casal Armando e Alzira Pecorari, Maria José Calheiros de Mattos (Marjô) e Oswald de Andrade Filho (Nonê).

A inauguração dos Museus de Arte e de Arte Moderna de São Paulo, em fins da década de 1940, e o surgimento das Bienais, iniciadas em 1951, tiveram um grande impacto sobre os artistas nipônicos. Foi destacada a atuação de Fukushima, Flávio-Shiró e Manabu Mabe nessas Bienais, desde as primeiras. Novas levas de artistas vindos do Japão entrosaram-se com os locais, em trabalho interativo, até mesmo com uma triangulação Japão-Brasil-Paris – o que foi tema de uma das mais interessantes mostras deste ano, "Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o Jovem Mori", no Centro Cultural do Banco do Brasil de São Paulo, de 11 de março a 1º de junho. Como explica sua curadora, a crítica Aracy Amaral: "Foujita e Kaminagai se conheceram em Tóquio. Foujita, festejado na Escola de Paris, veio para o Brasil em 1931 e permaneceu aqui por quatro meses. Teve contato com os modernistas do Rio de Janeiro, em particular Candido Portinari, e expôs na capital federal e em São Paulo. Quando Kaminagai desembarcou no Brasil, em 1941, trouxe uma carta de apresentação escrita por Foujita e endereçada a Portinari. Ele ficou no país por 14 anos, conheceu o jovem Jorge Mori e quando o ‘menino-pintor’, revelação da década de 1940, decidiu ir para Paris, em 1952, levou na bagagem uma carta de apresentação para Foujita, escrita por Kaminagai".

Jorge Mori viveu muitos anos em Paris e decidiu estudar a fundo a técnica dos grandes pintores clássicos do Louvre para trilhar um caminho todo pessoal de expressão, que caracteriza suas obras figurativas e suas paisagens de uma exatidão quase metafísica. Outro representante dessa "triangulação" é Flávio-Shiró Tanaka, nascido no Japão em 1928 e transplantado, com a família, para Tomé-Açu (PA), de onde veio para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro (onde trabalhou com o "moldureiro" Fukushima). Conseguiu uma bolsa de estudos e foi para Paris em 1953. De 1983 até hoje, ele mantém duas residências, uma na capital francesa e outra no Rio de Janeiro, e continua a viajar, expor e conquistar importantes prêmios em vários países europeus, nos Estados Unidos e no Japão. Assim se define o pintor: "Sou uma figueira-brava, ligada a três continentes por raízes aéreas".

O abstracionismo foi, de todas as correntes estéticas, aquela em que mais se destacaram os artistas nipo-brasileiros – com o renome obtido especialmente por Manabu Mabe, pioneiro desse estilo no Brasil, Tikashi Fukushima e Tomie Ohtake, pintora, gravadora e escultora nascida em Kyoto, no Brasil desde 1936. Continua plenamente atuante em São Paulo, aos 95 anos, e diz que a influência da pintura oriental, principalmente a japonesa, "se verifica na procura da síntese: poucos elementos devem dizer muita coisa".

Manabu Mabe veio para o Brasil em 1934, com a família, para trabalhar na lavoura do café. Começou a pintar sozinho em um ateliê que improvisou no cafezal, e depois foi aluno do pintor e fotógrafo Teisuke Kumasaka, na cidade de Lins. Chegou à abstração gradualmente, passando primeiro pelo cubismo. Em 1957 ganhou o Prêmio Melhor Pintor Nacional da Bienal de São Paulo, e em 1959 o da Bienal dos Jovens, de Paris, alcançando rapidamente renome internacional. A inauguração do Museu de Arte Moderna Nipo-Brasileira Manabu Mabe no bairro da Liberdade, prevista no quadro dos festejos do centenário da imigração japonesa, dará a São Paulo mais um importante centro cultural que abrigará, além de todo o acervo do artista, mais cem quadros de outros pintores, por ele colecionados. Contará também com salas de aula, biblioteca, central de restauro de obras e restaurante.

Da variante "nipo-brasileira" do abstracionismo, diz Cecília França Lourenço que "atendeu a um impulso vital e mesmo cultural, mais facilmente identificado com o gesto, a mancha e as pesquisas formais, fonte inesgotável e revitalizada através da vivência". A pesquisadora chama também a atenção para um fato importante: entre os nossos abstratos e o expressionismo abstrato americano há uma intersecção significativa, ou seja, "o universo caligráfico oriental, que está na raiz dos nipo-brasileiros de maneira visceral e nos americanos pelo inter-relacionamento e convivência no período da 2ª Guerra Mundial". 

 

Comente

Assine