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O Arabista e a Tertúlia

Foto: Renata Dantas
Foto: Renata Dantas


Em entrevista exclusiva à EOnline, Mamede Jarouche falou sobre sua relação com a cultura árabe e o processo de tradução do 'Livro das Mil e Uma Noites'

Uma bolsa de estudos do Governo da Arábia Saudita foi o que influenciou Mamede Jarouche, aos 18 anos, a sair do Brasil para ter contato com a cultura de seus pais, que eram libaneses. Nesta viagem, que para ele era apenas uma aventura juvenil, se assustou com a repressão ali presente, mas também se encantou com a cultura árabe.

Depois de três décadas de uma relação de amor e ódio com a cultura, realizou uma tarefa que até então muitos não haviam concluído: a tradução integral do 'Livro das Mil e Uma Noites' em 4 volumes com 1669 páginas. A obra, que o fez colocar-se em uma posição de leitor, faz parte dos textos reunidos no livro  Tertúlia, das Edições Sesc, uma antologia organizada por Tiago Novaes a partir de um evento em que mais de 40 autores e tradutores encheram as salas para conversar sobre suas influências literárias.

Em entrevista exclusiva à EOnline, Mamede Jarouche falou sobre sua relação com a cultura árabe e o processo de tradução do 'Livro das Mil e Uma Noites'.

EOnline: Quando jovem vimos que você teve uma relação um pouco conturbada com a cultura árabe. Como foi a mudança da sua visão sobre a cultura?
Mamede Jarouche: Apesar de filho de imigrantes, eu nasci no Brasil. Então meus valores e cultura são ligados à cultura brasileira, ao meu dia a dia aqui. Eu cresci em um país que teve repressão, mas que comparado ao árabe era muito liberal. Pra mim foi mais conturbado, no que se refere à questão dos costumes das pessoas. Quando eu fui pra lá, eu tinha só 18 anos, e o cenário pra mim era o pior possível. Eu fiquei um ano sem ver uma única mulher. Eu só via homem, não havia essa mescla que tem no Brasil. Então pra mim foi assustador. Uma sociedade rígida, repressiva. O pressuposto que havia, era que você conhecia aqueles hábitos e concordava com eles, quando na verdade era algo detestável, e insuportável pra mim. A minha questão, meu problema foi relacionado aos hábitos segregacionistas referentes a gênero. Religiosidade extrema, sabe? No Brasil, eu nunca me senti reprimido pela religião.  Na rua ninguém me abordou pra perguntar se eu tinha ido à igreja, pra botar o dedo na cara. Lá na Arábia Saudita, no horário da prece tudo para, todo mundo para e vai fazer. O comércio fecha, os bancos. Tinha inspetores na rua pra ver se você estava ou não fazendo a prece.

Mas no que se refere à escrita, à literatura, à impressão, foi totalmente diferente. É uma literatura muito antiga, e importante. É relevante pra história da humanidade. Mas isso, falo especificamente à Arabia Saudita, não ao Líbano, ao Egito. A cultura árabe é muito interessante e relevante. 

EOnline: Em um processo de tradução tão longo, cerca de uma década, o que te motivou a não desistir?
M.J: Não. Nunca pensei em desistir. A única coisa que acontece é o desânimo. Isso é normal, como tudo na vida que você faz de forma muito contínua. E a tradução do livro foi feita simultânea a todas as minhas outras atividades, dando aula, etc. Então isso pesou um pouco. O caminho pelo qual optei não foi um caminho fácil. Pegar uma edição impressa, usar manuscritos diferentes entre si, que apresentam dificuldades de leitura... No começo meu ritmo foi legal. Saíram 3 edições de uma vez. O primeiro saiu em 2005, o segundo em 2006 e o terceiro em 2007. Mantive um ritmo legal. O último foi o que me causou mais problemas, saiu em 2012. Eu estava em dúvida sobre como continuar. Eu percebi que estava em um labirinto que não conseguiria sair. Eu demorei pra perceber qual caminho seguiria, daí decidi fazer um mix. Traduzir as Mil e Uma Noites e não colocar os textos mais conhecidos não seria legal, então eu inclui de um manuscrito a história de Aladim, de outro manuscrito outra história. Quando eu terminei, pensei “ é isso!” Consegui reunir muitas coisas, histórias pornográficas, sarcásticas, religiosas, cômicas.

EOnline: Nesta tradução tão rica em detalhes qual a parte mais curiosa que você encontrou?
M.J: Confesso que a pornografia pesada, não digo que me assustou, mas me surpreendeu. No livro, tem um texto chamado: “A mulher e o vendedor de melancia” que é de uma tal grosseria que me surpreendeu pela crueza da coisa. 

EOnline: Na tradução de uma obra tão antiga e densa, qual a maior dificuldade encontrada?
M.J: Nos textos mais antigos tive mais dificuldade com expressões muito antigas, vulgarismos que não existem mais, nem em dicionários. Em alguns momentos, você tem que advinhar. Pense por exemplo num inglês que encontra a expressão "de ponta cabeça". É algo que não dá pra interpretar o sentido. A palavra ponta não diz nada. Por exemplo, tem uma passagem cheia de nomes de comidas e doces. Castelinho do Amor, etc. Ficava me perguntado "Mas o que que era?, Será que era um patê? Ou algo no formato de um castelo?" (risos). Como o nosso bolinho de chuva, por exemplo.




 

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