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Setor do aço se tornou um dos mais competitivos da economia

ALBERTO MAWAKDIYE

As boas notícias não param de chegar para a indústria siderúrgica brasileira. Sem receber tantos holofotes como a agroindústria – que, com o petróleo e a mineração, são os únicos setores da economia hoje comparáveis em termos de performance e dinamismo –, a siderurgia nacional vem não apenas batendo recordes de produção como começa a se tornar um player dos mais qualificados no mercado mundial. A idéia de que o Brasil está consumindo de tudo no shopping center industrial que se tornou a China é apenas meia verdade – em se tratando do aço, quem está comprando são os chineses. Mercados ariscos como a Rússia e a Índia já estão na mira das usinas nacionais, que têm enviado freqüentemente executivos para esses países, assim como pequenos lotes de material. E os Estados Unidos estão tão preocupados com a penetração do produto brasileiro no mercado norte-americano que estabeleceram uma série de medidas restritivas, condenadas como ilegítimas pelas autoridades mundiais do comércio.

O bom desempenho não é somente quantitativo. O preparo tecnológico das usinas brasileiras é hoje tão grande que a Usiminas, uma das principais do país, colocou seus laboratórios a serviço de um ambicioso projeto mundial, que envolve 35 empresas siderúrgicas em 18 países e é destinado a desenvolver o "aço do futuro", denominado Ulsab. Constituído de sofisticadas ligas metálicas, ele é mais leve e resistente que qualquer outro hoje conhecido. "O Ulsab será a resposta da siderurgia para o crescente uso dos plásticos, das fibras e do alumínio na indústria automobilística", explica Sérgio Leite, gerente de marketing da Usiminas. E uma missão da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa), a maior de São Paulo, foi enviada no começo deste ano à China para ajudar técnicos daquele país a montarem ali uma aciaria de última geração.

A presença brasileira no exterior não acontece apenas por meio da comercialização e do intercâmbio tecnológico. A gaúcha Gerdau, fabricante de aços longos, montou há dois anos uma subsidiária nos Estados Unidos (ver "Mundo Pequeno", Problemas Brasileiros, número 362), e a fluminense Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) planeja investir US$ 375 milhões na construção de uma segunda fábrica em Portugal.

Retomada

Esse desempenho chega a ser surpreendente, quando se pensa que ainda no final dos anos 1980 a indústria siderúrgica brasileira, se não estava à beira do sucateamento, começava a aproximar-se perigosamente dessa situação. Pode-se criticar o processo de privatização das usinas, deflagrado no começo dos anos 1990 e concluído no final da década, mas o fato é que foram os investimentos privados os responsáveis pelo extraordinário desenvolvimento que o setor tem apresentado. De 1995 até 2003, as 15 companhias siderúrgicas nacionais investiram, em conjunto, nada menos do que US$ 12 bilhões, suficientes para modificar inteiramente o perfil do segmento, cujos resultados estão passando ao largo da estagnação que tomou conta da economia do país.

No ano passado, segundo dados do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS), enquanto a economia como um todo apresentou variação negativa – o PIB, em 2003, fechou com o índice de –0,2%, o pior resultado do último decênio –, a produção nacional de aço bruto foi de 31,1 milhões de toneladas, a maior da história. Esse resultado, 5,2% superior ao de 2002, é ainda mais expressivo quando se considera que, naquele ano, o país já havia alcançado o recorde de 29,6 milhões de toneladas. Esses números confirmaram o Brasil como um dos dez maiores produtores de aço do planeta.

Também as exportações fecharam 2003 com um resultado nunca antes atingido, registrando um avanço sobre 2002 de 11,1% no volume comercializado e de 34,5% na receita. As vendas externas chegaram a 13 milhões de toneladas, mais de um terço do total produzido, e renderam US$ 3,9 bilhões, contra 11,7 milhões de toneladas em 2002, responsáveis por US$ 2,9 bilhões. Entre os principais compradores, clientes exigentes como europeus, norte-americanos, chineses e sul-coreanos, além do cativo mercado latino-americano. Praticamente todos os tipos de ligas necessárias para a moderna indústria de transformação foram comercializados, muitos deles com alto valor agregado. "E a tendência é que esses aços mais sofisticados obtenham penetração cada vez maior no exterior", afirma Leonardo Horta, diretor de relações com investidores da capixaba Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), a mais tradicional empresa brasileira do ramo nos negócios de exportação.

Reviravolta

O que motivou os novos proprietários privados a investirem tanto nas usinas em tão curto espaço de tempo não foi apenas o explicável desejo de rápido retorno financeiro, mas, também, a necessidade de mudar completamente a direção antes seguida pela siderurgia brasileira. País pobre que até o período da 2ª Guerra Mundial (1939-45) contava apenas com incipientes "usinas de bolso", concentradas principalmente em Minas Gerais em áreas próximas de jazidas de ferro, o Brasil deveu a implantação de sua indústria siderúrgica basicamente à iniciativa do Estado. Faz parte do anedotário nacional a quase extorsão feita aos norte-americanos pelo presidente Getúlio Vargas, que só aceitou entrar na guerra ao lado dos Aliados sob a condição de que o Brasil recebesse capitais e tecnologia para a montagem da primeira grande usina do país, a CSN, fundada em 1941 em Volta Redonda (RJ).

Por conta dessa origem, a siderurgia sempre foi considerada um dos pilares de sustentação da política industrial do Estado. Nunca esteve nem ao menos próxima da economia de mercado, o que fez com que crescesse com uma espécie de deformação congênita.

De fato, a gestão estatal sempre implicou, na história da siderurgia brasileira, um planejamento altamente centralizado, tanto no tocante aos preços – bastante controlados – quanto à clientela. Os compradores eram escolhidos pelo governo, num processo que chegou ao auge nos anos 1970, quando era definida até a produção siderúrgica de cada usina para o ano vindouro, assim como as vendas, distribuídas num sistema de cotas, para regiões e setores predeterminados.

Assim, embora o número de plantas industriais fosse bastante razoável para um país de Terceiro Mundo e o Brasil produzisse todas as modalidades básicas de aço existentes no mercado – além de possuir boa capacitação tecnológica e de mão-de-obra –, esse sistema acabaria por drenar a capacidade de resistência financeira das usinas. Esgotou ainda a possibilidade de novos investimentos, um cenário agravado pela crise da dívida pública dos anos 1980.

Amarras

"A verdade é que a siderurgia brasileira permaneceu durante muito tempo artificialmente engessada", analisa Hideyuki Hariki, diretor de patrimônio da Associação Brasileira de Metalurgia e Materiais (ABM), entidade que reúne as usinas siderúrgicas e a cadeia produtiva do setor metal-mecânico. "A eleição da siderurgia como vetor estratégico do desenvolvimento econômico foi correta no período entre 1950 e 80, mas perdeu o sentido quando a indústria brasileira começou a andar com as próprias pernas. A siderurgia acabou por se tornar uma espécie de provedor da indústria de transformação, vendendo aço a preços de pai para filho e nem sempre auferindo lucro com isso."

Hariki lembra que as amarras da siderurgia não se limitavam aos preços do aço e às estratégias de distribuição. Para não encarecer o produto e não sobrecarregar as usinas com mais endividamento, estas recebiam apenas investimentos que evitassem o estrangulamento da produção. Ou seja, fabricavam somente algumas modalidades simples de aço, com pequeno grau de nobreza e variedade, o que de passagem contribuía para tornar apenas mediana a qualidade dos produtos metal-mecânicos feitos no país – os automóveis brasileiros, por exemplo, eram tomados pela ferrugem depois do primeiro ano de vida. O quadro era tão distorcido que apenas a CSN produzia o hoje universal aço galvanizado, que as indústrias de transformação disputavam avidamente. A exportação estava fora de cogitação – ela acontecia somente quando havia excedente de produção.

Segmentos inteiros foram deixados à margem nesse processo. Enquanto as indústrias metalúrgica, naval e automotiva não tinham muito do que se queixar em relação ao fornecimento de aço (a não ser nos aspectos qualidade e variedade), a construção civil, por exemplo, passou boa parte do século 20 sem dispor de materiais específicos para a montagem de estruturas metálicas, com as quais são erguidos os edifícios de aço – a disponibilidade resumia-se, basicamente, aos vergalhões, utilizados nas obras de concreto. O Brasil era um dos poucos países do mundo com uma indústria siderúrgica de certo porte que não executava construções de aço (ver texto abaixo). Ligas mais adequadas para a indústria petrolífera tampouco eram produzidas.

Reestruturação

Nada mais natural, portanto, que a primeira providência dos novos proprietários das usinas fosse investir imediatamente na renovação do parque industrial e na remodelagem da gama de produtos. Na verdade, não havia outra saída para esses empresários, na maior parte brasileiros associados com siderúrgicas européias, norte-americanas e japonesas – a Usiminas e a Cosipa, que hoje pertencem ao mesmo grupo, passaram a ser controladas, por exemplo, pela Camargo Corrêa, Votorantim, Bradesco, Previ e pela japonesa Nippon Steel, entre outras empresas, e a CST pela Companhia Vale do Rio Doce, outros fundos de pensão, pela francesa Arcelor e pela norte-americana California Steel. Era o único modo de fazer o setor entrar de vez na economia de mercado e também de justificar a liberação de preços autorizada pelo então presidente Fernando Collor de Melo (1990-92).

A maior parte dos investimentos feitos pelas usinas no período 1995-2003 foi direcionada para a compra de máquinas, a implantação de novos procedimentos tecnológicos e organizacionais e para a montagem de uma logística de distribuição mais adequada. À época, praticamente não havia centros de distribuição de aço, hoje disseminados pelo país, nem terminais de embarque e desembarque suficientes.

A mão-de-obra, que estava realmente superdimensionada, foi reduzida em algumas unidades em até 25%, estabilizando-se nos atuais 56 mil trabalhadores diretos e 12 mil indiretos. Ações ecológicas rigorosas foram desenvolvidas nas usinas em que os problemas ambientais eram mais graves, como na Cosipa, localizada em Cubatão, cidade paulista encravada na base da serra do Mar, onde o meio ambiente fora tão maltratado a ponto de, nos anos 1970-80, o lugar se tornar conhecido como "Vale da Morte". Programas de qualificação profissional, de segurança – que reduziram drasticamente o número de acidentes nas instalações fabris – e ações sociais diversas nas comunidades vizinhas completaram a reviravolta.

"A siderurgia brasileira tomou um banho de modernidade depois da privatização", observa o economista Germano Mendes de Paula, que é também consultor da área. "Mas é preciso dizer que os novos proprietários privados partiram de uma base já bastante consolidada. Eles somente tiveram de equiparar a produção nacional de aço aos padrões tecnológicos e comerciais que hoje vigoram no setor." Isso, no entanto, segundo Mendes de Paula, não explica tudo. Ou seja, o parque nacional já dispunha de algumas vantagens potenciais no aspecto da economia de escala. Entre elas, aponta o consultor, estava a relativa concentração das instalações fabris – são apenas 26 unidades, quase todas de grande porte e situadas fora dos centros urbanos, nos estados do sudeste –, um mercado cativo e potencialmente em crescimento, também concentrado no sul-sudeste, e a fartura e a qualidade das matérias-primas (o ferro brasileiro é, por exemplo, facílimo de extrair e de ótima qualidade). O único componente imprescindível que o Brasil tem de trazer de fora é o carvão de coque siderúrgico. "Os empresários souberam aproveitar muito bem esses fatores", diz Mendes de Paula. "Com isso, podem desfrutar melhor da vantagem competitiva de ter um parque fabril mais moderno que o norte-americano, em parte sucateado, e de muitos países europeus."

Equipamentos

Praticamente todas as companhias lançaram novos produtos no mercado, cuja fabricação tornou-se possível com a aquisição de máquinas de lingotamento contínuo, com a modernização e a construção de altos-fornos, a implantação de aciarias com procedimentos inéditos de refino do aço, além de mais áreas de laminação – nada menos do que 14 laminações foram implantadas no parque siderúrgico brasileiro desde 1995. "Isso nos permitiu produzir aços e ligas que antes eram fabricados apenas nos Estados Unidos, Europa e Japão", explica Valdomiro Roman da Silva, superintendente de qualidade da Cosipa.

Mais até do que isso: as usinas começaram também a assumir o processo inicial da transformação do aço em produto metal-mecânico, antes prerrogativa dos países desenvolvidos. As siderúrgicas passaram a fornecer às indústrias materiais já trabalhados para aplicação elétrica, aços já revestidos e estampados, cintas metálicas de pneus, aços soldados a laser e conjuntos pré-montados para navios e equipamentos de energia. A Usiminas hoje entrega blanks já cortados e prontos para ser inseridos em algumas linhas de montagem de motores dos automóveis Fiat.

Não foram apenas as siderúrgicas as beneficiárias desse salto tecnológico. Os efeitos positivos na qualidade dos produtos brasileiros feitos a partir do aço foram imensos, e ainda estão para ser calculados. Dispondo agora de materiais de qualidade superior, o país está produzindo automóveis melhores e mais duráveis, máquinas agrícolas de ponta, motores elétricos e industriais de alta performance, por exemplo, algo que não conseguia fazer no passado. A importação de aço reduziu-se ao mínimo (foram apenas 550 mil toneladas em 2003, com recuo de 18,2% em relação ao ano anterior), limitando-se a alguns tipos especiais ou transformados, que o Brasil não fabrica principalmente devido à pequena escala da demanda – embora, naturalmente, o país não consiga produzir algumas ligas especialíssimas como as desenvolvidas na Alemanha e no Japão.

De qualquer forma, pelo menos duas siderúrgicas, a paulista Villares e a mineira Vallourec & Mannesmann (V&M), produzem hoje apenas aços especiais e sofisticados tubos sem costura, respectivamente, para as mais diversas finalidades industriais, o que mostra que a siderurgia brasileira também está bem situada nessa área.

O fato é que a própria cadeia produtiva do aço cresceu tecnologicamente junto com a siderurgia. Uma tradicional fabricante paulista de equipamentos pesados, a Jaraguá, investiu forte em seu parque industrial para fornecer principalmente conjuntos pneumáticos de transporte e sistemas de despoeiramento para as usinas. "Antes, só oferecíamos para as indústrias siderúrgicas equipamentos padronizados", lembra André Roberto Giangiacomo, gerente de marketing da companhia. "A modernização das usinas abriu espaço para que pudéssemos desenvolver uma série de projetos especiais."

Adiante na cadeia produtiva, o avanço tecnológico das siderúrgicas causou impacto semelhante. Importante relaminadora de aços mineiro-paulistana, e também fabricante de rodas automotivas e cilindros industriais, a Mangels consegue processar hoje, para a indústria, aços com largura de 3 milímetros e espessura de 0,10 milímetro, índices dignos da Alemanha, que é considerada a pátria da relaminação. "A troca do sistema de lingotamento, de convencional para contínuo, nas usinas melhorou consideravelmente a qualidade do aço brasileiro", diz José Rosaldo de Oliveira Silva, gerente de fabricação da empresa. "O lingotamento convencional provoca alguns defeitos intrínsecos que impedem melhor performance do aço na relaminação."

Talvez um subproduto negativo da ênfase dada pelos proprietários privados à modernização tecnológica das siderúrgicas seja o fato de que a escala de produção não acompanhou esse desenvolvimento, por falta de recursos suficientes. A capacidade instalada da siderurgia nacional hoje, de 34 milhões de toneladas, não é muito maior do que em 1995. Isso criou um problema, com a penetração crescente do produto brasileiro no mercado internacional: embora internamente não falte aço, há muitas queixas da cadeia produtiva quanto aos preços cobrados pelas usinas, que agora, na prática, podem escolher sua clientela no Brasil ou no exterior. A questão pode se agravar se o país voltar a crescer, já que uma expansão de 3,5% do PIB, como a projetada pelo governo para 2004, implicará um aumento de 7% no consumo de aço.

Concentração

"A verdade é que muitas vezes as siderúrgicas se prevalecem do seu poder econômico para ditar aumentos sem nenhuma justificativa", afirma Luiz Carlos Delben Leite, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). "Ninguém entendeu, por exemplo, por que os preços foram majorados entre 12% e 15% no último mês de dezembro." As usinas alegam que o reajuste foi provocado pela necessidade de reposição de preços.

De qualquer maneira, esse problema decorrente da velha lei da oferta e da procura deve ser atenuado com o novo plano de investimentos anunciado pela indústria siderúrgica no ano passado – segundo o IBS, o setor pretende destinar US$ 4,1 bilhões até 2007 para a modernização e a ampliação das usinas. O plano é fazer a capacidade instalada saltar para 39,9 milhões de toneladas anuais.

O poder econômico das usinas, entretanto, não deverá diminuir. Pelo contrário. O crescimento da produção poderá vir acompanhado de maior concentração das companhias, considerada essencial para o aumento da competitividade externa. Embora a participação do Brasil no mercado siderúrgico mundial tenha dado um salto, ainda não ultrapassa o modesto patamar de 3% do comércio internacional do produto. Para elevar esse índice, no entendimento do setor, seria preciso concentrar as atuais 15 empresas – que na verdade são 11, quando se considera que a Usiminas e a Cosipa pertencem hoje ao mesmo grupo, e que a Gerdau detém o controle da Açominas e de outras usinas menores – em algumas supercompanhias, um assunto que as autoridades federais, por enquanto, recusam-se até mesmo a discutir.

No entanto, o fato é que, se quiserem ser mesmo importantes players no mercado mundial, as empresas não terão outra saída. A concorrência já é gigantesca, quase desproporcional, e tende a aumentar à medida que o aço brasileiro for ganhando competitividade. Apenas das usinas que a francesa Arcelor possui ao redor do mundo saem 40 milhões de t/ano de aço. Somando a produção da Usiminas e a da Cosipa, companhias que estão entre as maiores do país, chega-se somente a 10 milhões de t/ano. A capacidade produtiva nacional ainda é pequena, quando comparada à dos países desenvolvidos e dos gigantes chinês e russo, que perdem para o Brasil em avanço tecnológico. A China, que possui 90 grandes instalações siderúrgicas, fabrica, por exemplo, 220 milhões de t/ano de aço, e a Rússia e os países da Comunidade de Estados Independentes (CEI), perto de 100 milhões de t/ano. Entre as nações e regiões desenvolvidas, a União Européia produz 160 milhões de t/ano, o Japão 110 milhões e os Estados Unidos 90 milhões. A briga promete ser boa.


Elite bem treinada

As usinas brasileiras tiveram de investir na capacitação da mão-de-obra para levar a bom termo o projeto de modernização tecnológica. Desde a virada do ano 2000 – quando o novo maquinário já estava implantado ou em fase de pré-operação –, o setor vem gastando cerca de R$ 50 milhões por ano em educação e treinamento profissional. A Usiminas, por exemplo, destina anualmente cerca de R$ 4,5 milhões a essa área, na qual a CST investiu R$ 3,7 milhões em 2003.

Todas as usinas mantêm convênios com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), escolas de idiomas, de informática, cursos supletivos e universidades, e são comuns intercâmbios com siderúrgicas estrangeiras. A Cosipa, por sua vez, envia periodicamente equipes de estagiários para a Nippon Steel, do Japão. E os reflexos dessa iniciativa são evidentes. A produtividade, que antes da privatização era de 220 t/homem/ano, hoje dobrou.

Diga-se que essa categoria sempre constituiu uma elite profissional no Brasil. À época da privatização, mais da metade desses trabalhadores já havia cursado o ensino médio. Hoje, em uma empresa como a CST, todos os 3,6 mil empregados contam, no mínimo, com esse nível de instrução. Cerca de um terço concluiu a universidade e, destes, 42% têm pós-graduação.

As condições salariais também sempre foram melhores do que na maioria dos setores industriais. Hoje, a remuneração da mão-de-obra representa cerca de 20% das despesas das siderúrgicas. O menor salário médio equivale a sete vezes o salário mínimo, e 99% dos trabalhadores desfrutam de participação nos resultados.

A estabilidade no emprego é igualmente uma das maiores da economia. Perto de 60% dos trabalhadores têm entre 11 e 30 anos de casa. Há estímulos de toda ordem à iniciativa profissional, com dezenas de programas específicos, o que traz ótimos resultados para a pesquisa e o desenvolvimento.

Essa é outra tradição da siderurgia brasileira. Desde 1972, o número de patentes requeridas pela Usiminas é de pouco mais de 800, metade das quais já foi obtida. Parte significativa das inovações refere-se a pequenos aperfeiçoamentos na linha de produção, que foram idealizados pelos próprios trabalhadores.

 


Contra a tradição

Construções metálicas procuram espaço

País reconhecido mundialmente pelo domínio da arquitetura e da tecnologia do concreto armado – cujas maiores expressões são o arquiteto Oscar Niemeyer e seus arrojados calculistas de estruturas –, o Brasil começa a abrir espaço para os edifícios de aço. Embora o número de obras desse tipo seja ainda inexpressivo (o total equivale a apenas 1% daquelas feitas de concreto e alvenaria), hoje não há uma única grande cidade brasileira que não tenha pelo menos uma obra de aço como referência urbanística.

São quase sempre hotéis, shopping centers, fábricas e sofisticadas edificações comerciais e institucionais, como o Centro Cultural Itaú, de São Paulo, a Ópera de Arame e o Shopping Crystal, de Curitiba (PR), ou o terminal de passageiros do Aeroporto de Natal (RN). É uma reviravolta e tanto, levando-se em conta a pequena tradição nacional no segmento – a participação do aço em construções inglesas e americanas é superior a 50%, por exemplo – e que o fenômeno vem acontecendo há menos de dez anos.

Em meados da década de 1990, o consumo de aços planos pela indústria da edificação mal ultrapassava a casa das 900 mil t/ano. Hoje, já é de cerca de 1,5 milhão de t/ano, quase 70% a mais. E a tendência é de crescimento, já que, desde a privatização das companhias siderúrgicas, a construção civil passou a fazer parte da estratégia de expansão do setor. Mais e mais produtos vêm sendo lançados para o mercado arquitetônico, a preços cada vez menores.

Historicamente, a construção civil nunca foi considerada prioridade pelas siderúrgicas, que se limitavam a fornecer chapas para telhados, janelas, divisórias e os básicos vergalhões, que servem como "alma" do concreto armado usado em edificações e em postes de iluminação pública. Esses produtos (com destaque absoluto para os vergalhões) são os responsáveis pela participação superior a 30% desse segmento no consumo de aço no Brasil, a maior do mercado.

"O fato é que, por falta de materiais, havia uma forte demanda reprimida na área da construção metálica", analisa Cátia Mac Cord, gerente executiva do Centro Brasileiro de Construção em Aço (CBCA), entidade que fornece apoio técnico e mercadológico às siderúrgicas que desenvolvem produtos para edificação. "Isso explica por que, de 1999 a 2002, o uso do aço plano nesse setor tenha aumentado à ordem de 10% ao ano."

Cátia entende que o número de obras feitas de aço só não é maior atualmente no país porque a construção civil vive uma das piores crises de sua história. A retração do setor em 2003 foi da ordem de 8,6%. A produção de aços planos para edificação, no entanto, permaneceu estável, certamente devido ao perfil diferenciado das obras onde são utilizados.

Disputa

Poderosas siderúrgicas estão participando do jogo. A mais ambiciosa é a Gerdau, a maior produtora brasileira de vergalhões, que adquiriu o controle acionário da Açominas basicamente para participar desse novo mercado. O parque de perfis laminados da Açominas, por enquanto a única grande fabricante nacional desse item, tem capacidade instalada de 440 mil t/ano, embora pouco mais da metade desse total esteja hoje sendo efetivamente produzido. Antes de a usina iniciar essa atividade, há dois anos, os fabricantes de estruturas metálicas tinham de importar o produto ou trabalhar com perfis soldados, que são mais pesados e menos flexíveis, além de não permitir muita variedade dimensional.

"Os perfis laminados deixam os projetos mais soltos e eficientes", afirma Carlos Gaspar, gerente de desenvolvimento da Açominas. A empresa deve chegar este ano à marca de 70 dimensões diferentes de perfis.

Já a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) está investindo no aumento da produção e da variedade das telhas de aço. Com a venda de cerca de 300 mil t/ano desse produto, a empresa detém hoje 10% do mercado de telhas em geral.

Para fazer frente à demanda, a usina está destinando US$ 250 milhões para produzir 300 mil t/ano de aço galvanizado na sua subsidiária Cisa, de Araucária (PR). Da unidade de Volta Redonda (RJ) da CSN já saem 800 mil t/ano desse material, empregado não só na fabricação de telhas, mas também de estruturas para telhados e divisórias.

O avanço das siderúrgicas sobre o setor de construção não vem se dando apenas com a oferta de insumos novos e de maior qualidade. O crescente mercado de casas pré-fabricadas também tem sido alvo de investimentos. O grupo Usiminas/Cosipa parece ser o mais atento a esse segmento, que já conta também com a participação da Gerdau e da Belgo-Mineira, outra grande fabricante brasileira de vergalhões. Todas essas usinas desenvolveram kits completos de casas pré-fabricadas, estruturadas desde as fundações até o telhado com base no aço.

O grupo Usiminas/Cosipa também está desenvolvendo kits para casas pré-fabricadas de alto padrão, com emprego de materiais diferenciados, como o steel frame, da Usiminas. Antes jamais produzido no Brasil, esse material é um esguio e resistente perfil de aço galvanizado.

Inovação

A expectativa das siderúrgicas é que a participação das obras de aço na construção civil brasileira dobre em cinco anos, se a esperada retomada do crescimento acontecer. Enquanto isso, as usinas pretendem aprofundar o trabalho institucional já iniciado pelo CBCA com construtores, arquitetos, universidades e consumidores para popularizar o aço.

No Brasil, o aço para construção foi sempre considerado um produto "elitista", certamente devido ao fato de as poucas obras importantes executadas com esse material no século 20 terem usado produtos importados.

Pesa ainda contra o aço o fabuloso desenvolvimento que o concreto armado conheceu no país – há modalidades e testes de laboratório usados há décadas no Brasil que só recentemente chegaram ao Primeiro Mundo. Isso sem falar da tradição arquitetônica fundada por Oscar Niemeyer, com suas obras repletas de curvas e desafios geométricos, de fazer inveja a projetistas de edifícios de aço (os quais, é preciso dizer, Niemeyer também projetou). Deve-se levar em conta, igualmente, o enorme poder de fogo da indústria cimenteira nacional, que não deverá permanecer passiva diante do avanço da siderurgia sobre seus domínios.

"O concreto tem realmente uma enorme tradição no Brasil, mas o país está ainda por se fazer, inclusive na construção civil, e há espaço para todo mundo", diz Henrique Cambiaghi, presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (Asbea).

O governo quer dar sua contribuição. A Caixa Econômica Federal (CEF) passará a conceder financiamento para moradias populares estruturadas em aço (o que antes não acontecia) se alguns requisitos técnicos forem preenchidos. Praticamente todas as usinas dedicadas ao setor têm projetos de casas populares com estrutura feita de aço, alguns já executados em caráter experimental.

A indústria da construção civil espera por um aumento da produção geral da siderurgia brasileira, já que o fornecimento de aço para edificações vem lamentavelmente oscilando ao sabor da conjuntura do mercado. Por causa da crise econômica, as usinas exportaram, no ano passado, 45% do total produzido de chapas de aço, contra os 37% ou 38% tradicionais. Com isso, caiu a disponibilidade de material para as fabricantes nacionais de perfis e componentes, o que fez os preços dispararem.

"Se as siderúrgicas quiserem mesmo consolidar sua posição no mercado de construção, terão de eliminar esse gargalo", alerta Luiz Henrique Ceotto, diretor da Inpar, construtora paulista de cujo portfólio constam algumas importantes obras de aço, como o Hotel Ibis da Avenida Paulista, em São Paulo. Ceotto já desistiu várias vezes de construir edifícios de aço por causa do preço ou da falta do produto.

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