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Além da clonagem

 


Ilustração: Orlando Maver / Henrique Pita

Células-tronco abrem novas perspectivas para a medicina

NILZA BELLINI

Parece quimera, mas não é. A medicina promete a cura de doenças graves, muitas delas fatais, para daqui a bem pouco tempo. Essa conquista será possível graças aos avanços da engenharia genética, que desenvolve pesquisas com as chamadas células-tronco embrionárias – as primeiras a se multiplicar quando um óvulo é fecundado por um espermatozóide. Embora também seja possível extrair células-tronco de organismos adultos e do cordão umbilical, seu potencial terapêutico, neste caso, é restrito, pois elas teriam eficácia apenas no tratamento de poucos e específicos tipos de doença. Isso porque, segundo os cientistas, somente as células-tronco presentes em embriões são totipotentes, o que significa que podem gerar qualquer tecido do organismo, seja de ossos, do cérebro, do fígado, do pâncreas ou do coração.

Se os experimentos em andamento derem bons resultados, as terapias deles decorrentes poderão representar a salvação de milhões de pessoas. Porém, a utilização dessa tecnologia revolucionária pode ser restringida no Brasil, uma vez que o parágrafo II do artigo 5º do substitutivo da Lei de Biossegurança (projeto de lei nº 2.401), que tramita no Senado e deve ser aprovado em regime de urgência, não só proíbe a manipulação por engenharia genética de células humanas extraídas de embriões como criminaliza esse ato. O artigo 32 estabelece que os cientistas que infringirem essa determinação estarão sujeitos a penas de detenção que podem variar de dois a cinco anos – comparáveis às impostas a criminosos que ferem gravemente suas vítimas.

Experiências com células-tronco de embriões já vêm sendo desenvolvidas em vários países do mundo, e em nenhum deles se destinam à clonagem de pessoas, o grande pesadelo que a medicina celular provoca. "Talvez seja essa a origem de tanta resistência. Estão confundindo clonagem humana com terapia celular", diz a bióloga Mayana Zatz, do Centro de Estudos do Genoma Humano, da Universidade de São Paulo (USP). Professora titular de genética humana e médica, Mayana realiza pesquisas que têm como foco a degeneração muscular, cujas formas mais graves atingem crianças que, em muitos casos, nunca chegam a andar. "Para esses pacientes, a terapia com células-tronco constitui uma luz no fim do túnel", acrescenta ela.

Gênese

A teoria celular, na qual o trabalho dos cientistas se baseia, nasceu em 1839, quando o fisiologista alemão Theodor Schwann descobriu a capacidade de apenas uma célula gerar todo um organismo. Cerca de cem anos depois, embriologistas, como os alemães Hans Spermann e Jacques Loeb, começaram a decifrar os segredos das células-tronco a partir de embriões de sapos. Hoje se sabe que todos os 200 tipos celulares distintos, encontrados entre os aproximadamente 75 trilhões de células existentes em um ser humano adulto, derivam das células-tronco.

A chamada clonagem terapêutica, que tanta polêmica desperta, porque muitos acreditam que abre as portas para a clonagem humana, é uma outra forma de obter células-tronco. Indiferentes a toda a confusão que incendeia os noticiários pelo mundo afora, cientistas sul-coreanos anunciaram ter realizado com sucesso, no início deste ano, uma experiência de clonagem terapêutica, com o objetivo declarado de encontrar a cura para doenças neurodegenerativas, que matam os doentes antes que eles completem 20 anos de idade. Foram utilizados 242 óvulos, de 16 mulheres voluntárias, para o experimento, que resultou em 30 embriões, cópias genéticas exatas das doadoras. Depois de extraídas, as células-tronco se dividiram em três dos principais tecidos encontrados no corpo humano. Em seguida, foram transplantadas para camundongos a fim de verificar se poderiam se desenvolver em células ainda mais específicas, o que acabou se confirmando. Foi obtida, assim, a prova de sua totipotência.

Caminhos possíveis

No Brasil, onde as pesquisas são feitas com células extraídas do cordão umbilical, do sangue e da medula óssea, vários projetos vêm sendo desenvolvidos com vistas a obter a cura de alguns tipos de lesões. A equipe coordenada pelo cardiologista Hans Fernando Dohmann, do Hospital Pró-Cardíaco, do Rio de Janeiro, busca soluções para minimizar seqüelas resultantes de infarto a partir da injeção de células-tronco no músculo cardíaco. No Hospital das Clínicas da USP, a equipe coordenada por Tarcísio Pessoa de Barros Filho estuda a injeção de células-tronco com o objetivo de recuperar medulas lesadas devido a acidentes que resultaram em paraplegia ou tetraplegia.

No Instituto do Coração (Incor), de São Paulo, duas pesquisas inéditas no mundo estão sendo desenvolvidas tendo em vista a recuperação de lesões cardíacas. Os cientistas trabalham com a hipótese de que as células-tronco podem ser estimuladas para se dirigir, por si mesmas, para as regiões lesadas do organismo. Na Bahia, essa modalidade de terapia celular vem sendo estudada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-Bahia) para o combate ao mal de Chagas. Atualmente o grupo baiano já tem uma base experimental para tratar pacientes em estágios avançados dessa doença, com a utilização de células-tronco extraídas da medula. No interior do estado de São Paulo, pesquisas feitas com células-tronco no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, visam restabelecer o sistema imunológico de pacientes com diabetes tipo 1, lúpus e esclerose múltipla.

Conflito

O campo das pesquisas seria enormemente favorecido se fosse permitido utilizar as células-tronco dos embriões excedentes conservados em temperaturas próximas de 100 ºC negativos em clínicas de fertilização. É com essa finalidade que médicos, biólogos, advogados e outros representantes da sociedade civil se mobilizam para alterar o projeto de lei que tramita no Senado.

Mayana Zatz é uma das vozes engajadas nesse movimento. "Estamos propondo apenas a utilização de embriões que nunca se desenvolverão até se tornar uma pessoa, mas que podem se transformar em tecido", explica. "É justo deixar uma criança morrer de uma doença degenerativa com o argumento de que um embrião congelado é mais importante que ela?", questiona.

Mas essa reivindicação, embora conte com o apoio da maioria dos pesquisadores, esbarra na resistência de grupos religiosos, que não admitem sequer pensar na possibilidade de autorizar a utilização de embriões humanos como fonte de fornecimento das células-tronco.

Gabriel Oselka, coordenador do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), recorda que o conflito entre religiosos e cientistas em relação aos embriões teve início quando foram aprovados os métodos de reprodução assistida. A técnica, que é bastante agressiva para com as mães, obriga à fecundação de vários óvulos, para evitar sofrimento excessivo. Depois de feita a fertilização in vitro, alguns embriões são descartados, por diferentes razões científicas.

A Igreja Católica, no entanto, não aceita nenhum procedimento que permita a casais reconhecidamente inférteis recorrer a qualquer método de fecundação "não natural". Nem admite discussões acerca da doação de óvulos ou de esperma, ou da procriação de casais que não tenham uma união formal. "Esse cenário expõe a dimensão do problema sobre o destino dos embriões excedentes", observa Oselka.

Para defender os experimentos com células-tronco embrionárias, Oselka lembra as palavras do filósofo inglês John Harris: "É correto beneficiar as pessoas se pudermos. É errado prejudicá-las e, diante de uma oportunidade de usar recursos com efeitos benéficos, temos razões morais poderosas para evitar o desperdício e praticar o bem".

Os embates entre ciência e religião, como este, são históricos. O diretor do Centro Interunidade de História da Ciência, da USP, Shozo Motoyama, destaca dois deles, emblemáticos, ocorridos com Galileu Galilei e Charles Darwin. As pesquisas de Galileu, ao criar uma nova cosmovisão, colocaram em xeque a da Igreja. No século 19, situação semelhante voltaria a ocorrer com a teoria da evolução das espécies, de Darwin – fato é que o naturalista até hoje não foi perdoado pela Igreja Católica.

"O conflito estava centrado na questão do poder e da hegemonia da Igreja Católica", observa Motoyama. Atualmente, as conquistas científicas e a conseqüente importância que assumem na vida moderna tornam a polêmica ainda mais complexa. Mas, se as descobertas da ciência continuam a gerar expectativas de prazer e felicidade terrenas, têm também uma história que nem sempre foi edificante. "Nem todas as tecnologias trouxeram harmonia para a sociedade, e muitas vezes causaram frustração, devido a suas contradições. Daí provavelmente o fato de tantos estarem se voltando para religiões fundamentalistas", observa o professor.

Para Marco Segre, professor de ética médica e membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), a discussão acerca do momento em que o embrião humano passa a "merecer" respeito por sua vida é a que tem maior peso no confronto entre a Igreja e a ciência. Ele lembra que muitos dogmas religiosos já foram revistos, entre eles o conceito de morte. Os transplantes cardíacos, por exemplo, mudaram a idéia de que a vida deixa de existir somente quando o coração pára de bater. Hoje é o fim da atividade encefálica que atesta a morte. Segre acredita que esta é a hora certa para discutir em que instante começa a vida. "Ele varia de acordo com cada cultura, cada fé religiosa."

Questão legal

Filósofos contemporâneos já refletem sobre o assunto. Segundo Jürgen Habermas, "à medida que a ciência e a técnica penetram os âmbitos institucionais, começam a desmoronar velhas legitimações". Outros redefinem o conceito de início da vida e, do ponto de vista jurídico, da tutela do embrião. Luigi Ferrajoli, professor da Universidade de Camerino, na Itália, destaca que "o embrião é merecedor de tutela se e só quando pensado e desejado pela mãe".

Baseado nesses autores, entre outros, o desembargador aposentado Alberto Silva Franco, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ao analisar o projeto de lei em tramitação no Senado, nota: "Estamos falando de um embrião de, no máximo, 14 dias. Ou seja, são apenas 100 ou 200 células que nem estão num útero".

Ele afirma que a lei brasileira, se aprovada como está no projeto, será meramente simbólica e não terá utilidade prática. "Servirá somente para aquietar aqueles que ficam nervosos porque os cientistas estariam interferindo na produção do que eles entendem por vida. Não me parece razoável que tratemos como coisa de segunda importância a possibilidade de cura de enfermidades que atacam um número muito grande de pessoas", diz. Para ele, não existe consenso sobre o que seja o embrião. Mas o desembargador acredita que ganha cada vez mais força a idéia de que o começo da vida não se identifica com o momento da fusão entre gametas masculino e feminino. "A vida, na realidade, é um processo contínuo de transformações que tem início antes da fecundação", observa.

De acordo com Silva Franco, a ciência jurídica não está preparada para os avanços da medicina nem do ponto de vista da terminologia. "Os textos das leis sobre o tema não conseguem distinguir o sujeito do objeto", critica. Além disso, segundo ele, a opção pelo repressivo direito penal para tratar da tutela de embriões abandonados em clínicas de fertilização pode resultar em desvios. "Corremos o risco de que esses experimentos aconteçam na clandestinidade", alerta. "O direito penal deve ser o derradeiro recurso de controle social, aplicável apenas quando tivessem falhado todas as outras alternativas, como as do direito administrativo ou do direito civil", afirma. Em sua opinião, as decisões sobre um assunto tão importante e complexo como esse não devem ser tomadas isoladamente por cada país. Ele acredita que o resultado de experimentos nessa área transcende fronteiras.

A discussão entre religiosos e cientistas sobre o tema também não é pacífica em muitos outros lugares do mundo. Dos integrantes da União Européia (UE), a maioria não possui legislação específica sobre o assunto. A Inglaterra foi o primeiro deles, em 2000, a autorizar pesquisas com embriões. Até hoje, apenas Finlândia, Grécia, Suíça e Holanda seguiram seu exemplo. Nos outros países da UE, a utilização de células-tronco embrionárias é permitida apenas em casos particulares, como o da fertilização in vitro. Mas o Vaticano protesta contra a aprovação, pelo Parlamento Europeu, de um informe que recomenda destinar fundos para pesquisas com células de embriões humanos excedentes de processos de fertilização.

Pelo mundo

Em países como Cingapura, Taiwan e Coréia do Sul, a legislação sobre o assunto apenas começa a ser discutida, embora já venham sendo feitas pesquisas. O governo da China foi pioneiro ao aprovar, em fevereiro deste ano, as primeiras regulamentações que permitem a clonagem de embriões humanos para a retirada de células-tronco.

Nos Estados Unidos, a utilização de embriões não é totalmente proibida, e uma nova lei federal sobre essa questão está sendo debatida no Congresso. No entanto, os recursos federais para estudos dessa natureza são controlados. Apenas dois estados, Califórnia e New Jersey, possuem leis que permitem pesquisas com células-tronco embrionárias.

No Brasil, um dos grupos que condenam o uso de embriões é o Núcleo Fé e Cultura, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo. A entidade publicou um manifesto, em agosto de 2003, assinado por Alice Teixeira Ferreira, coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Bioética da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e por Dalton Luiz de Paula Ramos, professor associado da USP e membro da Pontifícia Academia Pro Vita, do Vaticano, que diz, textualmente: "O erro cometido por ocasião da produção e do armazenamento dos embriões não justifica, agora, outro erro: a utilização desses embriões em pesquisas, reduzindo-os ao status de coisas ou objetos".

Frei Antônio Moser, da Editora Vozes, que em março fez uma palestra sobre o tema para 40 bispos, na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília, ressalta: "Ciência e tecnologia podem ser nossas aliadas, como também podem se transformar em inimigas da sociedade". Segundo ele, para melhorar a vida de uns, não se podem utilizar embriões, ainda que essa seja uma forma de vida incipiente. "A descoberta das chamadas células-tronco revela a sabedoria do Criador. Mas não é preciso fazer embriões, nem manipulá-los para depois descartá-los. Os procedimentos com células adultas são mais lentos e mais trabalhosos, e é por isso que não interessam aos donos da biotecnologia", denuncia. O argumento do lucro está presente ainda nos manifestos de outros grupos que mantêm posições morais contrárias à pesquisa com embriões humanos.

Entre aqueles que se mostram contra as pesquisas com células-tronco embrionárias, sob a alegação de que, além de antiéticas, estariam criando a possibilidade de serem produzidos embriões humanos apenas para servir de fonte de células-tronco, existe ainda o temor de que surja um mercado clandestino para comercializá-los. Além disso, há também os que acreditam que esse seria o primeiro passo para a liberação do aborto.

As feministas, por sua vez, mostram apreensão quanto à possibilidade de as pesquisas afetarem a saúde das mulheres, assim como sua autonomia no que respeita ao próprio corpo e seus direitos reprodutivos. Documento da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, de junho de 2002, adota posição contrária à clonagem reprodutiva. Mas as feministas concordam com a pesquisa de células-tronco provenientes de adultos, do cordão umbilical e até de embriões, desde que não sejam criados exclusivamente para pesquisa, como está registrado no manifesto reproduzido no Livro de Saúde das Mulheres de Boston sobre a Clonagem Humana, publicado em junho de 2001.

Quer tenham razão os cientistas, os religiosos, as feministas ou os moralistas, a verdade é que o projeto de lei que tramita no Senado precisa ser discutido por toda a sociedade de forma mais ampla, dada sua importância e o que pode representar para o futuro desenvolvimento da ciência médica no Brasil.

 

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