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Remédio ou veneno?

 

A dura decisão de dar crédito a quem perdeu renda ou não tem emprego

CECÍLIA ZIONI

Em março, quatro entre dez moradores num dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo tinham algum tipo de dívida atrasado ou um parente inadimplente. Pior: 31% do orçamento da família estava comprometido com dívidas e, por isso, a maior parte dos devedores não se sentia em condição de saldar o débito. Só 26% deles tinham intenção – ou esperança – de pagar totalmente o devido até o fim do mês. Os dados constam do levantamento mensal sobre inadimplência, lançado pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo em março. A pesquisa apurou que 64,9% das pessoas estão endividadas, percentual muito alto para esta fase de economia retraída, desemprego intenso, perda acentuada de renda – e juros altos.

A população brasileira cresceu 1,3% no ano passado, período em que o Produto Interno Bruto (PIB) caiu 0,2%, com o que o PIB per capita sofreu perda de 1,5%. Essa diferença entre o tamanho do bolo e o de cada fatia não é novidade: nos últimos dez anos (1994 a 2003), o crescimento médio real anual do PIB foi de 2,4%, ao passo que o do PIB per capita ficou em 1%. O cenário delineado por esses dados, que são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é pouco risonho: crescimento pífio do Brasil, perda de renda do brasileiro. Não por outra razão, o IBGE constatou que o consumo das famílias caiu 3,3% no ano passado, resultado direto de queda acumulada de 13% na renda, quando comparado o patamar atual ao seu pico, em 1997.

O desemprego é fantasma a assolar permanentemente o consumo: entre as pessoas que não conseguiram pagar a prestação devida entre dezembro de 2003 e janeiro deste ano, 38% se justificaram alegando perda do emprego ou atraso no salário, revela outra pesquisa, esta da TeleCheque, empresa de verificação e garantia de cheques.

Com orçamento apertado, o consumidor é impelido a buscar crédito sob todas as suas formas, recorrendo ao empréstimo familiar ou ao agiota, à cooperativa de crédito ou ao banco, ao crediário em loja, ao cheque pré-datado ou ao cartão. Não por outra razão, desde os bons tempos do começo do Plano Real, cresce o uso de cartões de crédito. Uma das maiores administradoras de cartões, a Credicard, calcula que, há dez anos, 3% do consumo privado brasileiro era pago com cartão de crédito; agora, a fatia triplicou, e pouco mais de 9% das vendas totais aparecem em faturas de cartões. E mais: dos 43 milhões de cartões que circulam no país, 10,5 milhões são de pessoas com renda mensal entre R$ 200 e R$ 500, o que significa que 24% deles pertencem ao antes desprezado público de baixa renda. Os dados são do Ibope, cujos analistas detectaram, também, a ampliação de facilidades para a concessão de cartão: há cinco anos, era necessário que o interessado comprovasse renda de pelo menos cinco salários mínimos. Agora, não se exige mais que 0,6 salário.

A atividade econômica está na retranca, à espera da arrancada vislumbrada na metade do segundo semestre de 2003. O emprego não crescerá a não ser depois que essa retomada se consolidar. A produção não aumenta por falta de consumo, e este não se aquece por falta de dinheiro (emprego/salário). Para escapar desse ciclo vicioso, imaginou-se, na metade do ano passado, criar estímulo ao consumo, por meio de crédito, para dar impulso à produção, antes mesmo de emprego e salário subirem.

Dinheiro barato

O governo começou a reforçar o crédito popular a partir de julho de 2003. Montou as bases para os bancos aumentarem a oferta de microcrédito, instituiu uma linha de crédito barato (com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT) para compra de eletrodomésticos, criou uma subsidiária do Banco do Brasil (BB), o Banco Popular do Brasil (BPB), para atender os excluídos do setor financeiro, oferecendo abertura de contas simplificadas e crédito barato, e normatizou o crédito consignado. Viabilizada por medida provisória (MP 130) e regulamentada em setembro de 2003 (decreto 4.840), essa modalidade de crédito permite a trabalhadores da iniciativa privada representados por sindicatos tomar empréstimos em instituições financeiras, com desconto de prestação mensal em folha de pagamento, no limite de 30% do salário, a juros baixos.

Convênios para operação do crédito consignado foram assinados por dezenas de bancos com as duas maiores centrais sindicais, a Força Sindical, principalmente, e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em menor escala, a partir de outubro. Passado mais de meio ano dessas iniciativas, a solução continua distante, ainda que a situação de quem obteve crédito tenha melhorado e a indústria haja conseguido, pelo menos, um Natal melhor.

Para a Força Sindical, o efeito dos empréstimos com desconto em folha ficou aquém do esperado porque os mais desassistidos – os que estão nas mãos de agiotas – continuam sem acesso ao crédito barato. Para a indústria, a incerteza sobre emprego e renda ainda não anima o comprador, e a reação só virá quando houver política industrial definida. Para os bancos, foi decepcionante o retorno do crédito consignado, pois a taxa de 2% paga pelo cliente não cobre os custos da operação.

Para o governo, é cedo para avaliar corretamente os resultados. O diretor de Normas e Organização do Banco Central (BC), Sérgio Darcy, diz ser necessário "tempo para entender a engrenagem" e para os bancos se encaixarem no mundo das microfinanças. Por exemplo, não operando diretamente o microcrédito, mas por meio de instituições dessa área, como as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) e Sociedades de Crédito ao Microempreendedor (SCM). "Não se passa de zero para zilhões" em meio ano, como afirma Edson Monteiro, vice-presidente de varejo do BB.

Foi em agosto de 2003 que o BC instituiu o programa de microcrédito, pelo qual libera os bancos a usar 2% do total do recolhimento compulsório dos depósitos à vista em empréstimo de até R$ 600 a pessoas físicas (e R$ 1 mil a pessoas jurídicas), cobrando 2% de juros ao mês. Pelas contas do BC, até agosto de 2004, o programa injetaria R$ 1,1 bilhão por mês no mercado.

"O microcrédito não teve a evolução esperada e o crédito consignado foi outra decepção", disse o presidente do Bradesco, Márcio Cypriano, ao apresentar o balanço do maior banco privado brasileiro, em fevereiro. Dos R$ 10 bilhões estimados para as linhas de crédito popular, o banco não liberou mais de R$ 580 milhões de agosto a janeiro, em pouco mais de 400 mil contratos. Em microcrédito, foram R$ 113 milhões, para 300 mil contratantes.

Arminio Fraga, ex-presidente do BC e agora sócio da Gávea Investimentos, para quem o Brasil ainda precisa reinventar o mercado de crédito, vê dois entraves mais evidentes na expansão da oferta de crédito em 2004: primeiro, o alto nível da taxa de juros; segundo, o pouco capital – humano e físico – na facilitação do acesso ao microcrédito. De acordo com a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), são menos de 60 milhões os brasileiros com conta aberta e ativa em banco. O governo Lula quer "bancarizar" 70 milhões. Há aí um mercado potencial de 10 milhões de pessoas, no mínimo. Os bancos oficiais têm planos para atrair esses sem-conta: a Caixa Econômica Federal (CEF) simplificou seus procedimentos e, desde agosto de 2003, conta com 1,1 milhão de novos correntistas, dos quais a grande maioria – 88% – tem renda abaixo de R$ 500.

Banco Popular

O BB recebeu 600 mil novos correntistas, facilitando o acesso a aposentados e pensionistas do INSS que recebem até dois salários mínimos.

Em 2004, a CEF quer dobrar o acréscimo do ano passado, alcançando 2 milhões, e o BB objetiva chegar a 1 milhão de filiações. Os bancos privados pretendem completar a quota – mesmo sabendo que só 10% dos novos correntistas serão também clientes de seus programas de crédito.

No BB, a idéia é abrir as portas até a quem nem emprego formal tem. Ivan Guimarães, presidente do BPB, diz que o desemprego, mesmo sendo fator de risco para uma instituição financeira, deve ser encarado sob uma ótica diferente no Brasil. "Aqui, o desemprego já é uma condição de vida da classe média. Desempregado não deixa de trabalhar, seja no subemprego, seja na informalidade. Gera renda, e o crédito do BPB pode ajudar", disse ao jornal "O Estado de S. Paulo", em dezembro, ao anunciar a abertura dos primeiros pontos do banco depois do carnaval de 2004, em Brasília, São Paulo e Recife.

Até o fim do ano, o BPB quer estar em todo o Brasil, com 6,5 mil postos de atendimento, os correspondentes bancários, que operam em lojas, farmácias, mercados, shoppings, etc.

Se o BPB vai funcionar mesmo, ainda não se sabe – a expectativa é que tenha melhores resultados do que outra iniciativa do governo federal que, em setembro do ano passado, criou uma linha de crédito de R$ 200 milhões no BB e na CEF para empréstimos, de R$ 100 a R$ 900, com juros mensais de 2,53% e 36 meses de prazo, para estimular a venda de eletrodomésticos, especialmente a chamada linha branca.

Dos R$ 200 milhões, só pouco mais de R$ 10 milhões foram liberados, e o plano foi abandonado. O BB emprestou R$ 7 milhões do total e, segundo declaração de Cássio Casseb, seu presidente, o melhor resultado foi o impacto na redução das taxas cobradas no mercado, principalmente as financeiras ligadas a lojas de eletrodomésticos. Antonio Palocci, ministro da Fazenda, acha que o BB deu o sinal e os bancos privados foram na frente, baixando juros e fazendo promoções. "Conseguimos o que queríamos, sem ter de fazer tudo", comentou o ministro, no fim do ano, ao suspender o programa.

Mas, segundo o setor industrial, o sistema não funcionou por poucas mas importantes razões. Uma delas é que o serviço não foi divulgado pelos bancos de forma eficiente. O consumidor não sabia onde buscar o empréstimo – ia à loja, mas não conseguia comprar porque, para ter direito ao crédito, era preciso dispor de conta bancária. Outra razão é que o consumidor não se interessou pelo crédito por não ter segurança quanto à manutenção de emprego e renda, continuando a protelar compras desse tipo de bens. O problema não é falta de recursos, mas incapacidade de o tomador final assumir um empréstimo, analisa Décio Tenerello, vice-presidente do Bradesco e presidente da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip). Ele se refere a financiamentos para a habitação, para os quais o governo federal promete ação especial, adicionando este ano R$ 1,6 bilhão à oferta de crédito de R$ 2,2 bilhões no ano passado. Segundo Tenerello, faltam 6,6 milhões de casas para os brasileiros sem teto – e estes, em 93% dos casos, têm renda máxima de cinco salários mínimos.

Para resolver o problema, ainda que em parte, o ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini, promete lançar um programa com recursos do FGTS para financiar casa própria a custo perto de zero: um financiamento de R$ 15 mil, por exemplo, seria pago em 25 anos a prestações mensais de R$ 50 – o que cabe em orçamentos baixos como o apontado pela Abecip.

Desconto em folha

Por essas e por outras, quem não tem emprego, ganha pouco ou está com o "nome sujo" continua sem muitas saídas: recorre a amigos, parentes ou, o que é pior, a agiotas. Não há, claro, números sobre esse mercado de "crédito" nem sobre sua "taxa" de inadimplência, e o problema é sério, a ponto de ter sido um dos principais motivos de as centrais sindicais, a Força Sindical e a CUT terem encampado o crédito consignado.

"Nossa intenção é ajudar o endividado a escapar dos agiotas", diz Carlos Andreu Ortiz, tesoureiro do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, que assinou o maior número de convênios com bancos para o crédito consignado. Segundo ele, o sistema ainda não deu certo porque "os bancos fazem mais exigências que o esperado e preferem trabalhar com empresas grandes, que têm 200 empregados ou mais e são as que pagam salários maiores. Não atendem quem tem restrição cadastral e, por isso, os mais necessitados continuam sem chance", afirma.

João Carlos Gonçalves, o Juruna, secretário-geral da Força Sindical, acha que o lado positivo do programa foi, pelo menos, ter oferecido uma opção de juro menor, mas também ressalta que o número de atendimentos ficou e está abaixo do esperado.

Mesmo aquém das expectativas dos sindicalistas, o sistema moveu o mercado. As tradicionais cooperativas de crédito, por exemplo, foram ao Ministério da Fazenda, em março deste ano, pedir igualdade de acesso a recursos do depósito compulsório, para concorrer com os bancos que passaram a operar com o crédito consignado.

Em setembro e outubro do ano passado, dois dos maiores bancos privados, o Santander Brasil (que absorveu o Banespa) e o Unibanco, entraram nesse mercado, anunciando verbas disponíveis de R$ 5 bilhões. O Santander se comprometeu com a Força Sindical a oferecer R$ 2 bilhões em consignação a 1,2 milhão de seus metalúrgicos. No Unibanco, a verba era de R$ 2,5 bilhões a R$ 3 bilhões. À época do lançamento, o jornal "Valor Econômico" reproduziu declaração do diretor executivo de marketing e produtos do Unibanco, Rogério Braga: "O negócio é excelente. Só tem ganhadores. O trabalhador ganha crédito a taxas reduzidas e os bancos ganham fazendo uma operação estável". O Banco Mercantil do Brasil, de porte médio, comprovou a tese: investiu no crédito consignado, em 2003, e elevou essa carteira de R$ 20 milhões para R$ 70 milhões, com planos para chegar a R$ 200 milhões em 2004. No ano passado, o banco dobrou seu lucro, com resultado de R$ 40,7 milhões.

Para conveniados

Em fevereiro deste ano, a Força Sindical e o Banco BMG lançaram o cartão de crédito Força Mais, para funcionários de empresas privadas conveniadas. Sem pagar taxa de adesão ou anuidade nem passar por consulta ao Serviço Central de Proteção ao Crédito ou à Serasa, o interessado pode obter empréstimo a juros de 5,5% ao mês, com prestação descontada no salário.

O Grupo VR, especialista em vale-refeição e vale-alimentação, entrou no segmento, oferecendo linha de crédito pessoal a funcionários de empresas conveniadas com o banco do grupo.

A Nossa Caixa libera crédito de R$ 200 a R$ 3 mil para clientes pela Internet e por terminais de auto-atendimento, com débito em conta.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, ligado à CUT, presidiu convênio entre o Santander e seis empresas jornalísticas. Pelo acordo, o empréstimo mínimo é de R$ 300, o prazo máximo, de 48 meses, e os juros ficam entre 1,75% e 3,6% ao mês. O banco cobra taxa de abertura de crédito (entre R$ 23 e R$ 50) e outras tarifas, como Imposto sobre Operações Financeiras (IOF).

No acordo Santander-Sindicato dos Metalúrgicos, o piso também é de R$ 300. A prestação máxima mensal não pode ser superior a 30% do salário líquido do tomador. Os juros variam entre 2% e 3,8% ao mês, de acordo com o nível de salário do atendido. Os prazos vão de 12 a 48 meses. A tarifa de abertura de crédito (diluída nas prestações) cobrada é de 4% para empréstimos até R$ 500 e R$ 23 fixos para valores acima de R$ 500.

O tomador não precisa ser cliente do banco, mas associado à entidade de classe, deve ter mais de 18 anos e pelo menos seis meses de carteira assinada em empresa que não pode estar concordatária nem com plano de demissão voluntária em andamento. O interessado passa por análise de risco de crédito.

Pelo contrato Santander-Sindicato, o banco repassa à entidade 0,5% sobre o montante emprestado para cada metalúrgico e 0,5% do valor de cada parcela, a título de comissão.

A Associação Brasileira de Bancos (ABBC) atua nesse ramo desde a década passada, concentrando, até 2003, o crédito a funcionários do setor público. Entre essas instituições, o Banco Cruzeiro do Sul é um dos líderes (R$ 240 milhões em carteira e acordos firmados com 122 empresas estatais municipais e estaduais). Seu diretor, Adolpho Nardy Filho, considera o nicho especial para bancos de menor porte, pois "os grandes não são bons em parceria". Os empréstimos para funcionários públicos, especialmente de prefeituras, são bom negócio para instituições menores, acrescenta Luiz Fernando Pessoa, diretor do Banco Arbi, que em 2003 liberou R$ 150 milhões nesse segmento. Na sua opinião, os bancos varejistas mais fortes têm retorno mais favorável em outras operações, como o cheque especial, cujas taxas vão a 10% ao mês. No caso de operações com prefeituras, eles precisam evitar administrações fora dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal. Quando se trata de operações com sindicatos e empresas, "vence quem se adapta mais às necessidades dos trabalhadores", diz Carlos Eduardo Schahin, diretor do Banco Schahin, que atua no segmento pela subsidiária Cifra. É o que os próximos meses vão demonstrar.

 

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