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Ilegalidade repetida

 


Fiscal do trabalho na fazenda Cabaceiras /
Foto: Leonardo Sakamoto

Família autuada em 2001 reincide no uso criminoso de mão-de-obra

LEONARDO SAKAMOTO

João* deixou sua casinha em uma favela na periferia da capital Teresina e foi se aventurar no sul do Pará, numa tentativa de evitar que sua esposa e seu filho de 4 meses passassem fome. Logo na chegada, trabalhou em uma serraria, onde perdeu um dedo da mão numa lâmina giratória. "Me deram duas caixas de comprimidos: uma para desinflamar e outra para tirar a dor, e me mandaram embora", conta. Depois, foi limpar pasto para o gado e levantar cercas na fazenda Cabaceiras, em Marabá (PA), de propriedade da empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda. O "gato" (contratador de mão-de-obra que faz a ponte entre o empregador e o peão) lhe prometeu um bom emprego. Porém, o que João encontrou foi água de péssima qualidade, barracos precários, falta de equipamentos de segurança, de comida e de remuneração. Só o trabalho, que lhe comia a mão de tanto roçar, era uma certeza diária. Se não fosse o grupo móvel coordenado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) – que fiscalizou a fazenda Cabaceiras no dia 11 de fevereiro de 2004 –, João iria comemorar com a foice e a enxada seu 17º aniversário três dias depois.

A ação, que também contou com o apoio da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho (MPT), resgatou 13 trabalhadores e obrigou a empresa proprietária a pagar R$ 20.993,15 em direitos trabalhistas. Segundo a responsável pelo grupo móvel, Marinalva Cardoso Dantas, os peões estavam reduzidos à condição de escravos. Belmiro, um dos gatos da fazenda, foi indiciado por crime de aliciamento.

Neste ano a promulgação da Lei Áurea completa 116 anos. Porém, em vez de festejar, o Brasil faz seu mea-culpa. Em março, o governo reconheceu na Organização das Nações Unidas (ONU) que há pelo menos 25 mil pessoas em situação de escravidão no país. Homens, mulheres e crianças que se cortam nas roças da fronteira agrícola amazônica, queimam mãos e pernas na produção de carvão no cerrado ou se consomem em noites de trabalho nas tecelagens do bairro paulistano do Brás.

Com a mudança de comando no governo federal, as fiscalizações passaram a receber maior apoio. Prova disso é que, no ano passado, 4.932 pessoas ganharam a liberdade – o que significa 46% do total de trabalhadores libertados entre 1995 e 2003. Em março de 2003, foi lançado o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, com 76 medidas a serem tomadas por governo e sociedade civil. O secretário especial dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, chegou a estipular um prazo para o fim dessa prática no país: até 2006.

Esse tema, raramente abordado pela mídia, passou a ganhar mais espaço após o lançamento da Campanha Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, principalmente depois do trágico assassinato de três auditores do Trabalho e de um motorista que realizavam uma fiscalização próximo a Unaí, no noroeste de Minas Gerais, em janeiro de 2004. A repercussão causada por essas mortes acelerou o processo de votação da proposta de emenda constitucional que estabelece a expropriação das terras em que for encontrado trabalho escravo e as destina à reforma agrária. Segundo seu relator, deputado federal Tarcísio Zimmermann (PT-RS), a meta é aprová-la na Câmara até o final deste semestre e enviá-la à sanção presidencial.

Lucro e prejuízo

A utilização de trabalho escravo diminui os custos das fazendas, o que acaba se refletindo no preço final do produto ao consumidor e na competitividade das empresas. Por isso, do ponto de vista econômico, a escravidão só vai ser abandonada quando as vantagens desaparecerem, ou seja, transformarem-se em prejuízo.

Medidas vêm sendo tomadas na tentativa de atingir economicamente quem utiliza esse tipo de mão-de-obra. As ações civis públicas do Ministério Público do Trabalho são uma delas. Por exemplo, há um processo no valor de R$ 85 milhões movido pelo MPT do Pará contra a empresa Lima Araújo Agropecuária Ltda., proprietária das fazendas Estrela de Alagoas e Estrela de Maceió, em Piçarra (PA). Elas foram alvo de quatro fiscalizações de equipes do grupo móvel do Ministério do Trabalho e Emprego desde 1998, durante as quais foram libertados cerca de 180 trabalhadores, entre eles nove adolescentes e uma criança, em situação de escravidão. O valor corresponde a 40% do patrimônio estimado das duas propriedades, cuja principal atividade é a criação de gado.

Esse é o maior processo já movido contra uma empresa por trabalho escravo no Brasil. Segundo Loris Rocha Pereira Júnior, procurador responsável pela ação milionária, as constantes reincidências da Lima Araújo na utilização de mão-de-obra escrava, a situação degradante em que sempre eram encontrados os trabalhadores e o descaso com a Justiça e o trabalho dos fiscais justificam esse valor.

Outra ação que torna a escravidão um mau negócio foi a publicação da "lista suja" do trabalho escravo no Brasil, feita em novembro de 2003 pelo MTE. Dela constam 52 nomes de pessoas e empresas condenadas por essa prática, as quais tiveram, como conseqüência, suas linhas de crédito suspensas em agências públicas, como o Banco da Amazônia e o Banco do Nordeste. O governo federal se comprometeu a divulgar em breve uma atualização dessa "lista suja".

Mas há proprietários de terras que, mesmo tendo sido autuados e multados mais de uma vez e terem o nome incluído naquela lista, continuam a utilizar mão-de-obra escrava. Os autores da lei de expropriação, senador Ademir Andrade (PSB-PA) e deputado federal Paulo Rocha (PT-PA), defendem a tese de que, em certos casos, não há outra alternativa a não ser o confisco da terra. A fazenda Cabaceiras, na qual João foi libertado, já aparecia na "lista suja", pois não é a primeira vez que ali é encontrado trabalho escravo, nem em outras terras dos Mutran – uma das famílias mais ricas do Pará.

"Estamos fazendo um auto de infração por embaraço à fiscalização. Corremos até risco de vida, passando por estradas e pontes perigosas à noite só porque o gerente [da fazenda Cabaceiras] criou embaraços. Tudo isso mostrou má-fé e vontade de dissimular a situação", disse Marinalva. A coordenadora do grupo móvel reclama do fato de que os Mutran têm sido um entrave no combate ao trabalho escravo no sul do Pará. "Eles já sabem de tudo o que é errado e até estão na ‘lista suja’. Ou eles não acreditam que vão ser punidos ou pretendem buscar sempre uma nova forma de burlar a fiscalização", completa.

Evandro Mutran, responsável pela empresa proprietária, rebate: "Estamos sendo vítimas, estão fazendo terrorismo conosco". Procurado por esta reportagem em seu escritório em Belém, negou que houvesse trabalho escravo e vê na disputa de terras um motivo para a fiscalização: "Estão fazendo isso porque querem a fazenda para a reforma agrária. Se dormirmos lá, podemos ser mortos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Já queimaram dois carros na fazenda".

Em dezembro de 2001, a Problemas Brasileiros acompanhou a ação de um grupo móvel na fazenda Peruano, em Eldorado dos Carajás (PA), também de propriedade de Evandro Mutran. Na ocasião, foram libertados 54 trabalhadores (ver edição número 350 da revista).

De acordo com registros do MTE, em agosto de 2002, 22 pessoas ganharam a liberdade na Cabaceiras e foram restituídos R$ 19.815,63 em direitos trabalhistas. Em julho de 2003, foram 36 os resgatados na fazenda Baguá, em Eldorado dos Carajás. Na ação, R$ 25 mil foram pagos. Isso sem contar uma fiscalização ocorrida em abril de 2001 na fazenda Cabaceiras que não chegou a ser finalizada, pois o gerente, Genêncio Chimoka, retirou mais de 30 trabalhadores na surdina para evitar o pagamento dos direitos, mesmo após os fiscais os terem entrevistado. Em agosto de 2002, 25 pessoas foram libertadas da fazenda Mutamba, de Aziz Mutran, em Marabá – também relacionada na "lista suja".

Quanto custa um homem

Assim como João, Raimundo* também não teve muita sorte no sertão e acabou no sul do Pará, à procura de emprego. Chegando a Marabá, ele e seu filho Carlos* ficaram hospedados num dos "hotéis peoneiros" – estabelecimentos conhecidos por deixar que os trabalhadores pendurem as contas de hospedagem e alimentação até que consigam emprego. Quando o gato de uma fazenda aparece procurando mão-de-obra, o dono do hotel lhe vende a dívida. E com ela vai o trabalhador.

Os dois custaram ao gato R$ 80. É isso o que foi pago ao "dormitório do Luís", que fica no quilômetro 6 da rodovia PA-150, pelo gato Belmiro, da Cabaceiras, por quatro dias de hospedagem. Além deles, foram para a fazenda, no dia 18 de novembro, mais cinco homens que estavam no hotel. Esses estabelecimentos agem de forma ilegal, mas permanecem em funcionamento, sem que as autoridades locais tomem providências.

Entre os "cerqueiros" – como são chamados no sul do Pará os trabalhadores que erguem cercas – que foram libertados estava o piauiense Francisco Ferreira Leme, de 74 anos. Ele está na região desde 1983 e é "peão de trecho", aquele que não possui residência fixa e vai de cidade em cidade, fazendo um serviço aqui outro ali, sempre na esperança de conseguir um bom dinheiro que o faça voltar à sua terra ou lhe dê uma vida melhor. Trabalhava desde o início do ano como cozinheiro de barracão para Belmiro, mas o gato nunca lhe disse quanto receberia.

Segundo Evandro Mutran, não foi constatada nenhuma irregularidade trabalhista dentro da área de sua fazenda. "Havia pessoas que não gostavam da comida, apenas. Todos tinham registro." Os trabalhadores encontrados no primeiro barracão de fato tinham carteira assinada, mas o documento era mantido em poder do gerente e estava com data de assinatura errada. Além disso o salário não era pago e os direitos trabalhistas não tinham sido recolhidos. Segundo a coordenadora do grupo móvel, essa é uma forma de tentar burlar a fiscalização, dando um verniz de legalidade à exploração do trabalhador.

O proprietário também diz que a área em que foram encontrados oito cerqueiros não pertencia à Cabaceiras. "Obrigaram o gerente a pagar trabalhadores que nem eram nossos." Porém, após uma acareação das partes, os peões garantiram que trabalhavam para Mutran. O gato Belmiro, que estava desaparecido no momento da ação, deu um depoimento no dia seguinte à Polícia Federal afirmando que o dono seria Evandro Mutran, a terra teria sido grilada da Companhia Vale do Rio Doce e até o filho do proprietário já teria aparecido na área, onde reclamara de uma cerca erguida e ordenara que os trabalhadores refizessem o serviço. A situação deve agora ser resolvida na Justiça.

"Tem de diferenciar irregularidade trabalhista de trabalho escravo. Eu jamais promoveria trabalho escravo na minha vida. Se fosse fazer isso, compraria uma fazenda no meio do mato", reclama Mutran. A Cabaceiras é cortada pela rodovia PA-150, asfaltada, e fica a cerca de 25 quilômetros da sede do município de Marabá. "Eles não dão à pessoa o direito de se defender. É um julgamento sumário, vão dizendo que é trabalho escravo. Até seria o caso de um processo para reparação de danos."

Negócios de família

A região que hoje abriga um rosário de cidades que vai de Marabá até o extremo sul do Pará já foi mais violenta. Durante a década de 70, milhares de pessoas acorreram àquela área para derrubar mata, abrir sítios e criar fazendas. Os trabalhadores, com enxadas, foices e unhas. Grandes empresas como a Volkswagen, o Bradesco e o Banco Real, com gordos subsídios cedidos pela ditadura militar.

O Estado estava ausente e a lei vigente era a de quem tinha mais força para fazer valer sua vontade. E, numa situação como aquela, a corda sempre rompe do lado mais fraco. Dezenas de posseiros, líderes sindicalistas e trabalhadores rurais foram assassinados. Membros da família Mutran participaram da disputa dessas terras. De acordo com ativistas de direitos humanos que atuavam na época, eles foram responsáveis por massacres de posseiros e desaparecimento de trabalhadores.

Com o tempo, a fronteira agrícola tomou rumo oeste – hoje a "terra de ninguém" se chama Iriri-Terra do Meio, a oeste de São Félix do Xingu, uma das zonas menos exploradas da Amazônia. E a antiga fronteira agrícola, hoje quase desprovida de floresta, região que vai de Marabá a Conceição do Araguaia, ganhou uma estrada, a PA-150, seus vilarejos de madeira se transformaram em cidades de tijolos, e o Estado, perdendo o medo, finalmente se fez presente.

Enquanto isso, os Mutran assumiram postos importantes na política local ou se tornaram empresários bem-sucedidos. Nagib Mutran, o patriarca da família, foi deputado estadual. Ele tem dois irmãos, Jorge e Benedito. O filho de Nagib, Osvaldo dos Reis, o Vavá, foi prefeito nomeado de Marabá e deputado estadual. Dos filhos de Vavá, Nagib Neto foi prefeito de Marabá e Osvaldo Júnior, vereador – casado com Ezilda Pastana, juíza em Marabá. Vavá tem dois irmãos, Guido – com um filho vereador (Guido Filho) – e Aziz.

Jorge Mutran teve três herdeiros, Délio, Celso e Evandro – que é responsável pela empresa Jorge Mutran Exportação e Importação Ltda. (proprietária da fazenda Cabaceiras), em sociedade com os irmãos. Por fim, o último irmão de Nagib, Benedito, é pai de Benedito Filho. Isso, é claro, não resume toda a família.

Evandro Mutran é conhecido nacionalmente devido à qualidade de suas matrizes reprodutoras e de seu gado. É o maior criador individual de nelore no norte do país, pioneiro na utilização da tecnologia de fecundação in vitro na região, com leilões bem concorridos. É também chamado de "Rei da Castanha" por liderar a produção e a comercialização desse produto. Vale lembrar que a castanha brasileira é exportada para os Estados Unidos, a União Européia e a Ásia. Benedito Filho, o Bené Mutran, possui mais de 45 mil cabeças de gado e já foi escolhido duas vezes consecutivas o melhor criador e expositor da ExpoZebu, tradicional feira do setor em Uberaba (MG). É presidente da Associação dos Exportadores de Castanha do Brasil.

Em setembro de 1989, aos 17 anos, José Pereira Ferreira foi atingido por uma bala no rosto por funcionários da fazenda Espírito Santo quando tentava fugir do trabalho escravo. A propriedade, localizada em Sapucaia, sul do Pará, segundo o Ministério Público Federal pertencia a Benedito Mutran Filho. Depois de passar muitos anos sem merecer a atenção das autoridades brasileiras, o caso de Zé Pereira foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que condenou o Brasil (ver entrevista abaixo). Finalmente, em novembro de 2003, o Congresso Nacional aprovou uma indenização a ele no valor de R$ 52 mil.

Tanto no processo da OEA quanto no que correu na Justiça brasileira, Benedito Mutran Filho não aparece entre os réus. O proprietário foi arrolado como testemunha pela acusação e afirmou que raramente ia à fazenda e demitiu os funcionários envolvidos assim que soube do acontecido. Não há ninguém preso em decorrência do caso.

O ramo da família Mutran composto por Vavá e Nagib Neto é o que mais gerou escândalos, uma vez que ambos tiveram seus mandatos políticos cassados. Vavá assassinou um fiscal da Receita e, por isso, foi cassado e condenado a oito anos de prisão, que não cumpriu integralmente. Em 2002, matou uma criança que brincava em frente à sua casa em Marabá, com um tiro na cabeça. Hoje, aguarda julgamento em liberdade. Seu filho Nagib Neto utilizava crianças para varrer as ruas de Marabá. Foi afastado da prefeitura por corrupção.

Hoje, a maior briga dos Mutran é contra os sem-terra que ocupam suas fazendas. De acordo com Raimundo Nonato, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Pará (Fetagri), além da Cabaceiras, a Peruano e a Mutamba também estão na pauta de reivindicação dos movimentos sociais para desapropriação e reforma agrária. José Batista Afonso, da Comissão Pastoral da Terra de Marabá, acrescenta as fazendas Balão e Lajedo, também pertencentes à família Mutran, à lista.

No dia 26 de março fez cinco anos que famílias do MST ocupam parte da fazenda Cabaceiras e travam uma batalha com o proprietário e com o governo pela sua desapropriação. De acordo com Valdimar Lopes Barros, que até fevereiro era advogado do MST na região, os trabalhadores já produzem há anos na terra ocupada, desenvolvendo culturas de arroz, feijão e milho. Segundo ele, houve uma manobra para impedir que a área fosse desapropriada, pois a primeira avaliação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) teria indicado que a terra era improdutiva, mas uma segunda apontou o contrário. Será feita uma terceira avaliação ainda, mas não há perspectivas de acordo.

Jader Barbalho, hoje deputado federal pelo PMDB-PA, foi acusado de favorecer proprietários de terras do sul do Pará na compra de mais de 70 imóveis do Polígono dos Castanhais quando era ministro da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (setembro de 1987 a julho de 1988). A família Mutran foi listada entre os proprietários beneficiados com a venda superfaturada de algumas de suas fazendas. De acordo com as denúncias, que ganharam repercussão na mídia nacional, o governo não fez avaliação de preço das terras ou mesmo vistoria para checar se elas seriam adequadas para o estabelecimento de assentamentos.


*Os nomes reais de João, Raimundo e Carlos foram substituídos por questão de segurança.

 


Zé Pereira, um sobrevivente

José Pereira Ferreira conseguiu indenização mais de 14 anos depois de quase ter sido morto ao fugir da fazenda onde era mantido escravo. Goiano de São Miguel do Araguaia, foi com 8 anos para o Pará, acompanhando o pai, que também fazia serviços para fazendas. Hoje, com 31 anos, pretende começar vida nova: "Bem longe daquele lugar".

Problemas Brasileiros – Como eram tratados os trabalhadores na fazenda Espírito Santo?
José Pereira FerreiraA gente não apanhava lá, não. Mas trabalhava com eles nos vigiando, armados com espingarda calibre 20. A gente dormia trancado, trabalhava a semana toda...

PB E vocês eram quantos?
José Pereira Nós éramos muitos trabalhadores. De 19 a 30, não sei ao certo. Aí eu fiz um amigo, apelidado de Paraná, que eu não sei o nome dele. E vimos que daquele jeito não dava. Nós não íamos conseguir trabalhar muito tempo daquele jeito e resolvemos sair da fazenda, tentar uma fuga.

PB O que vocês faziam na fazenda?
José Pereira – A gente fazia roça de juquira, arroz de pasto. É fazenda de gado. Eles não deixavam a gente andar muito, então eu só conhecia o que faziam os que estavam no barraco com a gente.

PB Já deviam muita coisa para a fazenda, segundo o gato?
José Pereira – O gato dizia que estávamos devendo muito. A gente trabalhava e eles não falavam o preço que iam pagar pra gente, nem das coisas que nós comprávamos deles, nem nada. E, aí, nós fugimos de madrugada, numa folga que o gato deu. Andamos o dia todo dentro da fazenda. Ela era grande e tinha duas estradas, mas a gente só sabia de uma. Nessa, que a gente conhecia, eles não passavam. Mas já tinham rodeado pela outra e botado trincheira na frente, tocaia, né. Não sabíamos... Mais de cinco horas passamos na estrada, perto da mata. E quando saímos da mata, fomos surpreendidos pelo Chico, que é o gato, e mais três, que atiraram no Paraná, e ele caiu morrendo. Eles foram buscar uma caminhonete e, com uma lona, forraram a carroceria. Aí colocaram o Paraná de bruços e me mandaram andar. Eu andei uns 10 metros e eles atiraram em mim.

PB De costas?
José Pereira – É. Acertou meu olho. Pegou por trás. Aí eu caí de bruços e fingi de morto. Eles me pegaram também e me arrastaram, me colocaram de bruços, junto com o Paraná, me enrolaram na lona. Entraram na caminhonete, andaram uns 20 quilômetros e nos jogaram na rodovia PA-150, em frente da fazenda Brasil Verde. O Paraná estava morto. Eu me levantei e fui para a Brasil Verde. Procurei socorro e o guarda me levou ao gerente da fazenda, que autorizou um carro a me deixar em Xinguara, onde fui hospitalizado.

PB Como você fez a denúncia de trabalho escravo?
José Pereira – Fui para Belém fazer um tratamento [no olho] e denunciar o trabalho escravo na fazenda Espírito Santo à Polícia Federal. Tinha ficado muito companheiro meu lá dentro. Denunciei e voltei à fazenda com a Polícia Federal. Eles chegaram lá e já encontraram uns 60 trabalhadores. O Chico e uns outros ficaram sabendo que eu tinha escapado da morte e tinham fugido. A polícia fez dar o dinheiro da passagem daqueles trabalhadores e os deixou na beira do asfalto.

PB Quanto você recebeu do governo federal?
José Pereira – Recebi o valor de R$ 52 mil, em novembro. Para mim, foi muito importante. Mudou muito a minha vida. Estou comprando uma chácara. Bem longe daquele lugar. Vou mexer com gado, alguma roça, plantação... Começar vida nova.

 

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