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A presença brasileira no cenário internacional

JOSUÉ MUSSALÉM


Josué Mussalém / Foto: Gabriel Cabral

O economista Josué Souto Maior Mussalém esteve presente no dia 9 de junho de 2005 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "O Brasil no Cenário Internacional - Histórico e Perspectivas".
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.

No Brasil de hoje existe uma verdadeira onda em direção ao mercado externo, que remonta ao início dos anos 1990, principalmente depois de Fernando Collor de Mello, continuando com Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, que ampliou fortemente a abertura comercial do país. Aliás, foi a partir de FHC que o Brasil passou a dar prioridade a uma inserção positiva no cenário internacional, não só por causa do trabalho do Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, mas também pela ação de alguns setores mais dinâmicos da economia brasileira.

A abertura do mercado trouxe uma dimensão qualitativa dos produtos que os consumidores brasileiros passaram a ter à disposição. Aliás, além da melhor qualidade, o preço era mais baixo do que o dos concorrentes nacionais, o que resultou em um forte choque externo sobre nosso setor industrial, criado à sombra de um longo processo de substituição de importações e, em alguns casos, protegido por uma rígida reserva de mercado, como aconteceu com a informática. Alguns segmentos do setor secundário sofreram mais do que outros. O têxtil foi um deles, até porque a temida produção asiática, notadamente a chinesa, primeiro a de Taiwan e depois a da própria China continental, entrou firme no mercado brasileiro. Esse é um fato que voltou a ocorrer. Empresários do setor têxtil e de calçados já pediram oficialmente ao Itamaraty salvaguardas com relação à China, por conta da queda do dólar e da forte invasão de produtos chineses no Brasil. Além disso, o real apresentou nos anos iniciais de sua criação uma queda forte em relação ao dólar norte-americano. Esse fato por si só determinou um avanço das importações em detrimento das exportações, até a data da maxidesvalorização do real, que aconteceu em janeiro de 1999.

Mas a inserção brasileira no cenário internacional não se fez do dia para a noite. Ela é antiga, vem desde o final dos anos 30, se amplia com a 2ª Guerra Mundial, se reduz no fim dos anos 40 e ao longo da década de 50, retorna lenta e gradualmente nos 60. Nos 70 toma uma nova dimensão, com o slogan "Exportar é o que importa". Entra em queda nos anos 80, em função da crise da dívida externa - o famoso setembro negro de 1982, de triste memória -, patina no restante da década, considerada por muitos como perdida, e retoma novo fôlego nos 90, até os dias atuais. Interessante notar que a inserção se expandiu a partir da abertura de nosso comércio exterior. Importações maiores funcionaram como vetor de pressão e de reação dos setores mais dinâmicos da economia. Em outras palavras, a importação forçou o Brasil a procurar nichos de qualidade para fazer frente aos produtos que vinham de fora.

Mas não se deve mensurar a presença do país no cenário mundial apenas pelo ângulo do comércio, embora seja esse o lado real em todo o processo. Na verdade existem outros fatores relevantes. Para analisá-los, vamos considerar as várias vertentes de inserção internacional de nosso país, a partir de quatro linhas fundamentais: a política, a militar, a social e cultural, e a econômica. Para garantir maior eficácia nesta apresentação, vamos considerar todas elas a partir da perspectiva histórica, tendo como ponto de partida o ano de 1938, véspera da 2ª Guerra Mundial, quando o Brasil iniciava uma era de preocupações de caráter internacional, seja por ter sido vítima da Intentona Comunista, em novembro de 1935, seja pela intenção do Estado Novo de ampliar a esfera de poder nacional através de uma nova fase industrial, notadamente pela instalação de uma siderurgia moderna.

Está em processo de revisão um livro sobre a 2ª Guerra Mundial, com um trabalho de pesquisa que realizei durante muitos anos, nos Estados Unidos, nos arquivos europeus e mais recentemente em registros históricos do exército no Rio de Janeiro e em Brasília. Encontrei, por sorte, um documento que acredito nem Hélio Silva viu. Ele é o grande historiador brasileiro do período da 2ª Guerra Mundial, com a trilogia: 1939 - Véspera de Guerra, 1942 - Guerra no Continente e 1944 - O Brasil na Guerra. Conversei muitas vezes com ele, mas nunca fez menção a um relatório do general Eurico Gaspar Dutra ao presidente Getúlio Vargas, documento com carimbo de secreto, que casualmente encontrei no arquivo histórico do exército. Tem mais de 400 páginas, e é um verdadeiro estudo da situação estratégica, política, militar e industrial do Brasil naquele período. Nele percebe-se claramente a grande preocupação que o país tinha com temas de ordem social, relações internacionais de fronteira com a Argentina, com questões inclusive de industrialização, como a intenção do marechal Dutra de privatizar a produção de armamentos. Ele diz ao presidente Vargas que o Brasil não deve ter uma indústria militar estatal, porque o Estado brasileiro não seria capaz de mantê-la. É interessante notar que o país se preocupava muito com a guerra com a Alemanha. Tanto Dutra como o general Góis Monteiro, que era o chefe do estado-maior do exército, opunham-se ao rompimento de relações entre as duas nações, porque temiam o poderio germânico, que não era pequeno, sem contar os 600 mil descendentes de alemães que moravam no Brasil.

Na vertente política, vamos começar falando de uma primeira incursão brasileira no cenário militar, que foi a participação na 1ª Guerra Mundial. Pouca gente sabe que o Brasil entrou em guerra contra a Alemanha em 1917, no governo Venceslau Brás. Foi uma atuação muito pequena, com a criação da Divisão Naval de Operações de Guerra. Essa esquadra brasileira foi patrulhar a costa da África, mas nunca deu um tiro. Incluía dois encouraçados, São Paulo e Minas Gerais, na época modernos e muito bem armados com baterias de 305 mm. Na assinatura do documento que encerrou a guerra na Europa, o Tratado de Versalhes, o Brasil foi apenas observador. Esse tratado, aliás, pode ser considerado o início da 2ª Guerra. A pressão sobre a Alemanha fez com que um cabo desconhecido chegasse ao poder de forma tão desastrosa para o mundo.

O Brasil começou a tomar dimensão internacional a partir de 1938, quando o regime nazista se consolidou na Alemanha, e o III Reich manifestou forte interesse pela América do Sul. O livro Crônica de uma Guerra Secreta, de autoria do embaixador Sergio Corrêa da Costa, mostra a importância que o Estado nazista dava ao Cone Sul. A expansão do nazismo e o grande número de imigrantes alemães no sul do país nos colocavam na rota das doutrinas nazi-fascistas, até porque a colônia italiana era maior ainda do que a alemã, só que menos aguerrida. Faço um pequeno parêntesis para dizer que os alemães fora da Alemanha eram chamados de povo alemão. Tenho um tio que participou da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e combateu em Monte Castelo, na Itália. No dia em que a divisão brasileira aprisionou em Fornovo a 148ª Divisão Alemã de Infantaria, ele conheceu um soldado alemão nascido em Santa Catarina, que falava fluentemente português e pediu que trouxesse uma carta para a família dele. Tinha se alistado, atendendo à convocação do Reich para lutar pela Alemanha.

A existência de uma numerosa colônia alemã no sul do Brasil, aliada ao fato de que a Argentina era forte simpatizante das idéias nazistas, preocupou o governo norte-americano, gerando uma disputa entre Washington e Berlim pela aproximação com o Brasil. Em 1938, nosso país fez uma grande encomenda de armas pesadas à casa Krupp, da Alemanha, um contrato para fornecimento de 1.080 peças de artilharia, tanto de campanha quanto antiaéreas, além de munição e viaturas de apoio. Vi esse documento na biblioteca do exército, no Rio de Janeiro. Esse fato criou uma nova linha doutrinária para o exército brasileiro, que até então seguia o modelo francês. Como a França foi vencedora da 1ª Guerra Mundial, o Brasil contratou uma missão militar desse país que ficou aqui de 1919 a 1940. A doutrina militar francesa influenciou muito o comportamento do exército brasileiro, como na cavalaria, na infantaria, na artilharia de campanha como base de combate, e nunca a arma blindada. Então, quando o Brasil entrou na guerra, o grande problema foi mudar para os padrões norte-americanos, uma verdadeira loucura. O pessoal da artilharia não se conformava porque no modelo francês quem dirigia o fogo da bateria era um capitão que entendia de matemática, função exercida por sargentos no norte-americano. Os capitães, trocados por sargentos, evidentemente sentiram-se desprestigiados.

O contrato com a Krupp e a aquisição em 1938 de três submarinos da Itália fascista mobilizaram o presidente Franklin Delano Roosevelt a se aproximar do Brasil. Os norte-americanos nos cortejaram de 1938 até meados de 1944. A importância do nordeste no conflito foi transcendental. Os arquivos revelam como os líderes da época, de Winston Churchill a Roosevelt, e os generais norte-americanos falaram bem de Natal, considerada o trampolim da vitória. É interessante dizer que, além da importância estratégica das bases no nordeste, lá é que foi definida a participação do exército brasileiro no teatro europeu. O país enviaria não uma divisão, mas um corpo de exército, em um acerto entre Roosevelt e Getúlio Vargas, realizado em fevereiro de 1943 na base aérea na cidade de Natal. Seriam quatro divisões, das quais três de infantaria e uma motomecanizada. Depois, por questões operacionais, foram reduzidas a apenas uma, pela dificuldade que o Brasil tinha de manter 100 mil homens nas condições de treinamento que os norte-americanos exigiam.

Recife e Natal se notabilizaram entre os Aliados, a primeira por deter o comando naval da 4ª Esquadra dos Estados Unidos, cuja área de atuação era o Atlântico Sul. E Natal por sediar a maior base aérea norte-americana fora do território dos Estados Unidos. Até o final de 1942, para se ter uma idéia, havia 30 mil norte-americanos em Natal, quando a população da cidade era de 20 mil.

Por que Natal era importante? Em 1942, a Rússia enfrentava uma forte pressão do exército alemão, que tinha avançado pelo norte da África, onde Dacar era uma possessão francesa. Segundo a doutrina militar norte-americana, poderia haver uma dupla pinça de ataque aos Estados Unidos, uma pela Noruega e outra pelo nordeste brasileiro. De Dacar a Natal são 1.600 milhas náuticas de distância. Essa pinça seria reforçada pelos alemães que viviam no Brasil. Dos 600 mil que moravam em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, 100 mil tinham treinamento militar, ou seja, tinham estudado na Alemanha. Um grupo de alemães desse porte, equivalente a mais ou menos seis divisões, além da simpatia muito grande da Argentina, forçaria o Brasil para o lado alemão.

Além disso, havia a rota. Quando os norte-americanos lançaram a Operação Tocha, que foi a invasão do norte da África em 1942, estabeleceram uma rota aérea Estados Unidos-Belém-Natal, Natal-Dacar, Dacar-Cairo, Cairo-Teerã, Teerã-território russo. Muitos abastecimentos para os russos, que eram emergenciais e não podiam seguir por comboios, passaram por Natal. Hoje, o Aeroporto Internacional do Recife, um dos mais importantes do país, tem 153 pousos e decolagens diários. Durante a 2ª Guerra Mundial Natal tinha 400 a 600 por dia. E o estado-maior norte-americano previa, no caso de o Brasil não aderir aos Aliados, uma força de 115 mil homens invadindo o nordeste. Era a operação Pote de Ouro, mantida em sigilo durante 30 anos e só recentemente divulgada.

Com a atuação do Brasil na guerra, tivemos a oportunidade de participar da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), e foi a primeira vez que o Brasil tentou fazer parte do Conselho Permanente de Segurança. Essa questão que hoje está nos jornais - a China, a Índia e a Rússia dizendo que não apóiam o Brasil com poder de veto no Conselho de Segurança -, essa briga já é de 1945/46. Na época, quem vetou o Brasil foram a Grã-Bretanha e a União Soviética. O argumento de ambos foi que o Brasil não tinha tido uma posição favorável aos Aliados até 1942. Essa postura, que Getúlio soube usar muito bem para trazer a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), prejudicou o Brasil.

Além disso, o pós-guerra determinou certo arrefecimento do prestígio internacional do país. Diz um professor da Universidade New Hampshire que depois da 2ª Guerra Mundial os brasileiros se magoaram com os norte-americanos, porque acreditavam que estes lhes tinham dado as costas. É lógico, quando a guerra foi se tornando cada vez mais européia, pois deixou de existir na África, o prestígio do Brasil diminuiu. Fechamos um acordo militar com os Estados Unidos em 1947, que durou até 1977, quando foi denunciado por Ernesto Geisel. Ele tinha o objetivo de dotar as forças armadas brasileiras do material do estado-da-arte das forças armadas norte-americanas. Mas o Brasil, no governo Dutra, em 1950, recusou-se a mandar 50 mil homens para a Guerra da Coréia, e a partir daí os norte-americanos realmente nos deram as costas. Nos anos 50, o Brasil teve pouca participação na cena política, militar e econômica internacional, fato esse que continuou nos 60. Na década de 70, a partir do chamado milagre brasileiro, o país despertou o interesse dos investidores internacionais.

Evidentemente, houve um surto de investimentos estrangeiros nos anos 50, no governo de Juscelino Kubitschek, cujo Plano de Metas tinha atribuído prioridades à indústria automobilística e naval. Mas é na década de 70 que se inicia uma fase lenta de internacionalização do Brasil. Embora a política de aproximação com outros países tenha seguido a linha do pragmatismo responsável, adotado pelo chanceler Azeredo da Silveira, o que determinou um contato maior do então governo militar do general Ernesto Geisel com o chamado Terceiro Mundo, notadamente com os países africanos e do Pacto Andino, nossa dimensão internacional foi muito reduzida. Essa aproximação era uma resposta às constantes pressões do governo norte-americano, mais precisamente do presidente Jimmy Carter, sobre desrespeito aos direitos humanos na repressão à guerrilha comunista, pressão que culminaria com uma crise nas relações com os norte-americanos e com o rompimento unilateral do antigo acordo militar.

Também na década de 70, o posicionamento político do governo militar foi nacionalista e de afastamento do eixo de influência norte-americana, ao celebrarmos o acordo nuclear com a República Federal da Alemanha, irritando os Estados Unidos.

Nos anos 80, do ponto de vista de nossa política externa tivemos um fato negativo, que foi a declaração da moratória unilateral, que prejudicou sobremaneira a imagem do país, dificultando as relações políticas e comerciais.

Os anos 90 representam o momento de inflexão de nossa política internacional. A eleição do presidente Fernando Collor de Mello, a primeira direta realizada em 29 anos, dos quais 20 de regime militar e o restante como rescaldo desse regime, chamou a atenção do mundo. No dia 15 de março de 1990, Brasília foi invadida por uma grande quantidade de chefes de Estado estrangeiros para assistir à posse daquele que seria uma esperança na América Latina, e deu no que deu. Mas a mudança nos anos 90 foi importante em termos de imagem, e a posse de Collor foi tão comentada internacionalmente quanto sua derrocada, um impeachment sem interferência militar.

Para a imagem do Brasil no exterior, o governo de Itamar Franco pouco contribuiu. Na verdade, quem abriu o espaço político para o país nessa década foi o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, respeitado na Europa por sua capacidade intelectual. Como professor, recebeu prêmios da Universidade de Bolonha, de Paris, sempre muito festejado no meio intelectual, deu uma dimensão diferente ao Brasil. Um fato interessante é que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva segue a mesma orientação de presença internacional de seu antecessor. Podemos criticar, mas ela está mantida, talvez pela cultura nova do Itamaraty, de 20 anos para cá. Essa presença não vem se limitando apenas à América Latina, mas se amplia para o Oriente Médio e a Ásia, sem falar na União Européia e nos Estados Unidos, nosso maior parceiro comercial.

Seria muito longo falar aqui sobre as dificuldades diplomáticas que nosso país enfrenta. Houve questões interessantes, como a da Argentina recentemente, com Néstor Kirchner. Temos uma posição um pouco difusa com relação à Área de Livre Comércio das Américas (Alca), mas fizemos um trabalho recente que considero importante. Foi a Cúpula Árabe realizada em Brasília, que tem uma dimensão de médio e longo prazo muito mais relevante do que possa parecer. Do ponto de vista estratégico, os países árabes têm duas grandes perspectivas. Primeiro, são produtores de petróleo, cujo preço tende a subir para mais de US$ 80 o barril nos próximos 20 anos, de acordo com cálculos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Evidentemente, o Brasil conseguirá auto-suficiência este ano, mas a renda dos países árabes produtores de petróleo vai crescer muito. E, segundo, não são industrializados, ou seja, precisam comprar quase tudo em termos de bens de consumo, o que significa um excelente mercado para a indústria brasileira.

Do ponto de vista da ampliação do Mercosul, sem falar nas dificuldades com a Argentina, a política externa brasileira criou novos espaços interessantes. No mês de março deste ano, o intercâmbio do Brasil com a Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), que inclui até o México, superou o comércio com os Estados Unidos, ou seja, negociamos com a Aladi pela primeira vez na história mais do que com os Estados Unidos.

Em resumo, o Brasil está no caminho correto da inserção política internacional, independentemente de quem está no poder. Ainda falta muito para que esteja no nível de outras nações, por exemplo, do G8, mas a obstinação pode nos levar a essa condição daqui a dez, 15 ou 20 anos. Se o Itamaraty se inspirar no chanceler Osvaldo Aranha, o grande brasileiro que deu início à trajetória do Brasil na cena política mundial, seja como embaixador nos Estados Unidos, seja como presidente de importantes sessões da Assembléia Geral da ONU, inclusive da que criou o Estado de Israel, esse caminho poderá ser encurtado.

Quando se fala em inserção militar, diria que a participação do Brasil no cenário internacional chama-se inserção de paz. Ou seja, nossa presença com forças militares no exterior, afora os conflitos militares maiores, se caracterizou a partir dos anos 50 por composição em forças de paz da ONU. Assim foi em Suez, São Domingos, Timor Leste e atualmente no Haiti, aliás desta vez no comando do contingente. Outras missões militares de observação foram feitas na Bósnia-Herzegovina e até mesmo durante o conflito do Vietnã. Mas duas participações militares do Brasil precisam ser sempre lembradas, a primeira, já citada, da Divisão Naval e a segunda, da FEB, com 25 mil homens, que entrou em combate mesmo. Historiadores como Hélio Silva e outros ligados às forças armadas escreveram sobre esse assunto.

Mas temos outra subvertente da presença brasileira no mundo, que foi a indústria bélica que floresceu no país depois da denúncia do acordo militar Brasil-Estados Unidos. Nos anos 1980, o Brasil tornou-se um dos líderes mundiais de exportação de armas convencionais, notadamente para o Oriente Médio, atingindo também mercados da América Latina e em alguns casos até mesmo países da Europa, como a França. Com o fim da Guerra Fria e a crise orçamentária das forças armadas, essa indústria se ressentiu com o fechamento de algumas fábricas importantes, como a Engesa, embora outras tenham sobrevivido muito bem, como é o caso da Embraer e da Avibrás. A Imbel, que pertence ao exército, está sendo reestruturada, e o Brasil procura retomar a posição de fornecedor de armamentos. A tarefa, porém, se tornou mais difícil, porque a pesquisa tecnológica básica e aplicada foi também prejudicada pela crise.

Na vertente social e cultural, faço uma pergunta: como se poderia entender essa inserção de uma nação com tantos problemas internos? Diria que a resposta começa com uma simples constatação: temos uma grande convivência racial e de nacionalidades no Brasil. Mais: uma boa produção de bens culturais. Em outras palavras, a inserção social do Brasil é ampla na medida em que somos uma nação miscigenada de 184 milhões de habitantes, segundo projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2005. As migrações oriundas da Europa e da Ásia, sem falar na presença árabe, de judeus e de africanos, esta evidentemente forçada pela escravidão, criaram aquilo que Gilberto Freyre chama de metarraça.

Hoje em dia, a inserção social, que tem a ver com o conceito de inserção cultural, tem uma correspondência em duas direções. Existem muitos brasileiros morando fora, seja na Europa, na Ásia, notadamente no Japão, e também nos Estados Unidos. Temos no Brasil, por exemplo, 5 milhões de descendentes de alemães, sem falar nos mais de 6 milhões de italianos ou mais de 6 milhões de japoneses. Citei esses três porque são provenientes de nações que faziam parte do Eixo durante a 2ª Guerra Mundial. Eles convivem muito bem aqui conosco. Também temos poloneses, portugueses, franceses, espanhóis, sírio-libaneses, palestinos, judeus, turcos e ingleses e um pouquinho de norte-americanos. Do ponto de vista de bens culturais, o Brasil ainda patina na divulgação da música, da culinária e da arte. Há algumas iniciativas importantes nesse campo, como a exposição sobre o barroco brasileiro em 2001, realizada no Petit Palais, em Paris, mostra que atraiu uma grande quantidade de pessoas. Em 2005, o ano do Brasil na França, temos múltiplas manifestações, não apenas de música e de dança, mas também de leitura de autores brasileiros. Neste ano também a famosa editora Gallimard de Paris lançou uma terceira edição de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, antecipando o pagamento de direitos autorais, um indicativo de excelência na receptividade do público leitor na França.

A presença cultural do Brasil é importante porque serve de contraponto a imagens negativas de nosso país na União Européia, como devastação de florestas, meninos de rua, violência urbana e crime organizado no Rio de Janeiro. No ano passado, coordenei em Bruxelas um seminário que se repetirá em Paris este ano, chamado Florestas do Brasil. Levamos sete cientistas brasileiros, de Piracicaba (SP), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Instituto Florestal de Belo Horizonte, para uma conversa de um dia inteiro com 60 europeus convidados pelo Itamaraty. Parece incrível, mas temos uma excelente legislação ambiental e, infelizmente, violações constantes, por incompetência do governo.

A cultura dos esportes é outra subvertente de fundamental valor de nossa inserção no exterior, tanto no futebol como no automobilismo. Ayrton Senna ainda é muito lembrado na Europa. E, na literatura, é impressionante a presença de Paulo Coelho, nosso maior best-seller na Europa.

E não se deve desprezar a importância do grande número de estudantes brasileiros nas escolas de formação superior dos Estados Unidos e da Europa. A Casa do Brasil, em Paris, é um exemplo disso. Ela passou por uma crise, mas a diretoria atual conseguiu milagrosamente US$ 8,5 milhões para recuperá-la. É um projeto de Lúcio Costa, com participação de Le Corbusier, e é tombada pelo governo da França como monumento cultural. Ela faz parte da Cité Universitaire de Paris, que tem 3,5 mil estudantes estrangeiros.

Por último, a inserção econômica, que pode ser dividida em três fases. A primeira como exportador exclusivo de produtos primários e importador de manufaturados, e que vai de 1938 a 1960. O período em que se reduz a importação de manufaturados e cresce a de petróleo vai de 1961 a 1980. Nessa fase estão incluídos os dois choques do petróleo e iniciamos também um movimento exportador mais diversificado. E a terceira, que já dura 25 anos, ou seja, vem desde 1981, marcada por um esforço exportador sem precedentes, notadamente depois da crise da dívida externa em setembro de 1982.

Na primeira fase, o Brasil tinha presença insignificante na economia internacional. Nossa dívida externa, por exemplo, era baseada em libras esterlinas, até porque os empréstimos internacionais tomados durante a República Velha e até 1940 tinham a Grã-Bretanha como fornecedora de capitais. Naquela época, a dívida externa era da ordem de 173 milhões de libras esterlinas. Depois da 2ª Guerra Mundial, o Brasil gastou as reservas cambiais obtidas durante o conflito em produtos de consumo, sem se preocupar com investimentos que poderiam ter sido feitos, como por exemplo na usina de Volta Redonda, que tinha sido inaugurada em 1946. O país perdeu uma chance histórica de comprar máquinas para modernizar seu parque industrial. Em resumo, a economia brasileira vis-à-vis o cenário internacional era de ínfima importância, notadamente porque sua participação no comércio global sempre foi inferior a 1% do total.

No segundo período, de 1961 a 1980, fase que abrange o regime militar, houve uma mudança estratégica nas relações econômicas com o resto do mundo. Nos anos convulsivos - agosto de 1961 a março de 1964 -, nossa presença internacional do ponto de vista econômico era extremamente insignificante. O Brasil chamava a atenção pelos grandes problemas econômicos e sociais. Um dado interessante sobre 1961, um ano politicamente agitado, é o dinamismo que se verificou na economia. O país cresceu 10,3% nesse ano. Declinou para 5,3% em 1962, 1,5% em 1963 e 2,4% em 1964. Alguns analistas creditam aquela taxa de crescimento significativo de 1961 ao modelo de autoridade governamental lançado por Jânio Quadros, o que fez com que os credores estrangeiros olhassem o Brasil de outra maneira. Coincidiu também com o início do programa Aliança para o Progresso, lançado pelo presidente John Kennedy, que favorecia governos reformistas da América Latina. O presidente João Goulart, que substituiu Jânio, teve uma convivência muito confusa com o setor externo, notadamente com a aprovação no Congresso de uma rígida lei de remessa de lucros em outubro de 1962.

Na década de 1960 havia certo modismo de substituir importações em países em desenvolvimento, a partir de conceitos definidos pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal). E o Estado seria um poderoso motor de desenvolvimento econômico. A tese era válida, só que não havia preocupação tecnológica. Como o desemprego estrutural era muito grande, as políticas industriais privilegiaram empreendimentos que oferecessem mão-de-obra intensiva. Após um período de estagnação, até 1967, iniciou-se em 1968 um boom conhecido como milagre econômico, que duraria até 1974.

É interessante notar que o comércio exterior cresceu a taxas substancialmente mais altas do que as da economia como um todo. Essa observação é feita pelo economista Werner Baer em seu livro A Economia Brasileira, que está atualizado até 2002. Segundo Baer, entre 1970 e 1973, a taxa média anual de crescimento das exportações foi de 14,7%, e das importações 21%. O déficit comercial resultante do maior aumento das importações elevou-se ainda mais devido a um crescente déficit no balanço de serviços. Até 1974, entretanto, ele foi mais do que compensado por um aporte maciço de capital público e privado. A entrada líquida de investimentos diretos aumentou da média anual de US$ 84 milhões no período de 1965 a 1989 para a de US$ 1 bilhão de 1973 a 1976. Ainda mais dignos de nota foram os empréstimos externos líquidos, que se ampliaram da média anual de US$ 604 milhões entre 1965 e 1969 para a de US$ 6,5 bilhões anuais entre 1973 e 1976. Lembro que de 1974 a 1976 esses recursos eram já petrodólares, em função do primeiro choque do petróleo, ocorrido em 1973. O financiamento externo superou significativamente o déficit da conta corrente até 1973, resultando em aumento das reservas cambiais. Elas tinham uma média - parece mentira - de apenas US$ 400 milhões no período de 1965 a 1969 e chegaram a US$ 6,8 bilhões em 1973. Hoje as reservas brasileiras estão entre US$ 61 bilhões e US$ 62 bilhões, dos quais US$ 39 bilhões são livres.

Nesse mesmo período, começamos a diversificar a pauta de exportações. Poderíamos até dizer que se iniciou uma nova era do comércio exterior. Para que se tenha uma idéia dessa nova fase, basta dizer que em meados da década de 1960 o café era responsável por 42% das exportações, proporção que em 1974 caiu para 12,6%. No mesmo período as exportações de manufaturados saíram de 7,2% para 27,7% do valor total das exportações. Nos anos 1960 o Brasil não exportava soja, mas em 1974 esse produto primário já representava 7,4% de nossa pauta de vendas externas. Quanto às importações, a estrutura das mercadorias adquiridas mudou para uma maior participação de bens de capital, que cresceu de 31% na década de 1960 para 40% na de 1970. E o petróleo, que valia 11% das importações em 1973, passou, após o aumento de preço, a valer 25% em 1975, depois do primeiro choque.

No terceiro e último período, que vai de 1981 a 2004, o Brasil ampliou sua inserção internacional do ponto de vista econômico. Do lado do comércio exterior, apesar do crescimento das exportações, a evolução do comércio mundial foi superior e a participação brasileira saiu de 0,99% em 1980 para 0,91% em 1991 e 0,94% em 1998. O grande feito dessa inserção está muito mais na diversificação dos laços econômicos internacionais. Houve uma ampliação do investimento estrangeiro direto (IED) nos anos 90, que podemos situar da seguinte forma: segundo dados do Banco Central, até 1995 o Brasil tinha um estoque de IED da ordem de US$ 58 bilhões. Entre 1995 e 2000, por efeito de privatizações, esse valor superou a casa dos US$ 100 bilhões. No que diz respeito à dívida externa, a informação atualizada indica que seu montante hoje está em US$ 202 bilhões, a maior parte dos quais tem origem privada. Mudamos a equação da dívida externa brasileira.

Dentro desse terceiro período, vale a pena fazer um exame rápido da formação de blocos econômicos e da participação do Brasil em alguns deles. Por exemplo, além do Mercosul e da Aladi, temos relações político-econômicas com o Pacto Andino e o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), e uma relação fundamentalmente importante com a União Européia, que na condição de bloco é nosso maior cliente. Quanto à questão da Alca, o Brasil mantém uma postura cuidadosa, com receio de uma invasão de produtos norte-americanos que possam prejudicar o setor industrial. É preciso ter cuidado, pois uma associação empresarial dos Estados Unidos fez a previsão de que, se a Alca começasse a valer em 2006, o volume de vendas de produtos manufaturados norte-americanos para a América do Sul saltaria num espaço de quatro anos de US$ 50 bilhões anuais, a média atual, para US$ 200 bilhões.

O estágio atual do Mercosul, em função do enfraquecimento da economia argentina e da postura do atual presidente, Néstor Kirchner, não deixa de ser preocupante para todos nós, brasileiros.

O que se pode concluir é que, em primeiro lugar, a história nos mostra que o Brasil desde os anos 40, notadamente logo após a 2ª Guerra Mundial, vem tentando ampliar seu espaço externo. Nesse período aconteceram fatos políticos e econômicos que nos afastaram de uma linha permanente de internacionalização. O país teve soluços nesse processo. Mas a partir dos anos 1990, bem ou mal, reiniciamos essa trajetória, não só em decorrência do processo de globalização, como também porque somos uma das maiores economias do mundo.

O caminho é longo e não é fácil. Nos últimos meses conseguimos importantes vitórias na Organização Mundial do Comércio (OMC), no tocante a commodities como algodão, açúcar e carne. Nossa pauta de exportações já inclui aeronaves de alta tecnologia, adquiridas pelos países do G7. É o nicho da Embraer, muito bem explorado em países desenvolvidos. Nossa indústria se transformou numa plataforma mundial de produção de motores para veículos, e estamos começando a exportar petróleo, com a perspectiva de alcançar a auto-suficiência nessa área no início do próximo ano. As reservas cambiais, como disse, estão próximas de US$ 62 bilhões, e aqueles US$ 39 bilhões de reservas livres nos dão certa tranqüilidade em relação a uma crise internacional.

Não vivemos o melhor dos mundos, até porque relações internacionais são complexas e dinâmicas. Além disso, a inserção de um país não se faz apenas do ponto de vista econômico, mas também político, militar e sociocultural. Uma coisa, no entanto, é certa: o Brasil vai precisar aumentar cada vez mais essa inserção, não para ser a potência hegemônica da América do Sul, como comentaram os argentinos, mas para garantir um futuro promissor para as próximas gerações e, principalmente, para fazer justiça a nossa história.

 

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