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Velocidade controlada

Preço final dos carros ainda impede crescimento do mercado interno

MIGUEL NÍTOLO


Linha de montagem robotizada: infra-estrutura invejável / Foto: Divulgação

"Completely knocked down" ou, simplesmente, CKD, é um termo que há tempos perdeu força no Brasil, mas é ainda de uso corrente em um sem-número de países, muitos deles nossos vizinhos. Bastante difundida no meio automobilístico, essa sigla, que os nacionalistas abominavam por questões óbvias, é a denominação dada aos autos acabados, prontos, que chegavam de fora desmontados. À indústria e à mão-de-obra locais, ainda na primeira metade do século passado, restava apenas colocar as peças e os componentes em seus devidos lugares. Ou seja, o emprego correspondente à produção do veículo era quase todo gerado lá fora.

Pelo sim, pelo não, foi graças ao CKD que os brasileiros deram os primeiros passos no intuito de erguer, aqui, linhas de produção parecidas com as que operavam em nações mais avançadas. Em 1951 foi criada a Comissão de Desenvolvimento Industrial, no governo de Getúlio Vargas. A Mercedes-Benz do Brasil comunicou ao Palácio do Catete, antiga sede do poder central, no Rio de Janeiro, que passaria a fabricar veículos comerciais, intenção concretizada em 1956. No ano seguinte foi baixado o aviso 288, que limitava a importação de autopeças com similar nacional. E surgiu a Willys-Overland do Brasil. Quase simultaneamente, publicou-se o aviso 311, que vetava a importação de autos completos ou pelo sistema CKD. E a Volkswagen deu início à produção do Fusca e da perua Kombi, ainda com peças importadas.

Em 1955, fundou-se a Associação Profissional dos Fabricantes de Tratores, Caminhões, Automóveis e Veículos Similares do Estado de São Paulo, correspondente à Anfavea de hoje. Em 1957, a Ford anunciou - em plena era desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek - que ia erguer uma fábrica de caminhões. Naquele ano entrou também em operação a Scania-Vabis, e no seguinte, a Toyota e a Simca do Brasil.

Em questão de alguns anos, com a disposição de algumas multinacionais e o firme desejo demonstrado pelas autoridades de plantar, abaixo da linha do equador, um segmento produtor de carros, a exemplo dos Estados Unidos e da Europa, floresceu uma indústria. "O país marchou 50 anos em cinco", disse Kubitschek, em visita ao I Salão do Automóvel, em novembro de 1960, em São Paulo, afirmando que não se arrependia "de um ato sequer praticado para desenvolver a nação".

Tínhamos entrado, finalmente, no clube dos países fabricantes de veículos automotores. Não era bem um clube fechado, mas constituído à época por um número reduzido de participantes. Uma após outra, as montadoras de destaque no cenário internacional foram desembarcando aqui, investindo montanhas de dinheiro em linhas de produção, o que colocou definitivamente o Brasil ao lado dos grandes do setor em escala global. "De 1994 a 2004, a indústria brasileira de veículos desembolsou US$ 29 bilhões em nome da modernização e da ampliação do parque automotivo", informou Rogelio Golfarb, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Em entrevista a Problemas Brasileiros, ele asseverou que estava falando de um investimento sem paralelo em nível mundial. "Esse aporte fenomenal está na raiz da competitividade de nossa indústria nos planos interno e externo."

Tanto dinheiro - juntado o volume dos últimos dez anos aos bilhões aplicados em períodos anteriores - permitiu a edificação de uma infra-estrutura operacional invejável para uma nação que chamam de "emergente". De acordo com Golfarb, as montadoras instaladas no Brasil respondem pela fabricação de 29 marcas e 400 modelos de carros leves (não foram computados os veículos pesados, ônibus e máquinas agrícolas automotrizes). "Apenas as indústrias associadas à Anfavea operam 48 unidades fabris", ele explica. Trata-se, francamente, de uma notícia alvissareira. São 108 mil empregos e, segundo a empresa de consultoria Booz Allen Hamilton, em torno de 1,3 milhão de pessoas vivem - direta ou indiretamente - da produção de autos, "considerando aqui desde o fornecedor da matéria-prima até, por exemplo, o titular de uma oficina mecânica no mais recôndito ponto do território nacional", observa o presidente da Anfavea. Golfarb acrescenta que o setor responde por 13,5% do PIB industrial e 4,5% do PIB geral do país.

Diante desses índices, fica difícil crer que um ramo fabril formado apenas por pesos pesados de projeção mundial algumas vezes tenha dificuldades para alcançar suas metas. Acontece que, a despeito da grandiloqüência dos números, o caminho da indústria automotiva nacional é cheio de obstáculos. De acordo com estimativas recentes, 2005 será considerado um ano histórico para as montadoras no tocante à produção, vendas internas e exportações. Fala-se na montagem de 2,45 milhões de unidades, na comercialização interna de 1,66 milhão de veículos e nas vendas ao estrangeiro de US$ 10,8 bilhões, um avanço significativo em relação ao desempenho em 2004, quando foram produzidos 2,21 milhões de autos zero quilômetro (comercialização no país de 1,58 milhão de unidades e vendas internacionais de US$ 8,3 bilhões).

Olhando esses números, tem-se a sensação de que as empresas ligadas à Anfavea reclamam de barriga cheia. É certo que estão ganhando dinheiro, umas mais, outras menos, e remunerando seus milhares de acionistas mundo afora. Entretanto, com exceção das exportações, que crescem apesar dos problemas de câmbio ("a valorização do real tem retirado a lucratividade de nossas vendas ao exterior", informa Golfarb), o mercado interno não vai necessariamente bem: ele patina há anos, causando sérios problemas para as próprias fábricas de carros e, na mesma proporção, para aquela multidão de pessoas cuja sobrevivência se acha de alguma maneira atrelada à performance do setor liderado pela Anfavea. E, indiretamente, causando transtornos à própria expansão do PIB. Enfim, afetando o desenvolvimento do país. Isso sem falar que, de 1976 para cá, as linhas dos gráficos que medem a produção de veículos zero quilômetro se comportaram como numa montanha-russa, protagonizando um sobe-e-desce infernal.

Naquele ano, a indústria de automotores fabricou 986.611 unidades, então o maior número alcançado pelas montadoras desde 1957, quando teve início a pesquisa anual. Foram produzidos no período 765.291 automóveis, 125.370 comerciais leves, 83.891 caminhões e 12.059 ônibus. No exercício seguinte começou o vaivém, que já dura, portanto, 30 anos. Em 1977 foram montados 921.193 veículos e em 1980, 1.165.174. Em 1981, contudo, aquele número caiu para apenas 780.841. E assim por diante. O pior recuo foi registrado em 1999, com a oferta de 1.356.714 unidades, 712.989 menos que em 1997, ano em que as montadoras festejaram a produção de 2.069.703, a maior marca até aquela data.

Se o mercado não consome, é compreensível, a oferta encolhe. E assim a expectativa da montagem anual de 3 milhões de veículos, prevista para a virada do século, foi apenas uma miragem. "A produção teve um período de expansão formidável de 1992 a 1997", observa Golfarb. "Nesses anos houve, não por acaso, igual ampliação do mercado interno, tendo a demanda pulado de 764 mil unidades, em 1992, para 1,9 milhão, em 1997. A partir de 1998 as vendas locais deixaram de avançar."

O presidente da Anfavea chama a atenção para o fato de que, em 2005, os brasileiros deverão comprar 300 mil veículos a menos que o total comercializado em 1997. Ou seja, estamos andando para trás. Isso a despeito de a capacidade de produção do setor girar em torno de 3,2 milhões de unidades por ano e de a indústria alimentar o sonho de passar a vender anualmente dentro do país, a partir de 2006 ou 2007, 2 milhões de veículos zero quilômetro.

Os vilões responsáveis por esse estado de coisas têm nome. Segundo as pessoas que atuam no ramo, eles carregam o rótulo de juros elevados, impostos abusivos e baixo poder aquisitivo da população. "Tomando-se por base os impostos sobre consumo (IPI, PIS/Cofins e ICMS), o automóvel fabricado no Brasil recolhe, dependendo da motorização e do combustível, de 27% a 36% sobre o preço final, certamente um dos tributos mais elevados do mundo", lastima Golfarb. Ele informa que na Europa ocidental essa taxa não passa de 16%, no Japão de 9% e nos Estados Unidos de 6%. "Temos 8,5 milhões de famílias que ganham dez salários mínimos por mês e que não participam do mercado do carro novo", comenta Paulo Butori, presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores (Sindipeças). "Apresentamos ao governo um plano para inseri-las no mercado, mas esse estudo dorme em alguma gaveta." A exemplo das montadoras, as fábricas de peças também tiveram de sair atrás do comprador internacional para dar vazão a parte de sua oferta. O setor pretende alcançar, até o final deste ano, US$ 6,7 bilhões em exportações, 11% mais do que em 2004. Butori afirma que, descontado o câmbio, as vendas externas têm cumprido seu papel ajudando a ocupar parte da ociosidade. Mas, conforme observou o presidente da Volkswagen do Brasil, Hans-Christian Maergner, em entrevista à revista "AutoData", "vender no exterior foi o caminho correto, mas não pode ser uma estratégia de longo prazo". Segundo ele, há muitos riscos associados à exportação. "Estamos muito longe dos maiores mercados, absolutamente vulneráveis ao câmbio, enfrentamos desvantagens do ponto de vista da logística e batalhamos com outros produtores de nações emergentes em expansão, como a China, que também precisam exportar."

Ninguém está de braços cruzados. "Todos os envolvidos na cadeia da produção automotiva estão empenhados em encontrar fórmulas capazes de estimular o crescimento dos números referentes à fabricação e às vendas internas de autos novos", argumenta Angelo Morino, gerente-geral da Unidade Mercado de Reposição da ArvinMeritor. "Mas, seguramente, nenhum plano avançará sem a significativa redução dos tributos que incidem tanto na fabricação quanto na venda e uso dos veículos." De capital norte-americano, a ArvinMeritor é uma das grandes do setor. Ela é especializada na fabricação de rodas, escapamentos, sistemas para portas e controle de acesso, eixos dianteiros e traseiros e componentes de reposição. "Carregado de impostos, o preço de venda de um auto zero quilômetro está fora do alcance do bolso da maioria da população, e mesmo os financiamentos especiais são incapazes de estimular a compra por causa do medo das pessoas de perderem o emprego", assevera Morino. Ele adverte que o mercado interno é a viga mestra da indústria de carros, lembrando que apenas um em cada oito brasileiros tem acesso a um veículo (a frota brasileira é de 22 milhões de unidades). "A nossa densidade por habitante não é das melhores", comenta o executivo da ArvinMeritor. "Nos Estados Unidos há um auto para cada pessoa, estatística que na Argentina é de um para cada cinco habitantes." O custo da intermediação financeira, pois, cumpre sua parte como eficiente entrave ao crescimento das vendas, assevera o empresário Francisco Wagner de La Tôrre, da Rede Âncora, com mais de 170 lojas de autopeças espalhadas nas regiões sul e sudeste.

Trocando em miúdos: o veículo nacional não cabe no orçamento dos brasileiros. Essa é a grande questão, apesar de o presidente da Anfavea afirmar que os preços refletem os custos mais o gravame representado pela pesada carga fiscal. De qualquer maneira, o fato é que "o mercado nacional tem alta sensibilidade aos preços", conforme entendimento de Maergner. "Especialistas, montadoras e a Anfavea têm uma visão compartilhada de que, se o preço final dos automóveis cair, por exemplo, 10%, o mercado poderá crescer de 25% a 30%." O presidente da Volkswagen disse que impostos e juros são dois pilares que precisam ser revistos. Na verdade, essa reivindicação vem de longa data, e o governo não manifestou, até aqui, nenhum sinal de aquiescência. "Teria a administração federal a coragem de diminuir os tributos para, em contrapartida, estimular as vendas, facilitando o incremento da produção e o aumento do emprego?", pergunta Angelo Morino. "A fórmula é inteligente, mas inaceitável, do ponto de vista do governo, diante do risco de uma vertiginosa queda na arrecadação", ele mesmo responde. Na verdade, é sabido, essa redução seria compensada a seguir pelo acréscimo que decorreria da expansão da oferta e das vendas, dando às montadoras meios para atingir a meta sonhada de 3 milhões de unidades anuais. Ocorre que estamos falando de muito dinheiro, coisa de bilhões de reais. Se fosse possível, pelo dom de uma varinha de condão, colocar os fabricantes de carros e de autopeças no lugar das autoridades monetárias, é bem possível que também eles rezassem pelo mesmo breviário do fisco.

Em duas oportunidades Brasília patrocinou um corte temporário no IPI com vistas a colocar um pouco de fermento nas vendas do setor. Nas duas vezes as vendas internas encorparam. No entanto, não é isso o que as montadoras querem. "Já deixamos claro que desejamos uma redução estrutural dos tributos, e que ela tenha perenidade, e não o efeito fugaz proporcionado pela queda passageira de um tributo", diz Rogelio Golfarb. "Temos de pensar em termos de uma política industrial automotiva que prestigie esse formidável patrimônio que construímos no Brasil e que se faz representar pelas fábricas de veículos e de máquinas agrícolas, pelo parque de autopeças diversificado, pela engenharia nacional e pelos trabalhadores qualificados." Em outras palavras, o presidente da Anfavea está sugerindo que o país que um dia, 55 anos atrás, sonhou em fabricar carros receba um tônico para poder avançar na área e assumir de vez o papel de realce que lhe cabe no contexto da indústria mundial de autos. "O mercado automobilístico brasileiro tem um potencial enorme", comenta Antonio Maciel Neto, presidente da Ford América do Sul. "As empresas globalizadas investem preferencialmente em países onde os mercados são grandes ou reúnem potencial para crescer aceleradamente. Por isso, o mercado interno deve ser prioridade para todos nós." Ou seja, se o mercado local para autos zero quilômetro não cresce, os investidores não se sensibilizam com a idéia de colocar no Brasil seu dinheiro.

A Ford é uma empresa que acreditou desde cedo em nossas possibilidades. Ela apeou aqui em 1919, pouco mais de duas décadas após a chegada do primeiro veículo equipado com motor a explosão, importado por Santos Dumont. O mesmo se pode dizer dos investimentos de outra montadora de origem norte-americana, a General Motors, a maior do mundo, que instalou sua primeira unidade em território brasileiro em 1925. É bom ouvir quem veio há mais tempo e amarga o vaivém dos números desde o início. "Há muito espaço ainda para crescer", comenta José Carlos Pinheiro Neto, vice-presidente da General Motors do Brasil (GMB). "Com um cenário mais favorável, sem dúvida alguma ampliam-se as possibilidades de novos investimentos no país."

Na realidade, já estamos perdendo espaço para a China, Índia e nações do leste europeu, que oferecem melhores condições e, por isso mesmo, estão se sobrepondo ao Brasil em muitos aspectos. Depois de aplicar verdadeira fortuna no país nos últimos dez anos, as montadoras decidiram pisar no freio à espera de uma conjuntura mais atraente. Mas não abriram mão de continuar oferecendo ao mercado novidades que fazem sucesso aqui e no exterior pela via da exportação. Nas últimas semanas, vários novos modelos chegaram às lojas. Na realidade três deles foram reestilizados para prorrogar a permanência no mercado: o Gol Geração 4, da Volks, e a camioneta S10 e o utilitário Blazer, da GMB. Os lançamentos, de fato, couberam à Fiat, com o Idea, um monovolume concebido pela matriz da montadora, na Itália, mas que utiliza plataforma desenvolvida pela filial brasileira, e à própria Volkswagen, com a linha de caminhões Constellation, veículos cuja capacidade de carga pode chegar a 57 toneladas.


Carros novos favorecem autopeças

A timidez no incremento das vendas internas de veículos no Brasil não afeta apenas os negócios das montadoras e das fábricas de autopeças. As pessoas não se dão conta, mas os efeitos negativos desse chove-não-molha irradiam reflexos ruins sobre os mercados de uma série de outros segmentos de importância capital para a manutenção da frota circulante nacional. Se as vendas de autos zero quilômetro não avançam, é natural que as distribuidoras e o varejo de autopeças também amarguem o tropeço porque a frota deixa de crescer e, com ela, o mercado de reposição. "Operam no país em torno de 50 mil lojas de autopeças", destaca Luciano Figliolia, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Peças e Acessórios para Veículos no Estado de São Paulo (Sincopeças). "Esse setor poderia ser mais avantajado se um volume maior de carros chegasse anualmente ao mercado." A afirmação de Figliolia se justifica. "Nosso quadro de empregos seria bem superior ao atual e, de quebra, estimularíamos o fortalecimento dos negócios das oficinas mecânicas."

Luiz Roberto Celeste Gandra, titular do MercadoCar, loja de peças e acessórios com três unidades na Grande São Paulo - e projeto de instalação, a médio prazo, de outros 12 pontos comerciais na região -, pensa da mesma forma. "O que de fato impulsiona a venda de autopeças é a comercialização de carros novos", ele diz. Parece um contra-senso, considerando que o proprietário do auto zero quilômetro demora às vezes anos antes de bater às portas do varejo. Coberto pela garantia de fábrica e pelo aumento da vida útil dos componentes, esse encontro está demorando cada vez mais para acontecer. "Ocorre que a maior parte das pessoas que compram carros novos libera os usados para o mercado", esclarece Gandra. E são exatamente esses autos de segunda mão, mais sujeitos a desgaste, que vão ajudar a alimentar o segmento de reposição.

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