Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

LER/Dort: diagnóstico do exagero

Pacientes precisam de tratamento, não de afastamento do trabalho

JOSÉ KNOPLICH


Arte PB

O período entre 2001 e 2010 foi designado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a Década do Osso e da Articulação. A finalidade é rever os conceitos e atualizar os conhecimentos dessa área. As lesões por esforços repetitivos (LER) ou, pela nova nomenclatura, distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (Dort), referem-se a diversos distúrbios indefinidos - são mais de 50 -, que no Brasil adquiriram ares de uma afecção do braço/mão, uma idéia contaminada pela política internacional da Guerra Fria. "Violência do Trabalho no Capitalismo", por exemplo, é o título de uma tese de doutoramento defendida, em 1995, na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) sobre LER/Dort em bancários.

Na verdade, o diagnóstico de casos de LER/Dort é muito subjetivo, pois a maioria dos exames radiológicos e de laboratório têm resultado negativo. A organização não-governamental (ONG) Prevler mostra em seu site na Internet uma pesquisa realizada pelo Datafolha, com financiamento do Ministério da Saúde, sobre a incidência da LER/Dort em São Paulo. A pergunta dirigida a 1.072 trabalhadores referia-se a dor, formigamento e adormecimento no braço e nas mãos. Constatou-se nas respostas que 4% de todos os paulistanos acima de 16 anos e 6% de todos os trabalhadores da cidade apresentam esses sintomas. O mais grave foi a conclusão da ONG: existem cerca de 310 mil casos em São Paulo, como se todas as pessoas com aqueles sintomas tivessem LER/Dort.

O site informa também que no Ministério da Previdência foram registrados somente 19 mil casos de doenças ocupacionais no ano anterior à pesquisa, em todo o Brasil. E afirma o absurdo de que a LER/Dort é a segunda maior causa de afastamento de pessoas do trabalho.

Em outra pesquisa, esta realizada em 2004 na Inglaterra, 1.960 pessoas relataram sintomas de dor do membro superior. Foram depois examinadas e se constatou que 44,8% delas apresentaram uma ou mais queixas de dores em diversos lugares dos braços. A tenossinovite da mão ou do pulso (que teoricamente seria a denominação de LER/Dort) foi encontrada em 1,1% dos homens e em 2,2% das mulheres. Os autores afirmam que as dores musculoesqueléticas específicas do braço tenderam a ser conseqüência de distúrbios degenerativos anteriores do ombro ou da coluna cervical.

Em relação ao diagnóstico e especificidade das lesões, um relatório de 1993 do Núcleo de Referência em Doenças Ocupacionais da Previdência Social (Nusat), do estado de Minas Gerais, demonstrou que foram feitos 770 diagnósticos de lesões em 550 casos com LER. Isso significa que em grande parte desses casos havia outras queixas mal definidas. Convenhamos que não se trata propriamente de uma multidão, mas o que o capitalismo escolheu para atacar está longe, por exemplo, das dores da coluna, essas, sim, a segunda causa mais freqüente de afastamento do trabalho.

Vejamos o assunto pelo lado da Previdência Social. Os pagamentos de benefícios superiores a um salário mínimo subiram de 3,96% do PIB, em 2002, para 4,49%, em 2004, um salto provocado pela elevação dos gastos com o auxílio-doença. E, entre as solicitações, os casos de LER/Dort são muito freqüentes. Lembremo-nos de que com o auxílio-doença o déficit da Previdência cresceu 260% em três anos, passando de R$ 2,5 bilhões em 2001 para R$ 9 bilhões em 2004.

Reumatologistas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) constataram que em 103 trabalhadores com diagnóstico de LER/Dort feito pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de São Paulo (Cerest) 70,9% preenchiam integralmente os critérios do diagnóstico de fibromialgia, que é uma síndrome de dor difusa, sem nexo com a atividade laborativa. Ela está associada, através da serotonina, à sensibilidade a qualquer tipo de dor em geral, além de estar relacionada a depressão, dificuldade para dormir e fadiga. Conclusão: nesses 103 casos, analisados pela mais competente equipe de saúde na área, somente 11 (11,4%) eram realmente de LER/Dort, sem fibromialgia ou outras doenças associadas.

A LER/Dort não pode, portanto, ser considerada uma doença do trabalho, que dá direito a aposentadoria precoce e outros benefícios. Também não está incluída no capítulo referente às doenças do trabalho com nexo causal reconhecidas pela OMS, na Classificação Internacional das Doenças (CID-10).

Os pacientes com LER/Dort evidentemente não simulam a dor. Sofrem de fato, e precisam ser tratados adequadamente, mas não devem ser afastados do serviço ou aposentados.

Um estudo de reabilitação com 108 pacientes apresentado na Unifesp revelou que 83,5% das mulheres pesquisadas estavam sem exercer uma atividade profissional e afirmavam que seu estado geral tinha ficado pior depois que haviam parado de trabalhar. Grande parte dessas pessoas com LER/Dort apresentava problemas emocionais sérios, certamente o aspecto mais grave de seu afastamento, antes mesmo da presença da dor.

Os juízes do trabalho poderiam colaborar para equacionar melhor as perícias, solicitando testes psicológicos em busca de possível associação com a síndrome de fibromialgia. A orientação atual de afastamento do trabalho, aposentadoria precoce, litígio com a empresa e com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) não ajuda esses pacientes. Os que estão envolvidos em reivindicação de indenizações são mais propensos a apresentar sintomatologia persistente, porque se negam a se tratar, esperando os resultados de perícias infindáveis.

Outro gargalo que deveria ser revisto é a resolução 1.488, que no item II do artigo 2º permite que uma simples denúncia sindical de tenossinovite aguda, uma doença facilmente tratável, leve a uma inspeção no local de trabalho para a constatação de nexo causal.

Existem inúmeros meios, facultados pela lei, que permitem tais inspeções. Essa espécie de terrorismo ligado à LER/Dort estimula o imaginário do trabalhador. Resulta também que qualquer médico assistente pode se propor a firmar atestados ou relatórios de nexo causal, mesmo sem experiência na área, que já se viu ser muito complexa.

Pela lei atual, o empregador tem a obrigação de comunicar o caso à Previdência Social, o que passa a configurar uma doença do trabalho, gerando à vítima direito indenizatório, independentemente de comprovação de culpa. Começa assim o ciclo vicioso de não sarar para receber a indenização. E como o julgamento é demorado, o trabalhador passa a ter um comportamento de vítima, sem se tratar.

Tramita na Justiça uma volumosa carga de processos dessa natureza contra os empregadores, o que complica o trabalho do Judiciário e traz falsas esperanças ao empregado, além de impedir que receba o tratamento adequado.

É necessária a conscientização de empresas, sindicatos e entidades de trabalhadores para que se divulgue melhor a associação LER/Dort/fibromialgia. É preciso ampliar a aplicação de testes psicológicos, atender as reivindicações ergonômicas nos postos de trabalho e promover tratamento multidisciplinar adequado, como usar antidepressivos em vez de analgésicos e realizar exercícios para combater a depressão e a fadiga.

O empregado só pode receber e realizar tudo isso se permanecer no emprego, sem perder a auto-estima e sem entrar no clima de reivindicações cada vez mais difíceis de alcançar.


José Knoplich, médico reumatologista, doutor em saúde pública pela USP, é autor do tratado "Enfermidades da Coluna Vertebral"

 

 

Comentários

Assinaturas