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O novo ciclo da cana

Produção cresce, mas condições de trabalho não melhoram

CARLOS JULIANO BARROS


Trabalhador descalço na Zona da Mata: insegurança / Foto: Carlos Juliano Barros

Em abril deste ano, a Organização Mundial do Comércio (OMC) atendeu a reclamação de um grupo de importantes produtores de açúcar, formado por Austrália, Brasil e Tailândia, e considerou ilegais as exportações dessa valiosa commodity feitas pela União Européia. Nas nações do Velho Continente, ela é fabricada com subsídios oferecidos pelos governos, ajuda indispensável para garantir sua competitividade no mercado internacional. "Não estamos perdendo, mas deixando de ganhar algo em torno de US$ 400 milhões por ano em negócios não realizados", afirma Fernando Ribeiro, secretário-geral da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), entidade que congrega os maiores empresários do ramo.

A sentença da OMC representou uma injeção de ânimo para as usinas nacionais, que, em curto prazo, esperam incrementar ainda mais suas vendas externas. É também um indício de que, definitivamente, o país vive um novo ciclo da cana-de-açúcar. As plantações, que já ocupam 6 milhões de hectares, só fazem crescer. No interior de São Paulo, responsável por quase 60% de toda a produção brasileira, uma verdadeira corrida para o oeste está em curso. A cada safra, áreas antes destinadas a pastagens e ao cultivo de laranja cedem espaço à cana. Na Zona da Mata nordestina, a monocultura segue inabalável faz cinco séculos, e muitos usineiros começaram a apostar suas fichas nos estados de Goiás e Mato Grosso, tradicionais redutos da soja.

Atualmente, a menina-dos-olhos do setor sucroalcooleiro não é o açúcar, cujo mercado o Brasil lidera há quase uma década. Com o preço do barril de petróleo nas alturas, o álcool está novamente ganhando espaço como alternativa à gasolina. E os números não deixam dúvidas. Hoje, de cada dez carros novos vendidos no país, seis são do tipo flex (com motor que funciona com álcool, gasolina ou a mistura de ambos em qualquer proporção). Essa febre por automóveis bicombustíveis reacendeu o vigor das destilarias, que devem gerar 17 bilhões de litros em 2005. Há quase duas décadas não se produzia tanto assim.

Tudo isso é reflexo de mudanças que redesenharam a feição dessa área do agronegócio nacional, que movimenta R$ 40 bilhões ao ano. O governo deixou de intervir na definição do preço do álcool e no planejamento da economia do setor, como fazia na época do regime militar, período em que foi criado o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). A iniciativa privada assumiu a responsabilidade de tocar os negócios, seguindo os princípios da liberdade de mercado. As usinas estão contratando profissionais especializados para modernizar sua gestão, diluindo o caráter familiar que se via em passado recente. No meio rural, a mecanização vem se intensificando.

Essa metamorfose, porém, traz também alguns efeitos colaterais preocupantes. "A expansão das plantações está criando um processo de concentração fundiária. A pressão social vai se acentuar por meio da luta de grupos engajados na reforma agrária", garante Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor do departamento de geografia da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, problemas crônicos - como a miséria e as condições degradantes de trabalho a que são submetidos os cortadores de cana - parecem longe de ser solucionados.

A verdade é que, enquanto empresários e governo comemoram a boa fase do setor sucroalcooleiro, essa expansão está deixando sindicalistas e militantes de movimentos sociais de cabelo em pé. "Infelizmente, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva luta na OMC pelo fim dos subsídios praticados pela União Européia, ele fortalece o modelo tal como se encontra, baseado na superexploração dos trabalhadores. É necessário discutir urgentemente esse sistema de produção", comenta Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape), entidade que representa 100 mil cortadores de cana em todo o estado.

Histórico

A cana começou a ser cultivada na Nova Guiné, durante a Antiguidade, e logo iniciou uma longa jornada rumo à América. Passou pela China e pela Índia, mas foi durante o florescimento da civilização persa que se desenvolveram métodos de cristalização do mel da planta, processo pelo qual se obtinha uma espécie rudimentar de açúcar. A Europa só começaria a consumir em larga escala esse doce alimento a partir do século 10, com a expansão para o Ocidente do império islâmico, que havia assimilado a tecnologia dos persas.

Não tardou muito para que a demanda por açúcar no Velho Continente crescesse vertiginosamente. A conquista da América foi a saída encontrada para contornar o problema da falta de locais apropriados para o desenvolvimento da cana. "Já se tratava de um fenômeno de globalização: know-how islâmico, terras ameríndias, mão-de-obra africana e capital europeu", explica Christine Dabat, professora de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

As primeiras mudas chegaram ao território brasileiro supostamente pelas mãos de Martim Afonso de Sousa em 1532, ano em que ele fundou São Vicente, no litoral do atual estado de São Paulo. Porém, alguns estudiosos do tema afirmam que o açúcar fabricado por aqui já era mandado para a Europa desde a segunda década do século 16. Discussões acadêmicas à parte, o fato é que a cana ocupou os solos mais férteis do Brasil e foi o primeiro instrumento encontrado pela Coroa portuguesa para consolidar o domínio sobre a nova colônia, atraindo interesses de investidores.

O sistema de produção baseado na monocultura, na mão-de-obra escrava e na grande propriedade protegida pelo Estado é um dos elementos essenciais para compreender a perversa concentração fundiária e o grau de extrema pobreza que ainda hoje se verificam no meio rural, principalmente no nordeste. "Construíram um mito de que a cana é vocação natural da região. No Vietnã e na China, por exemplo, ela é cultivada em consórcio com outras plantas, e divide espaço com a criação de animais. Entretanto, a Zona da Mata sempre importou a maior parte dos alimentos consumidos no dia-a-dia. Por que aqui só se pode produzir cana?", indaga Christine.

Nas capitanias hereditárias de Pernambuco e Itamaracá, mais próximas dos portos europeus - o que facilitava o escoamento da produção e a chegada de negros africanos para a lida -, a cana fez sua morada durante o período colonial. Ela também moldou a estrutura social daquela porção do Brasil. Durante muito tempo, a autoridade desmedida dos senhores de engenho só foi desafiada pelos gritos de liberdade dos escravos importados para o eito.

"Mesmo com a abolição da escravatura, em 1888, os trabalhadores não tinham para onde ir e permaneceram nos engenhos. Até os anos 1930, os jornais tratavam a população local como recurso natural", conta Christine. Assim, o poder dos tão falados coronéis não foi estremecido. É o que prova a literatura de importantes escritores nordestinos, como José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto, retrato fiel do ciclo econômico da cana-de-açúcar, que incorporou o Brasil ao comércio mundial e, por muito tempo, foi o principal gerador de divisas do país.

No centro-sul, o desenvolvimento da economia canavieira é mais recente. A partir do final do século 19, descendentes de imigrantes italianos, que enriqueceram com o café, passaram também a investir na cultura que já tinha fincado raízes profundas na Zona da Mata nordestina. Assim, no interior de São Paulo, os campos destinados a pastos, ao algodão e ao próprio café foram pouco a pouco perdendo importância. Os canaviais iniciaram a marcha por Campinas e subiram até conquistar a área de Ribeirão Preto, atual coração do setor sucroalcooleiro nacional.

Em 1929, foi construída a primeira destilaria do Brasil, na cidade de Piracicaba (SP). Entretanto, o uso do álcool como combustível é anterior a essa data. Desde a 1ª Guerra Mundial, já se produzia essa alternativa à gasolina de maneira tímida e artesanal. Mais tarde, como resposta à crise do petróleo de 1973, o governo militar apostou em um programa de fôlego para conquistar a independência energética do país e, dois anos depois, criou o Proálcool.

Por ter sido implementado em escala nacional, numa época em que as despesas com produção e distribuição desse novo combustível se mostravam mais altas do que as da gasolina, o programa só obteve êxito enquanto os empresários do ramo contaram com a boa vontade das autoridades e financiamentos públicos. Ao contrário dos dias atuais, o preço do álcool nas bombas era fixado por lei a, no máximo, 65% do valor cobrado pela gasolina. Se os custos operacionais fossem superiores ao montante arrecadado com as vendas, a Petrobras arcava com os prejuízos.

Havia outras estratégias para garantir o sucesso do Proálcool. Até 1989, por exemplo, quem comprasse um carro movido a álcool tinha desconto no Imposto de Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). Mas, como as usinas não conseguiam suprir a demanda, o fantasma do desabastecimento desestimulou a venda de veículos que usavam esse combustível e, com isso, o programa, que onerou de forma violenta os cofres públicos, foi definhando aos poucos, ao longo da década de 1990.

A partir de meados dos anos 1970, as indústrias do centro-sul assumiram o posto de maiores produtoras de açúcar e álcool, ao atingir um patamar tecnológico superior ao das usinas nordestinas. Atualmente, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Bahia, juntos, contribuem com apenas 15% do total. Porém, essa inversão de papéis também trouxe sérias conseqüências. Sem dúvida, o crescimento do êxodo de trabalhadores em busca de melhores condições de vida é uma das mais preocupantes. "Desde a década de 1930, existe uma classe de migrantes que pode ser considerada a origem dos bóias-frias. E, com a cana de São Paulo, introduz-se o trabalho assalariado na agricultura brasileira", explica Ariovaldo de Oliveira.

Negócios em alta

De acordo com dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o valor das vendas externas de açúcar e álcool, entre junho de 2004 e junho de 2005, atingiu a cifra de US$ 4 bilhões. Juntos, eles ocupam a terceira posição na pauta de exportações do agronegócio brasileiro, atrás somente da soja e do complexo de carnes. A tendência é de crescimento, tanto dos negócios como da produção.

Em todo o centro-sul - onde o clima e os solos planos, que permitem a mecanização do corte, são mais propícios para o cultivo da cana do que no nordeste - há pelo menos 43 projetos de novas unidades industriais que devem entrar em funcionamento na próxima década. Os investimentos previstos são da ordem de US$ 3 bilhões e vão aumentar a capacidade de moagem em 60 milhões de toneladas por safra. Dados do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), entidade que dá suporte técnico ao setor sucroalcooleiro, mostram que as plantações de cana no interior de São Paulo cresceram quase 500 mil hectares nos últimos cinco anos. Até 2010, a meta é ampliar as lavouras e agregar mais 1 milhão.

Apesar de a decisão da OMC que considerou ilegal a exportação do açúcar fabricado com subsídios no Velho Continente abrir um valioso horizonte para os usineiros no futuro próximo, a retomada do interesse pela cana já vem ocorrendo há mais tempo, com ênfase no álcool. "O Brasil não vai deixar de abastecer o mercado externo, mesmo se a cotação do açúcar estiver baixa. Temos os menores custos de produção do planeta. Porém, o crescimento mundial da demanda por essa commodity é muito lento, já que depende principalmente de países não muito desenvolvidos", explica Ribeiro, da Unica. Dos 27 milhões de toneladas produzidas aqui, 17 milhões vão parar na mesa dos consumidores de outras nações. Mas Europa e Estados Unidos, por exemplo, não importam o açúcar brasileiro.

Por tudo isso, a bola da vez é o álcool. Na verdade, há dois tipos. O primeiro é conhecido por anidro, e pode ser adicionado à gasolina - no Brasil, ele participa com 25% da mistura. A segunda modalidade é o hidratado, utilizado como combustível propriamente dito nos motores de automóveis. Com a assinatura do Protocolo de Kyoto, que prevê a redução das emissões de gases de efeito estufa por parte dos países signatários, o suco destilado da cana acena como opção, já que polui menos que os derivados de petróleo. Em 2003, por exemplo, o parlamento japonês autorizou a mistura de 3% de álcool anidro à gasolina vendida nos postos do país.

Essa é uma das razões para entender por que as exportações - que hoje estão na casa de 2,7 bilhões de litros - triplicaram desde o início do século. A meta é que elas cheguem a 7 bilhões nos próximos cinco anos. O próprio governo federal não está medindo esforços para conquistar mercados. No primeiro semestre de 2005, uma comitiva liderada pelo presidente Lula foi até o Japão a fim de convencer essa potência asiática a comprar o álcool brasileiro. O negócio, porém, ainda enfrenta fortes resistências das companhias locais de petróleo, que enxergam custos muito altos para adaptar o país à logística do novo combustível.

O advento dos carros do tipo flex é, porém, a grande esperança dos empresários do ramo. "As perspectivas são alentadoras. O Proálcool ressurgiu", comemora Ribeiro. As estatísticas da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) não deixam dúvidas de que o momento é mesmo de transformação. Em 2004, 65% dos carros vendidos em todo o país eram movidos a gasolina, enquanto 27% se enquadravam na categoria flex. Em apenas um ano, essa proporção praticamente se inverteu. Hoje, seis montadoras oferecem juntas 25 modelos de bicombustíveis, e a tendência é que esses números aumentem.

Outro negócio promissor é a venda do excedente de energia elétrica não consumida na fabricação de açúcar e álcool, produzida a partir da queima do bagaço da cana. Neste ano, a capacidade das usinas brasileiras chegou à casa dos 1,5 mil MW. Mas, na próxima década, projeções de especialistas dão conta de que o potencial chegue a 12 mil MW - o equivalente ao que a hidrelétrica de Itaipu, a maior do país, é capaz de gerar.

A efervescência do setor pode ser detectada ainda por outro indicador: a entrada de multinacionais. A norte-americana Cargill, gigante mundial do agronegócio, já comprou duas usinas no interior de São Paulo. Investidores franceses também adquiriram unidades industriais nessa região ou aplicaram capital em grandes empresas nacionais. "As multinacionais não trazem nada, a não ser dinheiro. Há quem acredite que a tecnologia vai melhorar, mas hoje damos aula nesse quesito", contrapõe Ribeiro. Em longo prazo, especialistas acreditam que os atuais 120 grupos que controlam as 350 usinas espalhadas pelo Brasil vão se fundir em, no máximo, 15 ou 20.

Todo esse sucesso não é fruto apenas da conjuntura favorável de mercado. Se o Brasil apresenta baixos custos na fabricação desses produtos, o que impulsiona o comércio interno de álcool e as exportações de açúcar, isso também se deve ao grau de miserabilidade de que são vítimas as centenas de milhares de cortadores da cana que alimenta as usinas e destilarias, em todo o país. Enquanto governo e empresários comemoram a boa fase do setor sucroalcooleiro, o mesmo não se pode dizer dos trabalhadores rurais que há séculos esperam por uma distribuição menos desigual dos lucros obtidos pela economia canavieira.

Trabalhadores em baixa

"Quando tem de acontecer, os pés levam o corpo para a sepultura", profetiza Francisco Conceição. Em março deste ano, ele deixou o município de Codó, no Maranhão, para tentar a vida nas lavouras do interior do estado mais rico da federação. Hoje, longe da família, lamenta a hora em que pegou a primeira condução que o levaria a Guariba, a 60 quilômetros de Ribeirão Preto. Desde julho, ele está impossibilitado de se dedicar a qualquer atividade braçal, devido a um acidente. Ao voltar de mais um dia de trabalho, em uma das usinas dessa região que já foi apelidada de Califórnia Brasileira, Francisco se desequilibrou ao descer do ônibus que transportava a turma de cortadores de cana de que fazia parte e caiu com todo o peso do corpo em cima da mão esquerda. No atestado assinado pelo médico, o diagnóstico é "fratura exposta grave".

A mão imobilizada pelo gesso o obriga a ficar o dia inteiro em casa, uma precária construção de dois quartos e uma sala onde ele e outros seis conterrâneos se amontoam e dividem o aluguel mensal de R$ 180. Francisco, assim como seus colegas maranhenses, é um "safrista". Quando o serviço acabar, no começo de novembro, todos vão retornar a Codó, levando o dinheiro que conseguiram juntar durante os seis meses que passaram empunhando facões e cortando cana para as usinas.

Em Guariba, o piso salarial da categoria é de R$ 410, mas boa parte dos cortadores obtém rendimentos superiores, pois o pagamento varia de acordo com a produção. Quanto mais cana cortada, mais dinheiro. Um empregado considerado eficiente retira, em média, 12 mil quilos por dia - recebendo R$ 2,50 por tonelada. Segundo um estudo da Universidade Estadual Paulista (Unesp), a produtividade era seis vezes menor na década de 60. Nos anos 80, o trabalhador passou a extrair cerca de 8 toneladas por dia. Hoje, o ritmo é de verdadeira disputa com as máquinas. Essa competição desumana motivou especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), em parceria com a Pastoral do Migrante de Guariba, a investigar se o excesso de trabalho foi mesmo a causa das paradas cardiorrespiratórias que levaram dez bóias-frias à morte, em canaviais da região, desde 2004.

Homens jovens e bem nutridos são os principais alvos dos feitores, funcionários das usinas que têm a missão de montar a turma de cortadores, cuidar do transporte e ainda fiscalizar a atividade. "Eles recebem uma comissão por produtividade, por isso não escolhem os de idade mais avançada. As pessoas com mais de 30 anos já não conseguem emprego com facilidade. São velhas demais para trabalhar e novas demais para se aposentar", afirma Wilson Rodrigues da Silva, presidente do Sindicato dos Empregados Rurais (SER) de Guariba.

"Todos os anos chegam milhares de cortadores a São Paulo, vindos em sua maioria do nordeste e do vale do Jequitinhonha (MG). Apesar de a lei exigir que eles já tenham contrato assinado antes de deixar suas terras, é muito difícil encontrar alguém com carteira assinada no local de origem", afirma Roberto Figueiredo, chefe da fiscalização rural da Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo (DRT/SP).

As condições de moradia desses migrantes são outro fator que preocupa Figueiredo. Muitos são trazidos por "gatos", agenciadores que sobrevivem do recrutamento de mão-de-obra barata em lugares distantes das plantações. Como os alojamentos nas propriedades rurais não dão conta de abrigar todos os trabalhadores, eles são empurrados para moradias em péssimo estado, na periferia das cidades, como aconteceu com os maranhenses de Codó. Em época de safra, o número de habitantes de alguns municípios pequenos chega a dobrar, e esse excesso de população traz transtornos principalmente para o sistema público de saúde.

"As usinas nem sempre aceitam o argumento da DRT de que a responsabilidade também é delas e se esquivam dizendo que não trouxeram os trabalhadores. Porém, trata-se de um aliciamento indireto, feito pelo gato", afirma Figueiredo. Na opinião do chefe da fiscalização rural, outro problema grave a ser combatido no interior de São Paulo é o transporte dos trabalhadores, feito de maneira não apropriada. Ônibus que antes circulavam pelas cidades, aposentados pelo desgaste do tempo, são ressuscitados nas estradas de terra que levam até os canaviais. "E, por incrível que pareça, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) ainda autoriza que caminhões também façam esse serviço", acrescenta.

É claro que existem usinas que cumprem as determinações da legislação trabalhista. Entregam equipamentos de proteção individual (EPI) e fiscalizam o uso por parte de seus funcionários; fornecem alimentação balanceada e até água gelada durante o expediente. Entretanto, o próprio secretário-geral da Unica, Fernando Ribeiro, reconhece que muito ainda precisa ser feito. "As condições de trabalho são ideais? É claro que não. Estão longe de ser? É claro que sim. Mas os avanços foram significativos, e o setor está apostando muito em programas de responsabilidade social", afirma.

Problemas sem solução

Manuel é marinheiro de primeira viagem e não se julga um bom trabalhador. Durante uma manhã inteira de corte em um engenho de Amaraji, município da Zona da Mata pernambucana, não foi capaz de tirar sequer 1 tonelada - todo o esforço lhe rendeu apenas R$ 1,50. No nordeste, as fazendas de cana, pertencentes ou não a usinas, ainda são chamadas de engenho, herança do período colonial, que não é página virada na história da região. Manuel tem apenas 16 anos e, por lei, não poderia se dedicar a uma atividade tão pesada. Porém, o "bico" que arrumou foi a saída para comprar o material escolar de que necessitava para acompanhar as aulas a que assiste à noite.

De acordo com um levantamento da DRT/PE, quase um quarto de toda a mão-de-obra utilizada nos canaviais, no início da década passada, tinha menos de 18 anos. Para combater esse quadro, as usinas daquele estado assinaram em 1997 o Pacto Paulo Freire, pelo qual se comprometiam a erradicar o trabalho infantil em suas propriedades. A medida atenuou o problema nos imóveis rurais pertencentes a grandes grupos produtores de açúcar e álcool, mas não é preciso faro de detetive para encontrar ainda hoje menores que se ocupam do corte na área rural da Zona da Mata. "Atualmente, é nos engenhos particulares que se verifica com mais freqüência o emprego de crianças. É uma forma de baratear os custos de produção, porque eles têm de se submeter aos preços que as usinas pagam pela cana", explica Fábia Esteves, delegada adjunta do Trabalho em Pernambuco.

Mas o desrespeito à lei não é exclusividade dos engenhos particulares. Mesmo em usinas de grande porte, donas de milhares de hectares de plantação de cana, é comum encontrar cortadores que são obrigados a bancar os gastos com a compra de botas e luvas com uma parte dos R$ 305 (salário mínimo rural da Zona da Mata) que recebem. Quem não tem dinheiro trabalha descalço. Outro motivo de dor de cabeça para a DRT/PE são os alojamentos destinados aos trabalhadores. Em alguns casos, os "curubas", como são conhecidos os migrantes vindos principalmente do sertão para a época da safra, dormem em instalações precárias.

"Na verdade, estamos mais avançados nas negociações coletivas do que no cumprimento dos direitos individuais", analisa Fábia. Apesar de importantes vitórias alcançadas pela categoria, como a discussão dos acordos de trabalho que definem, entre outras coisas, o piso salarial, os benefícios demoram a chegar de fato a cada um dos cortadores, isoladamente.

Pressão social

Embora possua um lote no assentamento Veneza, localizado na cidade pernambucana de Chã de Alegria, Severino José da Silva tem saudade do tempo em que cortava cana, empregado em uma usina. "Pelo menos eu tinha um salário", desabafa. Passados três anos desde a criação do assentamento, cada uma das 62 famílias que nele vivem recebeu apenas a terra e um crédito inicial de R$ 1,5 mil. Com esse valor, Severino comprou ferramentas, arame para as cercas, alguns mantimentos para a casa e dois bois.

Hoje, assim como os outros agricultores do Veneza, ele sobrevive da roça de subsistência que cultiva a duras penas, enquanto aguarda pelo dinheiro que lhe é de direito e que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) já deveria ter liberado. Sem esses recursos, é impossível investir na produção das glebas. "Parece que a intenção do poder público é provar que a reforma agrária não dá certo", alfineta Alexandre Conceição, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST/PE).

A partir de 1985, com o fim da ditadura militar, o setor sucroalcooleiro entrou em colapso. "O governo deixou de estimular o plantio de cana por meio do oferecimento de subsídios e créditos", explica Urgel de Almeida Lima, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). No nordeste, essa derrocada revelou sua face mais cruel. Atoladas em dívidas com instituições financeiras públicas, e com uma série de compromissos trabalhistas não quitados, só em Pernambuco quase duas dezenas de usinas foram obrigadas a fechar as portas, ao longo da década de 1990. As conseqüências foram desastrosas para o meio rural.

"Nós, dos movimentos sociais, nunca conseguimos que se fizesse uma desapropriação global de terras de usinas falidas. Os donos vendiam ou arrendavam. Depois, desmontavam a fábrica e levavam as peças para o centro-sul. Aos trabalhadores, restavam a expulsão dos engenhos e a exclusão social. Numa região de monocultura e latifúndio, eles não tinham alternativa de emprego, e se dirigiram para a periferia das cidades. Foram 150 mil postos de trabalho perdidos", resume Bruno Ribeiro, da Fetape.

O passado recente de decadência do setor sucroalcooleiro é uma das explicações para a verdadeira explosão de movimentos engajados na luta pela reforma agrária a que se assiste atualmente na zona canavieira nordestina. A utilização de máquinas colheitadeiras nas usinas de São Paulo - hoje, elas são empregadas em pelo menos um quarto das propriedades do interior do estado - também contribuiu para que boa parte dos migrantes desistisse de buscar o eldorado no sudeste. A automação do processo produtivo nas lavouras de cana foi a saída encontrada pelos empresários para contornar as sucessivas greves de repercussão nacional, ocorridas em meados da década de 80, contra as péssimas condições de vida a que os trabalhadores estavam submetidos.

Com a diminuição da oferta de emprego, os cortadores passaram então a engrossar o contingente dos sem-terra, aumentando a pressão social pela reorganização da estrutura fundiária da região. Para se ter uma idéia desse verdadeiro caldeirão de conflitos, existem 12 mil famílias pernambucanas, divididas em 14 grupos de diferentes bandeiras, que lutam por um tão sonhado pedaço do chão onde escravos derramaram sangue em nome da economia açucareira. "Como vai ficar a segurança alimentar dos trabalhadores da região com essa expansão dos canaviais? Vamos comer cana?", indaga Alexandre Conceição.

Desde o início deste século, a matéria-prima do álcool e do açúcar está retornando aos holofotes do agronegócio brasileiro. No centro-sul, com a expansão das lavouras, "o fluxo migratório de bóias-frias vai se intensificar, e os problemas existentes vão se agravar", alerta Figueiredo, da DRT/SP. Já no nordeste, as notícias do crescimento das exportações de açúcar e do aumento do consumo interno de álcool eram os motivos de que os donos das usinas necessitavam para recuperar o fôlego da monocultura e recompor suas plantações, mais uma vez jogando um balde de água fria nas aspirações dos movimentos sociais voltados à luta pela terra. Não há dúvidas de que esse novo ciclo da cana irá movimentar a economia e gerar investimentos em todo o país. Mas, infelizmente, a história ensina que o sucesso do setor sucroalcooleiro levou-o a apropriar-se dos solos mais férteis do Brasil e da renda obtida à custa da saúde dos trabalhadores rurais. Resta saber se, desta vez, vai ser diferente.


Uma experiência em autogestão

Quando os donos da Usina Catende demitiram 2,3 mil funcionários, em 1993, nem de longe ela lembrava o vigor de 40 anos antes, época em que era a maior unidade produtora de açúcar de toda a América do Sul. Localizada no município de mesmo nome, a cerca de 140 quilômetros do Recife, hoje seu patrimônio está avaliado em R$ 90 milhões. Em seus 26 mil hectares de terras, espalhados por 48 engenhos que ocupam cinco municípios, vivem 3 mil famílias.

No início da década de 1990, em meio à decadência do setor sucroalcooleiro nordestino, a usina estava prestes a seguir a trilha de outras 17 empresas que já haviam fechado as portas, se não fosse a reação de seus empregados. "Com o tempo, percebemos que o governo não iria desapropriar a área, os donos venderiam as terras e expulsariam as pessoas que lá moravam. Por essa razão, amadurecemos a idéia de optar pelo caminho jurídico da falência", explica Bruno Ribeiro, advogado da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Pernambuco (Fetape).

Há dez anos, os proprietários foram afastados pela Justiça e todo o processo produtivo do açúcar foi assumido pelos próprios empregados, que fazem de Catende a maior experiência de autogestão do país. Quando a usina foi à bancarrota, em 1995, o montante das dívidas de seus donos com o Banco do Brasil (BB) era três vezes maior que o patrimônio por ela compreendido. Além disso, o valor das obrigações trabalhistas não honradas chegava à impressionante marca de R$ 56 milhões.

Hoje, uma parceria firmada com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), no valor de R$ 7 milhões, garante a compra antecipada do açúcar fabricado na Catende. Porém, o crédito de custeio oferecido pelo BB - cujo valor não dá margem a investimentos na infra-estrutura da usina, mas ao menos permite a sobrevivência do empreendimento - é o único recurso que as instituições financeiras públicas colocam ao alcance dos trabalhadores. Tratamento bem menos generoso do que o dispensado aos antigos proprietários que levaram a usina à falência. A administração da Catende estima que seriam necessários cerca de R$ 40 milhões para recuperar as plantações de cana, renovar a frota de caminhões e reativar a destilaria de álcool, parada desde 1991 - o que a tornaria economicamente sustentável.

Apesar de a falência ainda não ter sido concluída, o advogado da Fetape espera finalizar o processo em breve e, dessa maneira, repassar integralmente o controle da usina aos funcionários. "Não queremos um modelo de desenvolvimento centrado na cana. Mas ela tem um papel estratégico, porque há uma indústria já consolidada e trabalhadores capacitados. A cana é que vai financiar a apropriação dos meios de produção e financiar o desenvolvimento de outras culturas e da agricultura familiar. Vai preservar a renda dos que já têm e gerar para aqueles que não têm", conclui Ribeiro.

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