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Pesquisa revela: doenças afetam mais os negros que os brancos

FLÁVIO CARRANÇA


A médica Andréia dos Santos: "Nossa batalha é construir uma política efetiva" / Foto: Solange Souza

No Brasil, a expectativa de vida do negro é, em média, de seis a sete anos menor que a do branco. A Aids mata três vezes mais pretos que brancos. Mulheres afro-descendentes de 15 a 49 anos morrem em conseqüência do parto 2,7 vezes mais que as brancas da mesma faixa etária e condição social. Esses dados constam da pesquisa "Saúde da População Negra: Contribuições para a Promoção da Eqüidade", feita pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que demonstrou, assim, a existência de problemas específicos dos negros e a necessidade de providências do poder público para solucioná-los. Apesar de algumas medidas já terem sido tomadas pelo governo federal e também por estados e municípios, o trabalho está apenas começando, e a polêmica sobre o assunto permanece acesa: serão mesmo necessárias políticas específicas para a população negra ou essas demandas podem ser atendidas por um sistema universal de saúde?

Esperança de vida

O economista carioca Marcelo Paixão, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do projeto Observatório Afro-Brasileiro, que participou da pesquisa, calculou, com base em dados do Censo Demográfico de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, que no ano 2000 a expectativa de vida da população branca brasileira estava na casa dos 73,99 anos, ao passo que a da negra era de 67,12 anos. A população amarela tem a maior esperança de vida do país, alcançando em média 75,75 anos. E a menor foi constatada entre os indígenas: 66,57 anos.

Outro pesquisador que colaborou no estudo é o sociólogo e assessor técnico da Secretaria de Saúde de São Paulo Luís Eduardo Batista, que analisou a mortalidade da população negra adulta no Brasil. Segundo ele, os levantamentos mostram que, enquanto a população branca morre do que se poderia chamar de "morte morrida", ou seja, devido a doenças ou causas naturais, a mortalidade de pretos e pardos tem causas evitáveis que, muitas vezes, estão associadas às suas condições de vida. No caso dos negros os principais fatores de óbito são gravidez, parto e puerpério (que, não se deve esquecer, não são enfermidades), transtorno mental, doenças infecciosas e parasitárias e causas externas (as mortes violentas).

Publicada em agosto de 2005, a pesquisa sobre a saúde da população negra foi coordenada pela bióloga Fernanda Lopes, responsável pelas ações de saúde do Programa de Combate ao Racismo Institucional no Brasil, patrocinado pelo Ministério Britânico para o Desenvolvimento Internacional e Redução da Pobreza (DFID). Fernanda define racismo institucional como a incapacidade coletiva de uma organização em prover um serviço profissional e adequado às pessoas por conta de sua cor, cultura ou origem étnica. E diz que ele se manifesta em atitudes ou condutas discriminatórias ou preconceituosas e na ignorância ou desatenção em relação a determinados grupos, como negros, índios, homossexuais e deficientes.

Ela lembra que, ao falar de justiça na saúde, um conceito básico é o de eqüidade, ou seja, oferecer mais àqueles que mais precisam e de maneira adequada às suas necessidades específicas. Em artigo publicado junto com os resultados da pesquisa, Fernanda diz ser impossível deixar de reconhecer no Brasil o avanço da instituição da saúde como direito de todos e dever de Estado. Observa, entretanto, que a garantia legal do acesso universal e igualitário não tem assegurado aos negros e indígenas a mesma qualidade de atenção oferecida aos brancos. E faz questão de ressaltar a importância de os profissionais de saúde terem uma formação que lhes permita reconhecer que o racismo, a discriminação e o preconceito racial determinam um perfil indesejável de saúde. Ela afirma, ainda, ser necessário disponibilizar informações para a população negra sobre as doenças a que está sujeita, lembrando que, para que existam estatísticas confiáveis sobre essa questão, é preciso incluir o quesito cor em todos os prontuários e formulários do sistema de saúde. "São os dados, em especial aqueles publicados pelo governo, que vão respaldar a nova orientação de ações, políticas e programas do Sistema Único de Saúde (SUS)", conclui.

A médica Jurema Werneck, coordenadora da organização não-governamental (ONG) Criola - Organização de Mulheres Negras, e que também participou da pesquisa, lembra que um levantamento realizado na cidade do Rio de Janeiro entre mulheres atendidas pelo SUS de 1999 a 2001 confirmou a diferença no atendimento. Apesar de apresentarem proporcionalmente maior incidência de fatores de risco na gravidez, como hipertensão, tabagismo, anemia, sífilis, as mulheres negras - de acordo com a pesquisa - não obtiveram do sistema de saúde os cuidados necessários. Na amostra estudada, 30% das gestantes negras contam que tiveram de recorrer a mais de um hospital até o momento da internação, enquanto as brancas que mencionaram o mesmo problema correspondiam a 18,5%. Além disso, as mulheres negras fizeram 50% menos consultas de pré-natal que as brancas.

Embora classifique o SUS como um sistema fundado em princípios que reconhecem a saúde como um direito da população, Jurema afirma que isso não basta, é necessário agir de acordo com eles. "Se há diferença de acesso entre a população negra e a branca, então é preciso haver uma política diferenciada para que os negros tenham acesso igual." Ela lembra, também, que o SUS tem de estar presente nos lugares onde a comunidade negra vive. "No Rio de Janeiro, por exemplo, o SUS está concentrado na área central e na zona sul da cidade, regiões predominantemente habitadas pela população branca, enquanto nas zonas norte e oeste, onde há maioria de negros, quase não há serviço, ou, quando há, é de pior qualidade."

Um exemplo do que pode ser feito nessa área é fornecido pela Secretaria da Saúde de Maragogipe, município de 41 mil habitantes do Recôncavo Baiano, situado a 143 quilômetros de Salvador. A médica Andréia Beatriz Silva dos Santos, da Coordenação de Saúde da cidade, diz que, desde o início da atual gestão, há menos de um ano, procura sensibilizar o Conselho Municipal de Saúde e os profissionais da área de que é preciso uma política específica para os negros. "O que a gente faz é trazer os dados disponíveis, a base científica, mostrando a vulnerabilidade dessa população e a necessidade de uma abordagem diferenciada." Andréia conta que existe uma área remanescente de quilombo na região, com 38 famílias, na qual está sendo feito um trabalho de vacinação, por meio do Programa Saúde da Família, de iniciativa federal. Mas ela lembra que são negros o prefeito, o secretário de Saúde e a coordenadora de Saúde da cidade. "Nossa batalha é construir uma política efetiva, que não dependa de gestores negros."

Zumbi e saúde

A discussão sobre a saúde da população negra chegou oficialmente a Brasília em novembro de 1995. Em resposta à mobilização que levou cerca de 30 mil pessoas à capital do país na Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Igualdade e pela Vida, o então presidente Fernando Henrique Cardoso criou um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, no qual foi instituído um subgrupo de saúde.

Como resultado das discussões desse organismo, foram definidos quatro blocos de moléstias e agravos que atingem principalmente a população negra brasileira. O primeiro é o das doenças determinadas pela genética ou a ela associadas, como anemia falciforme e diabetes melito. Depois, os problemas decorrentes das condições socioeconômicas e educacionais desfavoráveis e da pressão social, como alcoolismo, desnutrição, mortalidade infantil elevada, doenças sexualmente transmissíveis (DST)/Aids e transtornos mentais. No terceiro bloco estão as enfermidades que se agravam, ou ficam mais difíceis de tratar, nas situações negativas já citadas, como hipertensão arterial, câncer e mioma. E, por fim, foram incluídos a gravidez, o parto e o envelhecimento, que também são afetados pelas más condições de vida e podem evoluir para doenças.

As iniciativas do poder público federal na gestão atual, voltadas para a saúde da população negra, partiram da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A diretora de programas de ações afirmativas do governo, Maria Inês Barbosa, explica que o atendimento prestado pelo SUS terá a epidemiologia como base de seu planejamento. Doutora em saúde pública, ela afirma que o sistema universalista (no sentido de acesso igual para todos) contempla a população negra, mas ignora as diferenças geradas pelo racismo.

Como resultado de um seminário nacional realizado pela Seppir no segundo semestre de 2004 para discutir essa questão, foi criado no Ministério da Saúde o Comitê Técnico de Saúde da População Negra. Coordenado até setembro de 2005 pelo enfermeiro sanitarista Luiz Antonio Nolasco de Freitas, o órgão definiu três linhas básicas de atuação. Uma delas determina que tanto o público em geral quanto os gestores dos organismos de atendimento tenham acesso a informações relativas a esse tema. Outra prevê ações voltadas para a redução da mortalidade precoce, infantil e materna, com atenção especial para a anemia falciforme e o atendimento às comunidades remanescentes de quilombos. Por último, foi estabelecido o objetivo de incentivar a produção de conhecimento científico, a capacitação e o desenvolvimento de recursos humanos para atuação nesse campo.

Segundo Nolasco, um levantamento mostrou que, até agosto deste ano, estavam em andamento 66 ações voltadas para a saúde dos negros no âmbito do Ministério da Saúde e do SUS, todas geradas a partir da formação do comitê técnico. "Há um leque enorme de medidas possíveis, mas isso não significa que não tenhamos noção de que o trabalho está apenas começando. Diante do déficit que existe com a população negra como um todo, essas iniciativas são ainda muito incipientes."

Anemia falciforme e Aids

Doença hereditária causada por um gene recessivo, a anemia falciforme é incurável e faz os glóbulos vermelhos perderem a elasticidade, causando microenfartos em diferentes partes do corpo. Nos Estados Unidos e em Cuba, a média de vida das pessoas que sofrem desse mal é de 56 anos. No Brasil, oscila entre 18 e 21 anos, mas é bastante alta a taxa de mortalidade de crianças falcêmicas menores de 5 anos. O gene da anemia falciforme afeta 6% da população brasileira, ou pouco mais de 11 milhões de pessoas. Considerando-se apenas pretos e pardos, esse índice sobe para 10%, ou 8 milhões de pessoas. O portador do traço genético falciforme não necessariamente desenvolve a doença; para que isso ocorra é preciso que tanto o pai como a mãe apresentem o problema.

A enfermeira Berenice Kikuchi é pesquisadora e militante histórica do movimento negro. Atualmente, trabalha como consultora do Ministério da Saúde na coordenação do Programa Nacional de Sangue e Hemoderivados, onde está também o Programa de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Falciformes e outras Hemoglobinopatias, lançado em agosto de 2005. Berenice conta que em 1993, depois de conhecer uma criança falcêmica, percebeu seu próprio desconhecimento dessa moléstia, que afeta principalmente a comunidade negra. A partir daí começou a reunir pessoas envolvidas com a questão, até formar, em 1997, a Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo, destinada a reivindicar políticas públicas para essa área. "É importante destacar o papel do Sesc de São Paulo nessa luta, o qual cedeu espaço para a realização de seminários e reproduziu materiais que até hoje são utilizados nacionalmente para o esclarecimento sobre a doença", diz ela.

Segundo a médica sanitarista Maria Clara Gianna, coordenadora adjunta do programa de DST/Aids em São Paulo, em virtude da inclusão do quesito raça/cor nos formulários dos serviços de atendimento de saúde, foi possível perceber que nos últimos anos houve queda no número de casos notificados de Aids entre os brancos e aumento entre os pretos e pardos. Os homens que disseram ser pretos ou pardos respondiam por 33,4% dos casos da doença em 2000, passando para 37,2% em 2004. Já as mulheres negras ou pardas, que eram 35,6% em 2000, passaram para 42,4% em 2004. "É importante dizer que não há relação entre raça e risco biológico. O que existe é uma comprovação clara de que as condições socioeconômicas e culturais desfavoráveis e o racismo são fatores que podem agravar a vulnerabilidade às DST/Aids. Para pessoas negras em condições socioeconômicas idênticas às das brancas, o risco é igual".

Universal versus particular

Especialista em organização de serviços de saúde, o professor Paulo Elias, do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), diz que a implantação de políticas de ação afirmativa para negros no âmbito da saúde encobre uma armadilha. "O perigo é ir corroendo um conceito que é muito caro, que é o da universalidade. Se forem sendo criados particularismos, daqui a pouco ele não terá mais como se sustentar, por que a concepção estará toda fragmentada." Ainda que reconheça a existência de necessidades específicas da população negra, o professor Elias acredita que no sistema universal de saúde as demandas dos diversos grupos devem ser atendidas por se tratar de cidadãos pertencentes ao país e não pelo fato de serem negros, brancos ou índios.

Já a professora de epidemiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Myriam Debert, que também reconhece que há especificidades na saúde dos negros, conta que um levantamento que realizou na década de 1980 constatou a maior incidência e gravidade dos casos de hipertensão na população negra. "Toda vez que um grupo é mais atingido, ele deve se tornar o foco da atuação, sem que se deixe de prestar atenção no conjunto."

Esse tema, por sua própria natureza, suscita opiniões antagônicas. O antropólogo Peter Fry, no livro A Persistência da Raça, analisa o que chama de "rede discursiva" em torno da anemia falciforme. Ele afirma que o apoio irrestrito dos ativistas e pesquisadores negros ao programa de anemia falciforme e a ênfase no crescimento da Aids entre negros fortalecem a idéia da existência de raças e ajudam a introduzir no país uma divisão racial binária, calcada no modelo norte-americano, até agora inexistente em nosso meio.

O professor Marcelo Paixão, por sua vez, responde que não é quebrando o termômetro que se supera a febre. "Há, aí, uma inversão das relações de causa e efeito. Não é a pesquisa ou o preenchimento do campo de um questionário, o que já é feito no Brasil, que vai alterar a realidade social. Ela existe, e nós apenas coletamos informações para orientar os formuladores de políticas públicas." A bióloga Fernanda Lopes esclarece que tanto militantes quanto pesquisadores negros não estão falando apenas (embora em alguns momentos sim) de influência genética, mas do impacto do racismo na vida dessas pessoas, na definição do espaço social que elas ocupam, nas barreiras diárias para se sentir pertencente a uma sociedade. "Essa dificuldade de se ver como membro da sociedade e, ao mesmo tempo, o desejo de estar incluído, essa pressão que o racismo exerce sobre os negros é que define condições indesejáveis e evitáveis de saúde", conclui.

 

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