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Crédito-carbono, a lógica de mercado contra o aquecimento global

BEATRIZ CAMARGO


Aterro sanitário de Nova Iguaçu / Foto: Beatriz Camargo

O Protocolo de Kyoto completa nove meses de existência, desde que entrou em vigor em fevereiro deste ano. Com ele, passa a funcionar o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), que possibilita a troca de "permissões para poluir" entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, com o objetivo de atingir a meta de redução das emissões de gases de efeito estufa. Esse artifício traz ao debate ambiental a idéia de compensação: em vez de uma empresa na Holanda, por exemplo, gastar grandes somas na reformulação de seu processo produtivo, ela pode investir, no Brasil, em projetos de redução de emissões ou captura de carbono da atmosfera (ver texto abaixo), utilizando o que se convencionou chamar de crédito-carbono.

O que já está funcionando na prática, no entanto, ainda gera dúvidas e desacordos. Embora exista consenso em todos os setores da sociedade brasileira sobre a necessidade urgente de agir sobre o lançamento de gases de efeito estufa na atmosfera, não se chega à conclusão de quem deva ceder para que isso ocorra, uma vez que a consciência ambiental tem o limite do bolso. As conseqüências, aqui como no resto do mundo, já se fazem sentir. A principal delas é o aquecimento global: em um século, a temperatura média do planeta sofreu aumento de aproximadamente 1ºC. As projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), órgão criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para pesquisar as mudanças no clima, indicam que essa média poderá subir ainda mais até o fim deste século, de 1ºC a 4ºC. Pode parecer exagero, mas a elevação de cada grau centígrado tem influência sobre padrões de vento, chuva e comportamento dos oceanos.

Por isso, não é improvável que, nos próximos anos, furacões como o Katrina, que devastou Nova Orleans, nos Estados Unidos, e o Catarina, que atingiu o sul do Brasil, se tornem mais freqüentes. Outros acontecimentos possíveis são a extinção de espécies, pela mudança dos ecossistemas, bem como a falta de água, devido à desertificação de algumas regiões, e a elevação do nível do mar.

O grande responsável por esse futuro incerto é a liberação na atmosfera de gás carbônico e de outros causadores de efeito estufa. O Brasil, apesar de não figurar entre os países que devam reduzir suas emissões, pelo Protocolo de Kyoto, está entre os dez maiores emissores de gás carbônico. Do volume total de lançamentos desse gás, 74% advêm do desmatamento por queimadas, outros 23% têm origem no uso de combustíveis fósseis e 3% são contribuições industriais.

A expansão da fronteira agrícola rumo ao norte do país, sobretudo devido ao crescimento das plantações de soja e ao avanço da pecuária, já faz com que a floresta Amazônica esteja degradada em 14% de sua cobertura original. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre agosto de 2001 e julho de 2002, o Brasil perdeu 23.266 km² de floresta; no período de um ano subseqüente, foram 24.597 km² e, no seguinte (em 2003/04), o instituto registrou 26.130 km² a menos de mata. O próprio governo, impressionado com os últimos números divulgados, tomou providências e, no primeiro semestre deste ano, houve uma contenção significativa das queimadas. "Esse esforço deve ser reconhecido, mas precisamos fazer mais", avalia Carlos Rittl, coordenador de clima da organização não-governamental (ONG) Greenpeace.

O consumo excessivo, presente em nosso modo de vida, exige que se produza cada vez mais. No mundo, as emissões de gases de efeito estufa aumentam ano a ano, acompanhando o incessante crescimento industrial e tecnológico: durante a década de 1990, elas se ampliaram 6% e, apenas nos Estados Unidos, 13%. "No instante em que cada um dos habitantes da superpopulosa China quiser ter uma televisão, um carro e um celular, o planeta não se sustentará", exemplifica Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC.

Assim, comprar um automóvel não significa apenas começar a gastar combustível fóssil para circular: o próprio veículo é feito de material plástico, borracha e possui componentes químicos perigosos, como a bateria. O professor Luiz Pinguelli Rosa, da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC), coloca esse desafio num contexto mais amplo. "Trabalhar modificações do padrão de vida é difícil, porque a ideologia predominante, o neoliberalismo, é quase um salve-se quem puder, estimulado pela teoria econômica que tem como princípio a livre competitividade e o individualismo." Para ele, é preciso olhar não apenas para as ações do governo, mas para essa cultura, que "é ensinada na escola, está nos jornais, é repassada pela família".

Mecanismo insuficiente

Apesar de ser considerado, por ambientalistas e pesquisadores da área, um passo necessário à contenção do aquecimento global, o MDL é tido como instrumento de remediação e não de solução do problema, que, em vez de ser resolvido por regulamentação dos governos, ficou a critério do mercado. Carlos Rittl, do Greenpeace, afirma que, nesse âmbito, diversas questões deixarão de ser debatidas, pois não se ligam à situação climática real. Complementando, o professor Pinguelli, que auxiliou a implementar o MDL no Brasil, considera o processo "insuficiente, porém eficiente no que se propõe".

O crescente interesse do empresariado em discutir a questão e o número de projetos de MDL nacionais, contudo, revelam que o setor é parte importante na contenção do aquecimento global. Marina Grossi, economista do Conselho Empresarial Brasileiro de Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), acredita que o mecanismo torna financeiramente viável a participação da iniciativa privada. "Não existe essa visão de que o objetivo das empresas é somente o lucro, e o do governo, apenas o social. As companhias estão cada vez mais percebendo que só serão perenes se buscarem o desenvolvimento em três áreas: econômica, social e ambiental."

Ainda há muita desinformação sobre o que o empresariado pode ou não fazer sobre o crédito-carbono. "As pessoas acham que irão salvar o mundo e ainda ganhar muito dinheiro com isso. Não vão", afirma Ricardo Esparta, consultor em ecoinvestimentos. O dinheiro da venda das "permissões para poluir" no mercado, ao menos pelo valor médio atual de US$ 5 a tonelada de carbono equivalente (unidade de referência usada para quantificar gases que provocam o efeito estufa), é suficiente apenas para suprir os custos do projeto. Entretanto, Esparta avalia que o preço dessa commodity tende a subir, pois "o MDL está apenas no início e ainda existem muitos riscos".

Negócios ambientais

O Brasil abriga um terço dos projetos de MDL do mundo. Já há dois deles funcionando, ambos de aproveitamento do gás metano em aterros sanitários para produção de energia: o Vega Bahia, em Salvador, e o NovaGerar, em Nova Iguaçu (RJ). Se forem aprovados, os 74 projetos existentes irão gerar cerca de 130 milhões de toneladas de carbono equivalente em seu primeiro período de operação - que pode ser de sete ou dez anos. Esse total significa 31% das emissões brasileiras em 1990 (ano-base que definiu os compromissos de Kyoto), dado que está sendo comemorado. Mas, se comparado aos 745 milhões de toneladas de carbono equivalente lançados pelo Brasil apenas em 1994 devido ao avanço da agropecuária sobre as florestas, de acordo com inventário feito pelo governo e divulgado no final de 2004, a massa de gás "economizada" pelo MDL torna-se insignificante.

A maioria dos projetos brasileiros está ligada à área energética, pois o país tem tradição no setor, e a técnica de implementação está bem difundida. Outros 21 projetos propõem tratamento de resíduos e aproveitamento do gás metano e apenas um vem da indústria química - sozinho, ele vai gerar 40 milhões de toneladas de carbono equivalente em seu primeiro período.

Embora a agricultura esteja fora do Protocolo de Kyoto pelo menos até 2012, as reduções obtidas por empreendimentos dessa área - muitos iniciados inclusive antes da ratificação do acordo - podem ser negociadas, por exemplo, com empresas norte-americanas que cumprem leis estaduais de contenção das emissões (apesar de os Estados Unidos não terem aderido ao protocolo). Grande parte das propostas se relaciona à aplicação de práticas tradicionais, como o plantio direto, que reduz emissões por não revolver a terra (ver Problemas Brasileiros nº 369). "A contribuição é de aproximadamente 0,5 tonelada de carbono por hectare ao ano", afirma Carlos Eduardo Pelegrino, engenheiro agrônomo e pesquisador do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. Outra iniciativa é, no cultivo do arroz, substituir a espécie tradicional por variações do "arroz de sequeiro", que reduz a necessidade de inundar a plantação (áreas alagadas emitem gás metano, pela decomposição de matéria orgânica).

Na atividade pecuária, também já existem propostas, uma vez que o Brasil possui aproximadamente 180 milhões de cabeças de gado. Os estudos visam melhorar a alimentação e mesmo modificar geneticamente o animal, para reduzir as emissões de metano (21 vezes mais prejudicial à atmosfera que o gás carbônico). "Mesmo que esse ganho seja pequeno, em grande escala a contribuição é importante", afirma Pelegrino.

Iniciativas de reflorestamento também pleiteiam créditos-carbono nos mercados paralelos. Embora previstas no MDL, elas ainda não foram regulamentadas, pois não têm metodologia aprovada. Isso se deve à dificuldade de medir o carbono absorvido pelas árvores em crescimento, em especial se forem de espécies diferentes. Além disso, se discute a viabilidade do controle desses empreendimentos, uma vez que o governo já enfrenta obstáculos para fiscalizar as florestas protegidas. Carlos Rittl propõe que uma parte do dinheiro recebido pelas empresas com o MDL seja aplicada na contenção da principal fonte de emissões do Brasil, as queimadas. A verba poderia, por exemplo, reforçar a capacidade de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e estruturar órgãos ambientais estaduais, vinculando os créditos-carbono a uma ação permanente nessa área.

A face humana do MDL

Na cidade de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, já está em atividade o NovaGerar, primeiro projeto aprovado pelo MDL no mundo. O município, com cerca de 1 milhão de habitantes e altos índices de pobreza, hospeda o projeto do Aterro Sanitário de Adrianópolis, em parceria público-privada entre a prefeitura de Nova Iguaçu e a empresa S.A. Paulista. Além de evitar o lançamento na atmosfera do gás metano, utilizando-o na produção de energia, é feito o tratamento do chorume, resíduo líquido resultante da decomposição da matéria orgânica, cuja água depois é devolvida ao ambiente.

Fez parte do empreendimento, que começou em 2003, a recuperação da área do antigo lixão do município, onde estavam em atividade 89 catadores. Marlene Barbosa, hoje com 52 anos, colheu garrafas PET e materiais de alumínio durante os 17 anos de existência do lixão de Marambaia. "Sempre mexi com lixo, desde que meu marido parou de trabalhar no cais. Eu ficava lá das 5 às 5", lembra, sem saudade. Atualmente, ela está empregada no viveiro de mudas do NovaGerar e garante que, apesar de ganhar menos, tem carteira assinada e lucrou em qualidade de vida. "Aqui aprendi muito, faço mudas para o reflorestamento, conheço um monte de plantas e sei preparar as sementes", diz, mostrando com um sorriso o resultado de seu esforço.

Como Marlene, outros 25 ex-catadores que não tinham outra ocupação foram realocados no novo projeto: a maioria está no viveiro de mudas, dez se tornaram catadores e varredores da rede municipal e outros são hoje operadores das máquinas do aterro sanitário. É o caso de Leandro da Silva, de 23 anos, que se manteve por dois anos e meio em Marambaia como catador de papelão, ganhando em média R$ 200 por semana. "Tinha dia que, depois de duas horas, eu ia embora, mas, quando precisava de dinheiro, ficava até escurecer, pisando em cacos." Ele conta que trabalhava descalço e sem luvas, mas que, "graças a Deus, nada nunca aconteceu".

Os projetos de MDL devem abranger as áreas ambiental e social, na linha do desenvolvimento sustentável. Dessa forma, houve estudo e mapeamento das necessidades da população das 13 comunidades em torno de Adrianópolis, na periferia de Nova Iguaçu. Foram então criados cursos de alfabetização de adultos, confecção de móveis com garrafas PET e aproveitamento de embalagens, e uma parceria com a prefeitura e o Sesc da cidade deu origem a um programa de educação ambiental para as escolas.

Futuro sustentável

O projeto de Nova Iguaçu prova que a discussão sobre questões ambientais esbarra cada vez mais na pauta social. Há pessoas que consomem energia em excesso e outras que quase não têm acesso a ela. Marcelo Rocha, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), da Esalq, afirma que é preciso incluir uma boa parcela da população que ainda não tem consumo mínimo. "O problema é mexer com gente que tem padrão elevado e não quer abrir mão dele." Pinguelli, do FBMC, faz um alerta: "Ou o mundo resolve as questões ambientais e sociais ou caminhamos para uma via difícil e deixamos péssimas condições para as gerações futuras". Na mesma linha, eficiência energética é outro ponto colocado por muitos especialistas na área - afinal, gastamos muita energia inutilmente. "Devemos evitar o desperdício e buscar com urgência outras fontes mais limpas", avalia o ambientalista Rittl.

Ainda que lentamente, já começa a se manifestar um interesse pela questão ambiental. Rocha, do Cepea, defende uma combinação de forças para continuar avançando: um controle forte por parte do governo, acompanhado de uma mudança de atitude do mercado. "As próprias empresas estão percebendo que ter preocupação ambiental é um bom negócio. Por outro lado, o MDL abre uma porta para que nos questionemos: será que preciso comprar um novo celular? Outro carro?" Adriana Felipetto, engenheira da Central de Tratamento de Resíduos de Nova Iguaçu (CTR), criada pela S.A. Paulista para o NovaGerar, lembra que não se pode ignorar a grande contribuição de ações locais como a desse projeto. "Mudar a cabeça das pessoas leva muito tempo. Transformar um lixão em aterro demora só um ano e modifica a vida de muita gente", frisa.

De 28 de novembro a 9 de dezembro, acontece uma reunião da Convenção Mundial sobre Mudança do Clima, a 11ª COP/MOP, em Montreal, no Canadá. Vai se discutir principalmente o avanço das metas pós-2012, quando talvez o Brasil também comece a ter de cumprir tarefas. Em outra frente, o país tem muito interesse em debater a questão do reflorestamento e conseguir um prazo maior para aprovar uma metodologia para a medição da captação de carbono das florestas.


Onde tudo começou

O efeito estufa é um fenômeno natural, e é graças a ele que existe vida. Gases como vapor de água - o principal contribuinte -, gás carbônico, clorofluorcarbonetos (CFC), metano e outros retêm calor na atmosfera. Do contrário, a temperatura média da Terra seria de aproximadamente -18ºC. Contudo, as emissões desses gases, em especial no último século, aumentaram muito, provocando problemas.

Idealizado em 1997, o Protocolo de Kyoto só foi ratificado no final de 2004, após a assinatura da Rússia. Nesse acordo, países desenvolvidos se comprometeram a reduzir em pelo menos 5% suas emissões de gases causadores de efeito estufa até 2012, em relação aos níveis de 1990. Em Kyoto criou-se também o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL) - proposto pela delegação brasileira -, o que incluiu na pauta de redução de gases os países em desenvolvimento.

Um projeto de MDL deve obedecer ao critério da "adicionalidade", ou seja, acrescentar algo significativo ao que já é feito. Assim, se uma usina de açúcar há 15 anos reaproveita o bagaço de cana para gerar energia, não poderá pleitear créditos por essa prática. O critério é rígido, para evitar que haja má-fé. "Mas, se houver outra usina que nunca fez isso e quer um incentivo para aplicar essa idéia, não vejo por que ela não possa recebê-lo, já que a intenção é trazer para dentro quem está de fora", diz Marcelo Rocha, do Cepea. As iniciativas também têm de se sustentar no longo prazo, por dez ou 21 anos (com três períodos de sete anos). Ao fim de cada período há uma espécie de auditoria, feita por um órgão independente autorizado pela ONU, que decide se o empreendimento realmente está reduzindo emissões (ou absorvendo gás) e se pode continuar comercializando os créditos.

 

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