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Tragédia, amargura e maldição na vida e obra de Nelson Rodrigues

CECÍLIA PRADA


Foto: Reprodução

Vinte e cinco anos após sua morte, Nelson Rodrigues continua vivo e atuante, no nosso cotidiano - presente em suas famosas "definições" de situações, personagens e modos de ser de nossa nacionalidade, e transformado pelo numeroso público de sua obra teatral, e dos filmes dela resultantes, em um autor cult. Embora ainda seja válida a expressão "Nelson Rodrigues? Ame-o ou deixe-o", que foi repetidamente usada por seus críticos, não é possível mais deixá-lo: ele veio para ficar, não há dúvida. E para ser estranhado - em toda a complexidade de sua personalidade obsessiva e contraditória, inscrita durante a vida toda em pauta trágica; na riqueza de sua criação feita de situações-limite, no seu talento de escritor maldito, que lhe permitia registrar com precisão fotográfica os mínimos detalhes do dia-a-dia dos personagens comuns - nas crônicas -, e ao mesmo tempo atingir - nas suas tragédias - um plano de esquematismo abstrato e expressionista, de difícil aceitação e encenação, mas capaz de transpor para o palco, em um verdadeiro desvario lírico, os grandes arquétipos da humanidade.

Conheci Nelson Rodrigues, de longe e de cumprimento diário, na última década de sua existência - na redação do jornal "O Globo", no Rio de Janeiro. Eu, uma simples redatora, ele, "ah, o Nelson Rodrigues!", figura ímpar, homem de muitos mistérios, casmurrão, solitário (nunca o vi conversar com ninguém), fumante compulsivo, atravessando o salão comum a caminho de sua mesa cativa, em mangas de camisa mas engravatado, e tão fora de época, com os suspensórios abaixados, arriados sobre as calças - uma marca registrada que nenhuma de suas companheiras ou namoradas conseguira fazê-lo abandonar.

Naqueles anos iniciais da década de 70 - no auge da ditadura militar, governo Médici -, Nelson carregava o peso de um duplo ostracismo. À maldição literária que sempre pairara sobre ele, devida à temática e ao tratamento desabusado do que escrevia, somava-se uma circunstância especial: anticomunista convicto e raivoso, fora praticamente o único intelectual brasileiro - pelo menos do primeiro time - a apoiar e justificar o golpe de 1964 e os ditadores militares que se seguiram. Era amigo pessoal de vários generais e do próprio presidente Médici, em quem acreditava piamente quando lhe negava de modo categórico que existisse tortura a presos políticos no Brasil. Quis o destino - ou a deusa Nêmesis, que paira, irônica e medonha, sobre todos os destinos humanos - que Nelson viesse a experimentar na própria carne, a partir de 1972, com a prisão e a tortura de seu filho Nelsinho, militante do MR-8 e um dos terroristas mais procurados do país, todo o horror do regime de exceção.

Embora mantivesse até o fim da vida considerável coerência de pensamento político, pois denunciava a cegueira dos intelectuais de esquerda, que em nome da "liberdade" e da "democracia" defendiam o autocratismo do regime soviético e haviam inclusive compactuado com a aliança Hitler-Stalin no tempo da 2ª Guerra Mundial, Nelson passou toda a década de 70 empenhado efetivamente na libertação não só do filho mas de um grande número de pessoas perseguidas. Teve participação ativa na localização, libertação e fuga do país de diversos suspeitos de crimes políticos - a começar pelos amigos, como o jornalista Zuenir Ventura e o psicanalista Hélio Pellegrino. Foi dito mesmo que teria funcionado como um "agente duplo, do Bem", pois valia-se de seus conhecimentos para obter informações úteis e arquitetar meios de subtrair pessoas à sanha dos militares. Participou de passeatas contra a censura e teve intensa atuação no movimento pela anistia total - seu filho, condenado em seis processos a penas que somavam 72 anos de prisão, dos quais já cumprira sete, inclusive com longos períodos em solitária, pôde ser libertado em outubro de 1979, 14 meses antes da morte do pai.

Álbum de família

A família Rodrigues, agitada, prolífica, marcada por altos e baixos financeiros e tragédias pessoais, foi o cenário em que se desenrolou a vida de Nelson, o quinto dos 14 filhos do casal Maria Esther Falcão e Mário Rodrigues. Nascido no Recife em 23 de agosto de 1912, mas criado no Rio de Janeiro - para onde seu pai, que era deputado e jornalista, teve de se transferir com a família, em 1916, por motivos políticos -, Nelson foi vivenciando e absorvendo, desde tenra idade, o ambiente classe-média da zona norte da cidade, que tão bem retrataria mais tarde. Aos 8 anos, uma composição escolar provoca seu primeiro "escândalo" - quando a professora instituiu um concurso de redação com tema livre, o pequeno Nelson não teve dúvida: retratou uma cena de adultério, com um final de assassinato da mulher pelo marido. Resultado: foi o vencedor, mas o trabalho nunca pôde ser lido em classe.

Sua vida escolar transcorreu meio aos trancos e barrancos, e o futuro escritor resolveu abandonar definitivamente os estudos na terceira série ginasial, em 1927. Em compensação, dois anos antes, aos 13 anos e meio, trocara as calças curtas pelas compridas para trabalhar, como repórter policial, no jornal de seu pai, "A Manhã". Simultaneamente, criou um tablóide de quatro páginas, "Alma Infantil", valendo-se do auxílio de um primo do Recife, que fazia as ilustrações - Augusto Rodrigues Filho, que depois seria famoso como ilustrador. A publicação chegou a cinco números e incluía ataques a políticos, seguindo o gosto paterno.

É interessante ver como em toda a vida dos Rodrigues dois ambientes se entrosam, fechados: o da família e o do jornal, este praticamente um prolongamento do primeiro, pois os filhos mantiveram a tradição do ofício - os homens durante a vida toda, as moças pelo menos em alguns momentos. Seu pai, Mário Rodrigues, tinha um temperamento briguento, adorava engajar-se em longos debates políticos e fazia um jornalismo agressivo, violento e arriscado. No Rio, foi no início redator parlamentar do "Correio da Manhã", mas em pouco tempo passou a diretor do periódico. Meteu-se em uma batalha entre Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, o que lhe valeu um ano de cadeia, em 1924 - tendo se recusado a fugir do país, cumpriu-o no Quartel dos Barbonos, no centro da cidade, enquanto o jornal foi silenciado pelo governo por oito meses. Durante esse tempo, sua família, que nessa época já conseguira se transferir da zona norte para a Rua Inhangá, em Copacabana, passou dificuldades de todo tipo, pois o diretor do "Correio da Manhã", Edmundo Bittencourt, cortou o salário de Mário, limitando-se a pagar-lhe o aluguel da casa. Ao sair da prisão, Mário resolveu fundar um jornal próprio, "A Manhã", que contava com nomes ilustres da intelectualidade carioca como colaboradores.

Em 1928, a família Rodrigues vivia um período de muito dinheiro e fartura e transferiu-se para uma casa ampla e luxuosa, na Rua Joaquim Nabuco, também em Copacabana. Mas o jornal, mal administrado e endividado, teve de ser assumido integralmente pelo sócio de Mário, Antônio Faustino Porto. Mário não suportou continuar a trabalhar em uma situação de inferioridade e apenas 49 dias mais tarde, valendo-se de seus conhecimentos políticos, conseguia lançar um periódico de grande sucesso: "Crítica".

Várias peripécias se sucediam na vida dos Rodrigues. Em maio de 1929 chegaram, o pai e os filhos jornalistas, a ser presos, durante cinco dias, por ordem do chefe de polícia, sob a alegação de envolvimento em um atentado contra um jornalista argentino (Nelson escapou, porque estava no Recife na época). Mas a vida de opulência dos Rodrigues continuava, na grande casa da Rua Joaquim Nabuco, freqüentada por numerosos amigos - até que, por um golpe do destino, fossem novamente atingidos, e desta vez de maneira inusitada, total, no dia 27 de dezembro de 1929. Esse foi o dia do assassinato de Roberto Rodrigues, o segundo dos filhos e o mais brilhante, já conhecido e considerado, aos 23 anos, como artista plástico.

Seguindo uma pesada linha de imprensa marrom, a "Crítica" não hesitava em devassar a vida íntima de pessoas conhecidas, e costumava publicar matérias escandalosas. De tal forma que já era voz corrente, no Rio, "um desses Rodrigues ainda acaba levando um tiro!" O tiro aconteceu, único e certeiro, disparado por uma moça da sociedade, Sylvia Thibau, no abdome de Roberto Rodrigues. Na véspera do crime, o periódico estampara matéria de extremo mau gosto, torpe, desmoralizante, sobre as circunstâncias em que se processava seu desquite. Ao lê-la, Sylvia se armara, dirigindo-se à redação do jornal. Perguntou por Mário, que não estava. Pediu para falar em particular com Roberto, que o substituía. Logo em seguida ouviu-se um tiro e um grito - Nelson, então com 17 anos, presenciara sua primeira cena de violência. Ela o marcaria de maneira especial, pois nunca se conformou com a perda do irmão preferido, seu grande herói. Roberto morreria de peritonite causada pelo ferimento, dois dias depois, deixando dois filhos, apesar de tão jovem, e a viúva grávida do terceiro.

Mas o assassinato de Roberto seria apenas o primeiro ato da tragédia familiar - Mário não conseguiu se recuperar da morte do filho, ainda mais por se sentir culpado, pois não cessava de dizer "aquele tiro era para mim!" Passados pouco mais de dois meses, teria uma trombose cerebral, e faleceria alguns dias mais tarde, deixando a família às voltas com grandes problemas financeiros. Tiveram de se mudar para uma casa menor e mais barata, mas continuaram com o jornal, embora por pouco tempo - em 1930, com a vitória da revolução de Getúlio Vargas, a "Crítica", que apoiara até o fim o governo de Washington Luís, teve sua redação invadida e empastelada por uma turba furiosa, enquanto Milton e Mário Filho eram presos.

Nos anos seguintes, passaram por severas privações, pois os irmãos estavam todos desempregados. As mudanças de domicílio sucediam-se, para casas cada vez piores, com a família decaindo insuportavelmente, enfrentando a fome e as doenças dela decorrentes. Em sua admirável biografia de Nelson, O Anjo Pornográfico, conta Ruy Castro que em certa época, esgotados os estoques de conservas feitos em tempos melhores, a família estabeleceu um rodízio: num dia, todos tomavam uma xícara de café com leite, que era a única refeição; no seguinte, apenas as duas menores, Elsinha e Dulcinha, tinham esse "privilégio" - as irmãs maiores passavam o dia deitadas, para a fome não aumentar. Enquanto os irmãos mais velhos procuravam, inutilmente, emprego em outros jornais, sucediam-se na casa as vendas de todos os objetos, de quadros, vitrola, piano e eletrodomésticos a medalhas e troféus baratos de competição esportiva.

Com a morte de Mário, Milton, o filho mais velho, até então enérgico e atuante, caiu em grande prostração. Mário Filho, com 22 anos, o substituiu na chefia da família. Já estava casado, desde 1926, e abria caminho no jornalismo esportivo, no qual se tornaria famoso - basta dizer que seu nome seria dado, mais tarde, ao Estádio do Maracanã. Em 1931, conseguiu ser contratado por Roberto Marinho para "O Globo", mas impôs uma condição: levaria consigo seus dois irmãos, Nelson e Joffre. Marinho aceitou, mas avisou que no começo não poderia pagar a estes um salário. Os dois jovens, Nelson com 19 anos e Joffre com 16, multiplicaram seus esforços, trabalhando também em outros periódicos.

Um ano mais tarde, Nelson passaria a ter carteira assinada em "O Globo" e um salário de 500 mil-réis por mês - que entregava quase integralmente à mãe, guardando apenas alguns tostões para si, para os cigarros mata-ratos que nunca abandonou, até o fim. Naqueles anos de 1931 a 1934, de terrível miséria para os Rodrigues, Nelson ganhou entre os colegas a fama de "desleixado" - tinha um único terno, puído e malcheiroso, não usava meias para economizar, e vestia a mesma camisa durante três ou quatro dias. E chegava a ir a pé de Ipanema ao centro. O resultado de tanta privação não demorou a chegar - em 1934, ficou tuberculoso e teve de ser internado num sanatório em Campos do Jordão (SP), onde permaneceria por 14 meses. Mas Roberto Marinho continuaria a lhe pagar integralmente o salário, durante esse tempo. E o mesmo faria com Joffre quando este por sua vez caiu doente, em 1936.

O pior da moléstia de Nelson foi a demora com que foi diagnosticada. Não havia dinheiro nem para as radiografias e, quando estas foram finalmente feitas, o jovem já havia passado por um sistema de erro/acerto então muito usado pelos clínicos - fora mesmo obrigado a extrair todos os dentes, para ver se a "misteriosa febre" que o acometia não seria resultante de alguma infecção dentária. Os tratamentos para a moléstia, naquela época, eram dolorosos e pouco eficientes. Nelson nunca recuperou a saúde, teria pelo menos umas cinco recaídas nos anos seguintes, voltaria várias vezes para o sanatório e teria de fazer um pneumotórax. Foi uma pessoa muito doente, a vida toda, pois aos males dos pulmões juntaram-se problemas do coração e úlceras gástricas. Teve vários outros internamentos, e em 1958 chegou às portas da morte, por complicações advindas de uma operação de vesícula.

Em abril de 1936, quando seu irmão Joffre, que parecia irradiar saúde, ficou também tuberculoso, Nelson culpou-se por tê-lo contagiado e acompanhou-o ao sanatório de Correias (RJ), onde o jovem faleceu, com apenas 21 anos, em dezembro do mesmo ano. Um grande golpe para toda a família - que permanecia unida, em todos os reveses.

Aos poucos a situação de miséria foi sendo superada. Mário Filho tornava-se um expoente no campo do jornalismo esportivo, conseguindo comprar, com a ajuda de cotistas e do próprio Roberto Marinho, o "Jornal dos Sports". As irmãs também seguiam suas carreiras, destacando-se a mais velha, Stella, como médica. Vinte anos se passaram, no comum da vida. Os irmãos constituíam família, cumpriam seus destinos. Nelson casou-se em 1940 com Elza Bretanha, que era secretária em O Globo Juvenil - e a quem, como bom machista, impôs que deixasse de trabalhar.

Em 1955, um golpe de sorte para os Rodrigues: o ganho de uma causa de indenização empreendida em 1934 contra a União, e que os ressarcia dos vultosos prejuízos conseqüentes ao empastelamento da "Crítica", no advento da era getulista.

O dinheiro foi empregado principalmente na aquisição de um luxuoso apartamento de 430 metros quadrados, no Parque Guinle, onde a matriarca Maria Esther iria morar com ainda seis de seus filhos, solteiros - as moças e o mais velho, Milton, e Haydée, de 2 anos, filha deste. A família retomou sua vida social, marcada por festas e pela pontualidade dos alegres almoços de sábado, a que todos os filhos, noras e netos compareciam. Até que fosse atingida novamente por tragédias consecutivas. O primeiro grande golpe aconteceu justamente com Nelson, em 1963 - o nascimento de sua filha Daniela, prematura, atingida de paralisia cerebral e de cegueira total, e que permaneceu em estado vegetativo a vida toda. Era fruto de sua união com uma mulher jovem e bela, Lúcia Cruz Lima, da alta sociedade, com a qual o escritor viveria até 1970. O casal tivera de enfrentar oposições de todo tipo, a começar pela da família de Lúcia - aos 25 anos, ela já era casada e tinha uma filha, quando se apaixonou por Nelson, o escritor maldito e obsceno de 49 anos, casado havia 21 anos com Elza, e com dois filhos. E que, além de tudo, era feio, doente e pobre. E como em uma novela de má qualidade, a esposa de Nelson tentara se suicidar ao conhecer sua intenção de juntar-se a Lúcia.

Três anos mais tarde, na noite de 16 de setembro de 1966, Mário Filho morreria, de um infarto fulminante, aos 58 anos e quando estava no auge da sua realização profissional. Tinha um desgosto íntimo profundo, que muito contribuiu para o agravamento de sua doença cardíaca - o alcoolismo crônico de seu filho único, Mário Júlio, desde os 17 anos de idade. Um ano após a morte de Mário, sua esposa, Célia, não conseguindo superar a falta do marido, se suicidaria. Logo no início de 1967, outra tragédia, mais terrível ainda, se abateria sobre os Rodrigues: durante uma chuva intensa ocorrida na noite de 21 de fevereiro, o prédio em que morava Paulinho, o caçula dos homens, nas Laranjeiras, desabou. Ele, a mulher, um casal de filhos adolescentes e a sogra morreram soterrados.

O personagem

À luz da psicanálise, principalmente à da interpretação dada pelo psicanalista norte-americano Edmund Bergler, "todo escritor é um voyeur". E nenhum se encaixa mais perfeita e explicitamente nesse conceito do que Nelson Rodrigues. Ele próprio confessava que, na infância, as constantes brigas de ciúmes que presenciara entre seus pais o haviam marcado para sempre: "Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. (...) Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico". A paixão obsessiva de ver e descrever todas as minúcias, até mesmo as mais aviltantes, da criatura humana, exerceu-se nele ininterruptamente, primeiro nas crônicas policiais e mais tarde na sua ficção e no teatro. E o grande sofrimento pessoal que seria obrigado a suportar, a vida toda - miséria, doenças, tragédias familiares -, impregnou sua obra de uma atmosfera pesada, mórbida, maldita, mas onde se detecta sempre um humor personalíssimo, fino e amargo.

Começou a escrever para teatro em 1941, movido pelo desejo de ganhar dinheiro. Redigia à noite, quando lhe sobrava tempo. Sua primeira peça, A Mulher sem Pecado, não foi bem aceita. E não teve muita repercussão. Em janeiro de 1943, escreveu Vestido de Noiva - lida e consagrada no meio intelectual, a começar por Manuel Bandeira, foi encenada em dezembro do mesmo ano por Ziembinski, com estrondoso sucesso. É unanimemente considerada até hoje um marco do moderno teatro brasileiro. Mas a obra seguinte, Álbum de Família, de 1946 - um pacote de paixões incestuosas com fundo de tragédia grega -, de tal modo chocou e dividiu as opiniões de intelectuais, críticos e jornalistas, que a censura proibiu sua encenação. Precisou esperar 21 anos para ser liberada e apresentada, em 1967 - por essa época só pôde ser recebida friamente pelo público, que chegava a rir do exagero estilístico e temático do autor.

As outras peças de Nelson (foram 17, ao todo) estiveram sempre na mira da censura e, quando liberadas e encenadas, eram envolvidas em escândalo. As opiniões se dividiam; havia os que o classificavam de "gênio" e os que o tinham por "tarado" - "o tarado de suspensórios", como foi chamado. Nos anos 50, Carlos Lacerda, empenhado em sua campanha de destruição do jornal rival, "Última Hora", de Samuel Wainer - onde Nelson escrevia sua coluna diária, A Vida como Ela É... -, concentrava seu furor nele, proclamando-o "um dos instrumentos do plano comunista para destruir a família brasileira". O escritor, que dizia ser fiel apenas às suas próprias obsessões, era alvo de críticas vindas de todos os setores da esquerda e da direita. Da obra Perdoa-me por me Traíres, dizia o líder católico Alceu de Amoroso Lima: "Uma peça cuja abjeção começa pelo título".

Em 1944 começara a escrever, sob o pseudônimo de Suzana Flag, um folhetim diário de página inteira, Meu Destino É Pecar, para "O Jornal" - uma rocambolesca história de paixões desencadeadas e crimes de toda espécie, bem ao gosto popular. Com esse pseudônimo produziu sete trabalhos do gênero, e mais um como Myrna - não os julgava dignos de seu nome e, como grande machista que era, adotava pseudônimos femininos. Porém, quando já estava na "Última Hora", usando a mesma forma mas já assinando com o próprio nome, escreveu, de agosto de 1959 a fevereiro de 1960, um folhetim "diferente", Asfalto Selvagem. Utilizando uma história sexualmente picante e recheada, como sempre, de incestos, suicídios e homicídios, estupros e o que mais, a de Engraçadinha, que é considerada a personagem mais erótica da literatura brasileira, Nelson manteve imantadas centenas de milhares de leitores - um público que, ao contrário do que acontecera com os outros folhetins seus, constava principalmente de homens. Escrevia diariamente, na redação, de um jato e sem correções, ao sabor do acaso e da inspiração, mas misturando às peripécias dos personagens assuntos do cotidiano, debates sobre política ou artes, pessoas reais (a começar por seus amigos escritores e jornalistas, ou personalidades de relevo). Todos os seus folhetins foram também publicados em livro - são, até hoje - e atingiram enormes tiragens.

A partir de 1967, no "Correio da Manhã" e em "O Globo", Nelson começa a escrever, sempre em prestações diárias, as suas memórias - um precioso material para quem queira entender a época e a vida de seu melhor personagem: ele próprio. Pois, como dizia o crítico Décio de Almeida Prado, "através de crônicas e entrevistas, terminou por plasmar uma personalidade semifictícia para si mesmo, quase já de personagem artística autônoma, da qual faziam parte o emprego humorístico do exagero e as frases de efeito para uso externo, resquício da velha atração nacional pela boutade e pelo paradoxo".

Após numerosas aventuras amorosas, de curta ou longa duração, em 1977 voltou a viver com Elza, sua primeira mulher, de quem se separara havia 14 anos. Jurou-lhe um amor tão eterno que ainda conseguiu que a esposa cumprisse, dois meses após a sua morte, um último desejo - que mandasse gravar, ainda em vida, o próprio nome ao lado do seu, na lápide funerária do Cemitério de São João Batista, com a inscrição: "Unidos para além da vida e da morte. É só".

Nelson faleceu no dia 21 de dezembro de 1980, um domingo. E numa derradeira ironia, bem digna de algum folhetim seu, ele, que lutou sempre com dificuldades financeiras, no final daquela tarde faria, juntamente com seu irmão Augusto e alguns colegas de "O Globo", 13 pontos na loteria esportiva.

 

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