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Países em alerta contra vírus mutante que provocou mortes na Ásia

NILZA BELLINI


Arte PB

A caótica ocupação do planeta é a principal causa do surgimento de moléstias devastadoras que marcaram a história da humanidade. Muitas das que se transformaram em epidemias apresentam contágio por via aérea, o que potencializa o perigo em grandes aglomerados urbanos. Quer ocorram nas cidades, quer nas florestas, transmitidas por vetores como mosquitos e caramujos ou por contato físico, as doenças epidêmicas estão incontestavelmente ligadas ao meio ambiente.

A gripe causada pelo vírus Influenza é uma delas, explica Eliseu Waldman, infectologista da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). O Influenza é mutante e já afetou várias vezes homens e animais. Em cada ocasião, sua estrutura molecular se modificou um pouco e, por isso, recebeu dos cientistas um código diferente. Em 1918, quando provocou a gripe espanhola, foi denominado H1N1. Em 1957, a epidemia causada pelo H2N2 ficou conhecida como gripe asiática. Em 1968, com a estrutura molecular novamente alterada, provocou a gripe de Hong Kong e recebeu o código H3N2. Nesses dois eventos, o de 1957 e o de 1968, somados, matou cerca de 1,5 milhão de pessoas. Em 1977, o H1N1 reemergiu, causando a gripe russa.

Agora os cientistas estudam o H5N1, que ainda está se transformando, mas já levou à morte mais de 60 pessoas na Ásia, a maior parte delas no Vietnã, de 2003 até meados deste ano. Também foram registrados óbitos na Tailândia, Camboja e Indonésia, no leste da Rússia e no Cazaquistão. Esse novo organismo é resultante da fusão do material genético do Influenza que afeta aves com os genes do Influenza humano. Surgiu na Ásia, onde as habitações ficam muito próximas dos criadouros de animais. Os frangos daquela região foram contaminados por aves silvestres como patos, marrecos e codornas antes de afetar o homem. "Por isso, foi batizada de gripe aviária", explica Waldman. "Como originalmente não é próprio do homem, esse agente tem mais dificuldade de multiplicação e transmissão entre humanos. Mas isso pode mudar", alerta.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a letalidade do H5N1, nos casos verificados até agora, é de 73,5%. As camadas mais pobres da população do mundo inteiro serão as mais afetadas quando o vírus concluir seu processo de transformação. Os antivirais eficazes nesse caso são muito caros e, como o vírus ainda se encontra em fase de mutação, torna-se difícil o emprego de medidas preventivas. Alguns países estão adquirindo vacinas experimentais, na tentativa de combater a doença, que, suspeita a OMS, poderá matar mais que a espanhola, a primeira gripe letal do século 20. O Instituto Butantan, em São Paulo, pretende produzir 20 mil doses de vacina contra a gripe aviária a partir de 2006. Para isso, depende da liberação de uma verba do Ministério da Saúde, no valor de R$ 3 milhões. A cepa do vírus para essa finalidade será fornecida pelo National Institute for Biological Standards and Technology, da Inglaterra.

Os serviços de controle estimam que houve cerca de 40 milhões de vítimas fatais em 1918 em todo o mundo. A gripe espanhola foi tão violenta, que nos Estados Unidos - onde um quarto da população foi infectada e 675 mil pessoas morreram - a expectativa de vida caiu 10%. No Brasil, ela se alastrou por todo o país em dois meses. No Rio de Janeiro, matou 15 mil pessoas, inclusive o então presidente da República, Rodrigues Alves. Não existem dados exatos, mas calcula-se que na capital paulista mais de 10% da população foi afetada. Foram tantos os óbitos que os bondes, veículo de transporte coletivo na época, passaram a ser utilizados apenas para carregar cadáveres.

As grandes epidemias

O epidemiologista Stefan Cunha Ujvari, autor do livro Meio Ambiente & Epidemias, diz que o homem sempre foi refém da natureza. Ele conta que, há 10 mil anos, quando o Homo sapiens fez a primeira grande migração, já levou do continente africano alguns quadros infecciosos. Um dos exemplos é o herpes. O papilomavírus humano (HPV), que pode causar câncer de colo do útero, também começou a ser disseminado nesse período.

Outras infecções coletivas surgiram com a primeira grande alteração do meio ambiente, a partir do desenvolvimento da agricultura e da domesticação dos animais. Os desmatamentos, a construção de canais de irrigação e a formação de áreas alagadas facilitaram a proliferação de mosquitos. Com os animais vivendo nas proximidades das moradias humanas, surgiram condições para que espécimes infectados contaminassem o homem, como é o caso, agora, da gripe aviária. Estudos genéticos mostram, por exemplo, que o agente causador do sarampo apresenta similaridades com o da peste bovina, embora tenha sofrido significativas transformações quando se adaptou ao organismo humano.

Segundo Stefan Ujvari, quando começou a haver produção farta de alimento, propiciando o primeiro grande aumento demográfico, o meio ambiente passou a ser cada vez mais degradado. O armazenamento de cereais, por exemplo, redundou no aumento da população de roedores ao redor das habitações.

Até a Idade Média, ninguém havia percebido que a proximidade de animais trazia o risco de doenças mortais. Os ratos que invadiram cidades européias repletas de lixo fizeram de 1347 o ano da peste bubônica, também conhecida como peste negra. A moléstia chegou à Europa a bordo de embarcações contaminadas pela bactéria transmitida pela pulga do rato e, em pouco mais de dois anos, dizimou um terço dos europeus.

A Revolução Industrial, que favoreceu a migração do campo para as cidades e facilitou a segunda grande onda de crescimento populacional, também possibilitou o surgimento, nos aglomerados urbanos, de epidemias provocadas por água e alimentos contaminados e sistemas de saneamento inadequados. No século 19, a mortalidade atingiu 60% das crianças de até 5 anos de idade, vitimadas por tuberculose, escarlatina e coqueluche, todas epidemias transmitidas pela tosse.

"Foi apenas no começo do século 20 que descobrimos a causa da transmissão de diferentes doenças e passamos a controlá-las com a implantação de ações preventivas", explica Stefan Ujvari. "O antibiótico, que surgiu na década de 1940, colaborou pouco para esse controle. O que mais pesou foram as medidas de saneamento", destaca o epidemiologista.

Embora tenha consciência de que muitas moléstias podem ser transmitidas pela água, o homem ainda toma poucas providências para evitar a contaminação, sobretudo nos países pobres. Ao mesmo tempo, com os fertilizantes sintetizados, o alimento farto e a prevenção de doenças compuseram uma equação capaz de favorecer como nunca o crescimento demográfico descontrolado, cuja conseqüência foi uma devastação ambiental de proporções gigantescas.

A vingança das florestas

As epidemias modernas de doenças infecciosas não acontecem apenas em decorrência da urbanização. A bióloga sanitarista e doutora em parasitologia tropical Maria Inês Machado destaca que o crescimento acelerado do turismo ecológico ou de aventura em áreas rurais e florestais tem sido considerado importante fator de disseminação de enfermidades como esquistossomose, leishmaniose, febre amarela, hantaviroses e até do mal de Chagas.

"O homem é contaminado pelas moléstias tropicais quando invade áreas selvagens", explica Maria Inês. "O ambiente natural, altamente apreciado por quem faz turismo ecológico, é o habitat ideal para vários hospedeiros e transmissores de doenças que infectam os humanos", diz ela.

O desmatamento para a formação de pastos facilita a proliferação de parasitas como o carrapato-estrela. Em Piracicaba (SP), a infestação atinge vários pontos, mas principalmente o campus da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), onde foi constatada a presença de mais de 300 mil carrapatos, em estudo feito pela Superintendência de Controle de Endemias (Sucen). Cinco pessoas que freqüentavam o local contraíram a febre maculosa (doença febril aguda causada por bactéria transmitida por carrapatos infectados), com duas vítimas fatais, uma delas, um menino de 7 anos, filho de um professor. Por conta disso, a universidade adquiriu cerca de 3 mil equipamentos de proteção para distribuir entre alunos, funcionários e professores. Em agosto morreram de febre maculosa na cidade mais cinco pessoas de uma mesma família, em menos de 20 dias. Elas apresentavam manchas escuras no corpo, enjôo, calafrios e infecção generalizada.

"Todas as vezes que um indivíduo entra num ambiente silvestre, ou o devasta, ele pode ser afetado", reforça Carlos Magno Fortaleza, infectologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu. A Amazônia abriga centenas de minúsculos organismos ainda não estudados ou identificados pelos cientistas, mas que sempre existiram num delicado equilíbrio ambiental, em seus reservatórios naturais. O Instituto Evandro Chagas, de Belém, catalogou mais de 200 vírus "novos" na Amazônia até o ano 2000, entre eles o Belterra e o Icoaraci, muito semelhantes ao causador da febre do vale do Rift, do tipo hemorrágica, observada na África. As doenças provocadas por esses organismos pouco conhecidos são chamadas emergentes.

Das doenças emergentes, as hemorrágicas são as mais assustadoras. O Ebola, detectado pela primeira vez em 1976, no Zaire (atual República Democrática do Congo) e no Sudão, desde então vem se espalhando pela África e já causou centenas de mortes. Mesmo sem nunca ter sido observado no Brasil, está entre os mais temidos. Segundo o geógrafo Paulo Moraes, "as similaridades entre o meio ambiente africano e o de algumas regiões do Brasil admite a hipótese de o Ebola poder ocorrer em nosso continente". Seus efeitos são tão devastadores que inspiraram a realização do filme Epidemia, um sucesso de bilheteria.

Mesmo sem o Ebola, o Brasil já registrou casos preocupantes de outros vírus. O Sabiá matou em menos de uma semana uma engenheira agrônoma de Cotia, na região metropolitana de São Paulo, em 1990. "Desde então, não houve registro de outro caso", diz Carlos Fortaleza. Isso não significa que o assunto deva ser esquecido. Na América do Sul, foram identificados vários agentes hemorrágicos igualmente letais, da mesma família (arenavírus) do Sabiá, como o Junín (febre hemorrágica da Argentina), o Guanarito (febre hemorrágica da Venezuela) e o Machupo (febre hemorrágica da Bolívia). Todos são transmitidos pela urina de ratos silvestres. Se os habitats de roedores selvagens forem destruídos, os animais podem se aproximar do perímetro urbano e acabar contaminando ratos encontrados em grandes cidades como São Paulo.

Os brasileiros também têm sido vítimas dos arbovírus - transmitidos por mosquitos -, como aqueles que causam a dengue e a febre amarela (doença contra a qual existe vacina), e o Rocio, que provoca encefalite grave e, de 1975 a 1977, afetou mais de mil moradores do vale do Ribeira (SP), 13% dos quais morreram e mais de 30% tiveram seqüelas permanentes, como surdez e dificuldade de movimentos.

Heitor Franco de Andrade Júnior, Ph.D. em protozoologia e professor do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, da USP, destaca que o número de casos de malária na Amazônia cresce apenas quando grupos de pessoas que nunca tiveram a doença adentram a floresta e elas são contaminadas. "Se não houver cuidados prévios, os surtos serão inevitáveis, como sempre acontece em projetos agropecuários instalados em Rondônia e em áreas de mineração", diz. Segundo ele, quando existe planejamento, podem ser tomadas medidas eficazes de prevenção. "A usina hidrelétrica de Tucuruí não registrou um caso sequer de malária. Quando se conhece o vetor e seu comportamento, como ocorre com a malária, os planejadores limpam o entorno, destroem os focos onde provavelmente está o mosquito, com o uso de inseticidas, e o problema tem fim. Há vários exemplos de mineradoras que nunca apresentaram um caso sequer de doença tropical por transmissão vetorial, e outras onde ocorreram diversos, por absoluta falta de cuidados."

Formas de controle

Carlos Fortaleza diz que o estado de São Paulo está preparado para conter o avanço de epidemias. Coordenador do Centro de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, ele chefia, também, um grupo de profissionais que age exclusivamente em situações emergenciais. Composto por quatro médicos, dois enfermeiros e dois veterinários, a Swat da Saúde, como foi apelidado o grupo, é ligada ao Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE).

Se alertados sobre a ocorrência de uma doença não identificada, ou que pode se disseminar (a notificação de muitas delas pelos serviços municipais de saúde é obrigatória), os profissionais da Swat da Saúde fazem uma rápida avaliação epidemiológica, ou seja, vão até o local para investigar prontamente os fatos. A atuação do grupo permite maior agilidade na adoção de medidas preventivas ou de bloqueio, como vacinação em massa, por exemplo.

Depois de alertado pelo Centro de Vigilância Epidemiológica de Piracicaba, em agosto, foi o grupo da Swat da Saúde que colheu material da família morta naquela cidade e o enviou para laboratórios de referência, como sempre acontece nesses casos. Em São Paulo, os exames cabem ao Instituto Adolfo Lutz, instituição onde o agente causador pode ser identificado com maior rapidez. Se a contaminação puder ser bloqueada por vacinação, esta é realizada. "Da mesma maneira, são adotadas medidas de saneamento ambiental, caso necessário", explica Carlos Fortaleza. Se forem feitos todos os exames e ainda assim a doença não for identificada, o material colhido no local do evento segue para o Centro de Controle de Doenças, nos Estados Unidos.

Epidemias e ideologia

Heitor Franco de Andrade destaca que, em toda a história das epidemias, as principais vítimas foram sempre os mais pobres. "O neoliberalismo e o conseqüente esvaziamento do Estado tornaram essas populações ainda mais vulneráveis aos efeitos de uma epidemia", afirma. Ele, porém, não acredita na possibilidade de uma guerra biológica. "A fome e a venda de vacinas de segunda linha são recursos muito mais eficazes e baratos", observa.

Ao contrário de Franco de Andrade, Geraldo Lesbat Cavagnari, membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não descarta a hipótese da utilização de armas providas de vírus e bactérias, mesmo que atualmente existam tratados internacionais que proíbam a pesquisa e o uso desses meios. "Nenhuma convenção é garantia absoluta de que armas biológicas não serão empregadas num conflito", diz.

Após a 2ª Guerra Mundial, nos anos 50 e 60, o governo dos Estados Unidos instalou, no estado de Maryland, um complexo de laboratórios militares conhecido como Forte Detrick, onde foram realizados mais de mil experimentos voltados ao desenvolvimento de armas biológicas. Cavagnari diz que os norte-americanos ainda mantêm estoques de armas resultantes das pesquisas desse período. "Numa situação crítica, é da natureza do ser humano usar todos os recursos disponíveis", observa.

Na primeira metade do século 20, na guerra contra a China, os japoneses bombardearam cidades inteiras com material infectado com a bactéria da febre tifóide, além de usar a do antraz (Bacillus anthracis) para contaminar barras de chocolate que distribuíam para a população da cidade chinesa de Nanquim, na década de 1940.

Stefan Ujvari lembra que, embora o microscópio só tenha sido inventado no final do século 16 e a existência de bactérias tenha sido comprovada apenas no século 19, por Pasteur e Koch, desde a Antiguidade o homem tem noção de que doenças podem ser contagiosas. "Não são confiáveis as versões de que os exércitos romanos utilizavam cadáveres de pessoas para contaminar a água usada pelas forças do inimigo, apesar de existirem escritos a esse respeito", destaca Ujvari. "Mas está bem comprovada a história dos tártaros, que, no século 14, usavam catapultas para lançar corpos de vítimas da peste negra por cima das muralhas da cidade de Caffa [atual Feodossia], na Criméia", diz. Ujvari também destaca o caso do capitão inglês Simeon Ecuyer, que a mando do coronel Jeffrey Amherst usou cobertores de vítimas de varíola para contaminar os índios habitantes das margens do rio Ohio, nos Estados Unidos do século 18.

Mesmo hoje, apesar dos dispositivos internacionais que vedam a pesquisa e o uso desses recursos, muitas vezes, em situações de epidemia, se manifesta o oportunismo de alguns que decidem enriquecer à custa de doenças. Heitor de Andrade cita o caso da Tailândia, onde há falta de medicamentos contra a malária. "Ela é epidêmica na região dos planaltos, porque o remédio é usado pelos narcotraficantes para pagar os transportadores da droga", diz.

 

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