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A previdência social no Brasil

Profissionalizar a gestão, para combater fraudes, filas e desperdício

NELSON MACHADO


Nelson Machado / Foto: Nicola Labate

Nelson Machado, paulista da cidade de José Bonifácio, é bacharel em direito pela Universidade de Brasília, com mestrado em administração orçamentária e financeira na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e doutorado em contabilidade e controladoria na Universidade de São Paulo. Ministro interino do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão de novembro de 2004 a março de 2005, é atualmente ministro da Previdência Social.
Esta palestra de Nelson Machado foi feita no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo no dia 19 de outubro de 2006. Os dados apresentados constam de gráficos e tabelas – elaborados a partir de levantamentos realizados, entre outros, pela Secretaria da Previdência Social (SPS) e pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) –, que podem ser consultados na edição impressa da revista.

Vou abordar em primeiro lugar a estrutura do sistema, falar um pouco sobre a previdência complementar, a do serviço público e a do regime geral. Vamos discutir a profissionalização da gestão, a melhoria do atendimento, o combate às fraudes e desperdícios e tecer considerações sobre o déficit, renúncias e resultado da previdência.

Antigamente a previdência social funcionava assim: os pais tinham uma quantidade maior de filhos e estes cuidavam deles quando ficavam velhos. No Estado moderno não se pode mais contar só com isso. O governo tem de assumir sua parcela de responsabilidade e gerir um sistema de previdência. No Brasil, este está apoiado em três pilares: o regime geral de previdência social (RGPS), os regimes próprios de previdência dos servidores (RPPS) e a previdência privada. O RGPS é a previdência social pública, básica e que busca universalização. É o modelo de repartição simples, em que a relevância está no pacto entre as gerações. A que hoje está no gozo do benefício está sendo paga por quem está trabalhando e estes vão gozar o benefício depois, financiado pelos trabalhadores futuros. Há uma correlação entre as pessoas, um pacto geracional.

Os RPPS destinam-se aos funcionários públicos estatutários, nas três esferas de poder, e aos militares federais. Seguem também a repartição simples e, com a reforma de 2003, caminham para o mesmo padrão do regime geral. Depois de feita a regulamentação, terão um valor básico e também um fundo complementar.

A previdência privada é a complementar, com regime optativo e de capitalização, ou seja, o indivíduo define o recurso que pode aportar e quanto quer receber no futuro.

No Brasil há 363 entidades fechadas de previdência, que trabalham com 1.004 planos de benefícios, num total de 2.045 empresas patrocinadoras e 36 instituidores. São R$ 340 bilhões de ativos, com 1,8 milhão de participantes. Como o regime ainda é novo, temos apenas 604 mil assistidos e beneficiários. O valor médio dos benefícios gira em torno de R$ 2.419 – no regime geral é de R$ 496. O regime complementar também é importante porque garante uma massa de recursos que podem ser investidos no crescimento do país, para gerar renda no futuro, até para poder pagar os benefícios. Saímos de R$ 129,2 bilhões em 2000 e alcançamos, em junho de 2006, R$ 340,4 bilhões, um volume de dinheiro que tende a crescer.

O desafio na previdência complementar é ter um órgão de fiscalização e normatização. Em dezembro de 2004 o governo criou a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), mas a medida provisória foi derrubada, apesar da concordância em relação à importância desse órgão, fundamental para que o Estado tenha uma ação forte na fiscalização dos fundos de pensão, que representam a poupança de milhares de trabalhadores contribuintes. Infelizmente, a capacidade de fiscalização que temos hoje, no ministério, é pequena diante da magnitude da tarefa. Mas já estamos com um novo projeto praticamente finalizado, propondo a criação de uma agência ou autarquia, algo que o Congresso entenda como relevante, um órgão forte, independente e permanente de fiscalização da previdência complementar. Hoje está tudo bem, mas é preciso cuidar e manter o equilíbrio entre ativo e passivo.

A previdência do serviço público é um regime próprio, instituído pela Constituição em 1988 e praticamente existe na União, nos 26 estados, no Distrito Federal e em 2.167 cidades, número que corresponde a 39% do total de municípios brasileiros. Os demais, quando não têm regime próprio, contribuem para o regime geral da previdência. Entre estados, União e municípios, são mais de 5 milhões de contribuintes ativos e 1,9 milhão de inativos. Incluindo os pensionistas, o sistema trabalha com 8,165 milhões de pessoas. É importante verificar que o volume maior de beneficiários e contribuintes não está na União, mas nos estados, com 4,3 milhões. Nos municípios, com 1,9 milhão, há uma tendência de crescimento. Isso amplia a necessidade de fiscalização e capacitação, porque são 2 mil e tantos municípios que carecem de pessoal capacitado para gerenciar esses valores.

A reforma feita em 2003 criou, entre outras coisas, a contribuição dos inativos e o patamar mínimo de 11%. Isso fez com que caísse a necessidade de financiamento – um eufemismo para déficit. Praticamente 1,3 mil entidades já alteraram suas regras de concessão de aposentadoria e 1,4 mil mudaram a concessão de pensão. Foi implantado também o teto de benefícios, que é a remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal e, nos estados, dos governadores.

Nos regimes dos servidores públicos da União e dos estados (no caso dos municípios, a quantidade de informações é muito grande e os dados chegam com muito atraso), tem-se verificado queda do déficit previdenciário, de 3% do PIB em 2003, para 2,6% em 2004 e 2,4% em 2005. E ele deve diminuir um pouco mais. É um regime que tende ao equilíbrio, na medida em que os funcionários públicos que entram no sistema caminham para o mesmo tratamento do regime geral. O grande desafio continua sendo buscar capacitação, treinamento para o pessoal, difusão de informações. É uma massa muito grande de pessoas lidando com isso nos 2 mil e tantos municípios. Hoje a fiscalização é feita também dentro do ministério, na Secretaria de Previdência Social. Ainda é débil, e precisamos avançar muito. E é necessário também regulamentar a previdência complementar do serviço público, notadamente o fundo da União. Nesse aspecto existem discussões, porque a lei fala em um único fundo para cada ente. Mas como o volume de contribuintes seria muito grande, há uma idéia no Judiciário de fazer um fundo apartado. O setor militar também trabalha com esse objetivo, o que tem dificultado a regulamentação. Mas estamos cuidando disso.

Vamos agora ao que chamamos de a Geni do Brasil, em que todo mundo joga pedra, que é o regime geral da previdência social. Vou falar rapidamente sobre a busca de profissionalização que estamos fazendo. A primeira questão importante é definir com clareza qual é o negócio do regime geral, porque dentro do INSS tínhamos o lado do benefício e o lado da arrecadação e fiscalização. Desde 2004 tenho trabalhado nessa questão, e nossa proposta sempre foi separar a fiscalização, porque não faz sentido o Estado brasileiro manter duas máquinas fiscalizadoras, duas arrecadadoras, sendo os empresários obrigados a prestar contas para dois fiscais diferentes, que chegam em momentos diferentes. Estou falando da Receita Federal e do INSS. A unificação da fiscalização federal do INSS e dos outros tributos é fundamental para reduzir custos do setor empresarial e do Estado. Mas tão importante ou mais é concentrar nossos esforços em um único produto, que é o acesso ao benefício. Isso muda o foco da organização e nos permite dar um salto de qualidade.

Nessa contextualização, buscando sempre a inclusão social, já que temos milhões de trabalhadores fora da previdência, nos concentramos em dois aspectos. Temos o Conselho Nacional da Previdência Social e implantamos conselhos em todas as 102 gerências executivas do INSS. Esses órgãos são muito importantes para a previdência social, e deles participam o governo, os empresários e os trabalhadores, tanto da ativa quanto os aposentados. Essa discussão é relevante para que se possa melhorar e atingir o segundo objetivo, que é a garantia de acesso aos direitos previdenciários, para a qual não basta a lei.

Com esse pano de fundo definimos que nossa missão seria a melhoria do atendimento e o combate às fraudes e desperdícios. Para atingir tais objetivos, existe uma cunha fundamental, que é a profissionalização da gestão. Esta exige uma visão sistêmica. Não basta profissionalizar apenas uma parte, mas entender a organização como um sistema e trabalhar a gestão de pessoas, a configuração organizacional, a gestão dos processos, a tecnologia de informação.

No caso da gestão de pessoas, entre as várias ações que foram implementadas, uma considero central: a introdução de concursos internos para seleção de gerentes executivos do INSS. Eles têm que ser capacitados, treinados e escolhidos por um processo profissional dentro da organização. Foi feito primeiro um concurso nacional, e temos uma lista de 700 nomes, que pode ser chamada de banco de talentos. É desse grupo que saem as inscrições quando uma cidade vai trocar a gerência. Todos os gerentes interinos já foram substituídos por esse processo. As pessoas se inscrevem, o currículo é analisado, é verificado o conhecimento e o tempo de serviço. Os cinco primeiros colocados passam por dinâmica de grupo, entrevistas em empresa especializada e somente depois o profissional é escolhido. Esse processo foi iniciado no começo de 2006. A cada mês estamos substituindo entre dez e 12 gerentes, e a partir de 2007, quando tivermos indicadores definidos, os gerentes se enquadrarão a eles. Quem estiver fora dos indicadores estará fora da gerência. Criamos uma gratificação específica para esses gerentes e para as chefias das agências e extinguimos todos os cargos em comissão dentro do INSS, exceto o da diretoria. Além disso, estamos implantando a gratificação variável por desempenho. Os médicos peritos já têm essa gratificação definida, e o indicador é simples: o tempo decorrido entre o agendamento da perícia médica e sua realização. Isso está na lei. Se for inferior a cinco dias, a gratificação é de 100%. Se superior a 40 dias, é zerada.

Atualmente enfrentamos uma disputa com os funcionários administrativos, para os quais estamos propondo também a criação de uma gratificação por produtividade. Esta não é apenas individual, como a dos médicos. Tem uma parcela pessoal, de 20% a 30%, esse índice não está fechado ainda, mas a parte principal da gratificação é solidária, depende do resultado da unidade, da gerência. Um funcionário que tem o poder de conceder um benefício permanente, para o resto da vida, um salário mínimo ou mais que isso, não pode ganhar mal.

Quanto à gestão de processos, temos um programa, iniciado em 2001, que ficou parado em 2002, voltou em 2003 e a partir de 2005 recebeu força total. É um programa de modernização da previdência social como um todo. Estamos redesenhando todos os processos de trabalho. Uma consultoria de grande porte montou um modelo e definiu a linha estratégica. Temos selecionado os melhores funcionários no país inteiro, que trabalham nisso em Brasília. Grande parte dos processos já foram redesenhados e realinhamos as prioridades para que alguns entrem em funcionamento rapidamente. Contratamos uma casa de software, um consórcio internacional liderado pela Taba. Já licitamos os novos computadores Risc, que vão substituir toda a plataforma Unisys que temos hoje. Dentro de dois ou três anos teremos uma revolução na forma de atender, de trabalhar, em todos os processos dentro do INSS. Para acostumar a casa com a nova cultura, criamos um programa de qualidade no atendimento, que já opera com esses pressupostos. Ainda não temos os sistemas, mas a partir de meados de 2007 eles começarão a ser implantados e vamos fazer a migração.

A melhoria do atendimento é o primeiro eixo com que estamos trabalhando na gestão. O processo anterior era assim: o funcionário recebe o pedido, carimba, põe no processo e joga para o back office. Agora vamos adotar três princípios norteadores básicos. O primeiro é programação do atendimento. Queremos atuar como faz a indústria há muito tempo, com produção planejada: já se sabe o que vai ser feito. Estamos criando um modelo de agendamento do atendimento, de tal sorte que, quando José da Silva entrar na agência, o funcionário já estará sabendo que ele ia chegar, a que hora e o que quer. Portanto, ele já terá em sua estação de trabalho todos os dados dessa pessoa. Nossa meta, que o presidente do INSS, Valdir Simão, cunhou, é o cidadão sentar segurado e levantar aposentado. Para isso precisamos ter seletividade no atendimento, além da programação, e resolutividade, ou seja, não deixar nada para depois. Na medida em que se tem informação adequada, isso pode ser feito.

O programa de gestão de atendimento já foi implantado, com o objetivo de criar gerenciamento participativo, por processos. Foram trabalhadas praticamente as 126 maiores agências da Previdência Social, tudo com consultores internos, que nós formamos. São mais de 600 pelo país todo. O outro lado da melhoria foi fortalecer os canais de atendimento a distância, apostando fundamentalmente na internet. Como sabemos que nossa clientela não tem acesso direto à internet, temos trabalhado com três linhas de ação. Uma delas são os diversos telecentros disponíveis em ONGs, entidades, Banco do Brasil, casas de cultura, etc. Outra é a parceria com o empresariado. Já assinamos convênios com diversas federações da indústria e do comércio e os empresários se comprometeram a estudar a possibilidade de o departamento de pessoal fazer diretamente o agendamento de perícia médica, informando o empregado, mesmo porque os primeiros 15 dias são pagos pela empresa. Para os casos de segurado individual, ou se a empresa não tiver acesso com banda larga, criamos uma central de teleatendimento, com 1,3 mil pessoas trabalhando no Recife. Essa central atende pelo número 135, disponível para toda a população brasileira desde junho de 2006.

Em relação ao agendamento de perícia médica, comparamos os requerimentos de benefício feitos pela internet e por outros sistemas, que são os das agências. Em janeiro de 2005 eram 197 mil feitos na agência e 6 mil pela internet. Em dezembro do mesmo ano, foram para 28 mil pela internet e 238 mil na agência. A partir do momento em que começou a se fortalecer o atendimento via internet, as linhas se inverteram. São 215 mil requerimentos feitos pela web, usando diversas maneiras para chegar à rede – a empresa, o segurado em sua residência, o telefone 135, o telecentro do Banco do Brasil ou de ONGs –, e 183 mil nas agências. Chamo a atenção para o aumento total de pedidos, porque diminuíram as filas, que representam um impedimento ao acesso ao benefício. 

Os pedidos via telecentro são muito poucos. Os realizados nos escritórios de contabilidade tiveram um impacto maior no início, agora proporcionalmente estão caindo, porque o que está crescendo é o telefone, o 135.

Nas agências, ampliamos o horário de atendimento, e proibimos o uso de senha. As que agora trabalham até seis horas são 422, mas 534, que são maiores, já atendem em período integral de dez horas. Isso desconcentrou o horário de atendimento e melhorou muito a qualidade.

Um dado interessante diz respeito ao Sistema Integrado de Gestão do Atendimento (Siga), que funciona em 253 agências. Vamos implantá-lo em todas, mas ainda demora um pouco. O Siga acompanha o segurado desde o momento em que entra na agência até o fim do atendimento, mostrando o tempo médio que permanece lá. Em setembro de 2005 era de uma hora e 44 minutos, depois subiu para uma hora e 52 minutos e agora, seguindo uma linha declinante, estamos com uma hora e 14 minutos, tempo que, com o agendamento dos outros benefícios, que está se ampliando, vai diminuir muito. Hoje ainda há muita gente que chega de manhã e fica esperando a hora do atendimento. Com o agendamento, essas pessoas terão hora marcada, e assim o tempo médio de espera deverá cair para meia hora ou 40 minutos, que é nossa meta.

Houve redução de filas, uma meta colocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Quando assumi o ministério, perguntei-lhe o que queria que eu fizesse e respondeu: "Só duas coisas: combater fraudes e acabar com as filas". Criamos um indicador e em dezembro de 2005 medimos as filas em todas as regiões. Começamos com uma média de 85 pessoas na fila. Não fizemos medições durante o primeiro semestre de 2006, porque os sistemas estavam em maturação. Mas retomamos a pesquisa em agosto de 2006 e será feita mês a mês. Na retomada verificamos uma clara redução de 85 pessoas na fila para menos da metade. Daqui para a frente vamos fazer um trabalho focado em cada uma das agências, em busca de direcionamento ou requalificação de funcionários, e assim por diante. Vamos medir a eficiência da região, do setor, da gerência e do limite da agência. Será um indicador seguro e simples da qualidade do atendimento.

O segundo eixo é o combate ao desperdício e às fraudes, e com esse objetivo a grande ação foi o recadastramento dos beneficiários, cumprindo determinação legal de 1991, que estabelece a realização desse procedimento a cada cinco anos. Nunca tinha sido feito, e dividimos o trabalho em duas etapas. A primeira abrangia 2,42 milhões de beneficiários, e já foi praticamente toda feita. Foram suspensos 69 mil benefícios pelo censo e 55 mil após o censo. É importante observar que depois do recenseamento a velocidade da suspensão aumenta, porque passamos a contar com uma base de dados atualizada e fica mais fácil fazer a comparação com informações que vêm dos cartórios a respeito de óbitos. Além disso, difunde-se na sociedade uma imagem de seriedade e, em caso de falecimento, o familiar procura logo a agência, entrega o cartão e suspende o benefício.

A segunda etapa está em processamento ainda, começou em abril de 2006 e vai até janeiro de 2007. O processo começa num dia e termina sete, oito meses depois, então a conclusão está prevista para agosto ou setembro de 2007. Estão sendo recenseados 14,762 milhões e, segundo os dados do dia 3 de outubro de 2006, já alcançamos 10,144 milhões. Temos a convicção de que até 2007 teremos feito todo o recenseamento.

Na questão do combate às fraudes, reorganizamos a área de inteligência do INSS e firmamos convênios com a Abin [Agência Brasileira de Inteligência], o Ministério Público, a Polícia Federal e o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], o que tem dado bons resultados na atuação contra quadrilhas organizadas.

O auxílio-doença teve um crescimento espantoso a partir de 2000, quando eram 569 mil benefícios, e chegamos a 1,6 milhão em 2005. Como não houve nenhuma peste, hecatombe ou tsunami, o problema só podia ser de gestão. Uma análise mostrou que a primeira elevação da curva se dá fortemente entre 2001 e 2002, justamente no momento em que a terceirização da perícia médica ganha liberdade para conceder o benefício. Até então havia o médico terceirizado, mas o processo tinha de passar por uma revisão. Como isso entupia o atendimento, tudo foi liberado e, obviamente, a quantidade de auxílios-doença explodiu. Junto com isso temos problemas de legislação, que fazem com que cerca de 50% dos benefícios pagos sejam superiores ao último salário do beneficiário, o que naturalmente estimula a busca do auxílio-doença e/ou da permanência nele.

Em termos de dinheiro, isso significava R$ 4 bilhões em 2000, em valores de setembro de 2006, e R$ 13 bilhões em 2005. O que fizemos foi reordenar a lógica da avaliação médico-pericial, substituir profissionais credenciados por concursados. Isso estava na lei de 2003, que fixou prazo até 2006, e já temos a reversão dessa tendência.

Quanto à quantidade de benefícios pagos mês a mês, em setembro de 2004 eram 1,443 milhão, número que chegou ao pico de 1,666 milhão em outubro de 2005. O modelo de perícia começou em agosto de 2005 com 1,5 mil médicos concursados. O benefício é concedido com uma expectativa de tempo, portanto já com uma alta determinada. Não é necessário o retorno, e isso fez com que o volume caísse de 1,6 milhão até 1,3 milhão, e agora estamos com 1,4 milhão. Deveremos ficar nesse patamar por mais alguns meses, até acertar alguns detalhes e o Congresso aprovar a alteração da legislação para que o benefício seja limitado à média do último ano de trabalho e não de toda a vida laboral.

No que respeita à quantidade de perícias médicas, em agosto e setembro de 2005 entraram 1,5 mil médicos, e os números subiram. A alta prevista reduziu o retrabalho em cerca de 70,8%, porque o modelo anterior continha um retrabalho infinito, o segurado tinha de comparecer à agência pelo menos três vezes, gastando tempo e dinheiro, não somente dele como da organização. Agora ele faz o agendamento pela internet ou pelo 135, e depois a perícia, na qual o médico concede ou não o benefício. Se o concede, diz por quanto tempo e informa quando deverá voltar ao trabalho. Se ele não se sentir bem, pede prorrogação. Cerca de 10% a 20% retornam para pedir uma prorrogação. Então o volume total de perícias caiu significativamente.

Em 2005, a média de requerimentos era de 400 e poucos mil por mês e em 2006 estamos com 580 mil. Ou seja, o acesso pela internet aumentou fortemente a quantidade de requerimentos. É isso o que faz também diminuir a fila, porque ela é reflexo do mau atendimento. Observe-se que a fila é um elemento importante nas fraudes, que começam quando o sujeito aluga o banquinho, o lugar na fila, e depois explodem com atestado médico falso, declaração de empresa, etc., para conseguir o benefício. Assim, melhorar o atendimento e reduzir a fila também significa combater fraude e desperdício.

Até outubro de 2005 o ritmo de crescimento dos benefícios era de 4%, mas a partir de então aconteceu um deslocamento significativo, com a redução desse índice. Isso é fruto da seriedade no tratamento do auxílio-doença e do processo de recadastramento. As duas coisas têm influência, porque as pessoas continuam envelhecendo e pedindo benefício, e são atendidas, mas o volume de benefícios mudou. É evidente que mais à frente vamos voltar a uma taxa de crescimento normal, em função do envelhecimento da população, mas ainda temos muito a ganhar na gestão dessa curva.

No regime geral, em 1998 a quantidade de benefícios era de 16 milhões, dos quais 10,7 milhões urbanos e 5,65 milhões rurais, além de 1,83 milhão assistenciais – ou seja, administrados pelo INSS mas que não entram na conta dos recursos previdenciários. Em 2005 saímos de um total (urbanos e rurais) de 21,16 milhões para 21,4 em 2006, ou seja, em nove meses tivemos um crescimento de apenas 240 mil benefícios, contra 700 mil a 800 mil/ano que aconteciam em todos os anos. A Lei do Idoso permitiu o crescimento de 2,7 milhões para 2,9 milhões dos assistenciais no mesmo período. Então a taxa de crescimento de benefícios que muitos projetam pode ser enganosa. Precisamos trabalhar mais na gestão, conhecer melhor para definir mais claramente essa taxa de crescimento. Talvez as projeções que têm sido feitas sobre o déficit da previdência não sejam tão corretas assim.

Outra questão importante que tem sido divulgada é a relação contribuinte/beneficiário. Ela vinha caindo desde a década de 1960. É claro, quando o sistema começa, temos mais contribuintes do que beneficiários. Depois essa relação tende a cair, porque as pessoas começam a receber benefícios e os que pagam se mantêm ou crescem a taxas menores. Então a relação foi decrescente durante as décadas de 1970, 80 e 90, mas a partir do final dos anos 1990 voltou a ser crescente. Em 1998 era 1,99, ou seja, havia quase dois contribuintes para cada beneficiário. Em 1999 era 2, em 2000 2 e um pouquinho, em 2001 2,12, em 2002 2,14, em 2003 2,27, em 2004 2,33 e em 2005 2,36. Assim, as projeções que levam em conta a redução da relação contribuinte/beneficiário precisam ser repensadas.

Quanto ao nosso famoso déficit, em 1997 tínhamos um benefício de R$ 86 bilhões e uma arrecadação de R$ 80 bilhões, com déficit de R$ 6 bilhões, e isso sofreu um crescimento muito forte até 2004. Desse ano para a frente, as taxas começaram a ficar decrescentes. A projeção para 2006 apresenta R$ 41,6 bilhões. Em termos do PIB, chamo a atenção para a taxa de crescimento, que vinha se acelerando nos anos 2000 a 2002, continua crescendo, mas com índices decrescentes a partir de 2006, notadamente a variação 2005 para 2006, que é muito pequena.

Lembro que no início de 2006 muitos analistas lançaram projeções de um déficit de R$ 50 bilhões para esse ano, principalmente depois do aumento de 16% dado ao salário mínimo a partir de abril. As projeções indicam que não passaremos de R$ 42 bilhões.

É importante observar a separação existente entre o déficit na arrecadação do sistema urbano e na do rural. Conversei algum tempo atrás com o ministro da Previdência da Espanha e perguntei como é a situação previdenciária em seu país. Ele se espantou: "Nosotros tenemos superavit". Respondi: "Meu Deus, conte-me a mágica. Como é isso?" E ele: "Separamos com clareza aquilo que é benefício previdenciário contributivo do que é assistencial, que como não é contributivo não se pode colocar na conta da contribuição". São coisas de contador, é simples.

Então é importante separar as coisas com clareza. O déficit urbano em 2006 será de R$ 14 bilhões entre arrecadação e benefício. O rural será de R$ 27 bilhões. Ou seja, é política pública manter a qualidade de vida das pessoas que trabalham no campo, produzem alimentos, etc. Mas isso não pode ser colocado nos ombros do INSS. Essa política social foi criada já na década de 1970 e aprimorada na Constituição de 1988. A Previdência Social administra esse benefício, tem que continuar administrando, nós defendemos isso, mas é importante separar as coisas com clareza para saber a que estamos nos referindo.

Falemos sobre a arrecadação e as renúncias, determinadas pela legislação e pela sociedade. A previdência social resulta de um pacto entre gerações, entre quem contribui e quem recebe. A sociedade define que setor quer incentivar. São políticas públicas que precisam ser conhecidas. Por determinação da LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias], acompanhamos as renúncias fiscais já há muito tempo. O Simples, por exemplo, em 2006 inclui uma renúncia fiscal de cerca de R$ 5 bilhões. As entidades filantrópicas oferecem serviços, temos Santas Casas que têm mais de dois, três séculos, hospitais filantrópicos, entidades assistenciais e outras que prestam relevantes serviços. Isso custa R$ 4 bilhões. E não pode ficar na conta do déficit da previdência, tem de estar no orçamento da saúde. O Prouni, um programa que incorpora 290 mil jovens às universidades de forma gratuita ou pagando meia bolsa, é um ovo de Colombo. É muito importante, mas deveria estar na conta da educação e não na da previdência. Todos sabem que não se pode exportar imposto. Por isso é muito correta a renúncia com relação à exportação rural. Mas custa R$ 1,788 bilhão. E não pode ficar na conta da previdência, mas na de incentivos do Ministério da Fazenda, é uma política definida. A CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira] que eles não pagam custa R$ 200 milhões, e assim por diante. Isso dá R$ 11 bilhões. Além disso, temos outras renúncias que não são especificamente renúncias fiscais, mas facilidades que a legislação criou, como o segurado especial, o empregador rural da pessoa física, o empregador doméstico. Os 20% do empregador mais a parte do empregado seriam 28%. A taxa é de 20%. E agora temos o incentivo do imposto de renda para 2007, voltado à formalização do emprego. Serão mais R$ 6 bilhões.

A arrecadação líquida do setor urbano prevista para 2006 é de R$ 119 bilhões, do setor rural R$ 3,8 bilhões. A soma dá R$ 123 bilhões. A legislação diz que da CPMF arrecadada, que foi criada para a saúde e para a previdência, o valor de 0,1% é específico da previdência e é repassado para ela, só que é incluído na rubrica "necessidade de financiamento". Portanto, é computado no déficit. Se for considerado receita específica, o que é de fato, inclusive na exposição de motivos se dizia que era para ajudar a compor os recursos e financiar a previdência rural, dará R$ 8,5 bilhões.

O déficit é de R$ 41 bilhões, R$ 14 bilhões urbano e R$ 27 bilhões rural. Se computarmos as renúncias fiscais nesses números, o déficit global cai de R$ 41 bilhões para R$ 21 bilhões e o déficit urbano, que é a repartição simples, contributivo por excelência, cai de R$ 14 bilhões para R$ 4,6 bilhões. O rural cai de R$ 27 bilhões para R$ 16 bilhões. Alguém pode dizer: "Você está fazendo mágica em contabilidade, o dinheiro sai de algum lugar". É verdade, a necessidade global de financiamento não muda, mas muda o processo de discussão, que deixa de ser emocional.

De outro lado, vem alguém e diz que o déficit não existe, pelo contrário, há superávit. Se acrescentarmos a Cofins e a contribuição sobre o lucro líquido, que são contribuições sociais, teremos superávit. É uma conversa de surdos. Uma conta adequada seria separar com clareza os benefícios que têm a ver com o sistema atuarial contributivo e suas renúncias. Um déficit de R$ 4,6 bilhões se resolve no curto prazo, no médio, no longo. A discussão se fortalece quando se têm bons números.

Estamos trabalhando na manutenção de uma gestão profissional, pois temos muito a ganhar ainda. É fundamental combater fraudes e desperdícios, se não pela redução do déficit, pelo menos pela seriedade do sistema, que tem de ser público, básico e universal. O crescimento econômico tem condição de fortalecer a previdência com repartição simples, principalmente porque estamos entrando agora num período em que ganhamos um bônus demográfico. Isso significa uma população adulta em idade de trabalhar muito superior à de idade infantil, adolescentes e idosos. Portanto, se o país crescer, resolvemos efetivamente o problema da previdência social.

Medidas de prazo mais curto envolvem uma série de leis no Congresso, que podem ser aprovadas e vão ajudar muito, quanto à questão do auxílio-doença, à unificação da receita, a uma formalização melhor do seguro rural especial, graças a um cadastro do segurado rural, que ainda não temos, o que atrapalha muito a concessão do benefício. A Lei Geral da Micro e Pequena Empresa tem um artigo que cria uma alíquota especial de 11% e não permite aposentadoria por tempo de serviço, só por idade. É algo que busca fazer a inclusão previdenciária de cerca de 15 milhões de trabalhadores que hoje estão na informalidade e ganham acima de um salário mínimo.

Debate

ISAAC JARDANOVSKI – Sobre a eventual modificação na legislação para a concessão dos benefícios, vira e mexe surgem propostas, e há um livro do economista Fabio Giambiagi, com várias sugestões, a maioria delas centralizada na mudança da idade mínima e também na equiparação entre homens e mulheres por causa da longevidade hoje bem mais alta do sexo feminino. Gostaria de conhecer sua opinião.

NELSON MACHADO – As posições que Giambiagi tem defendido são interessantes e a sociedade tem de prestar atenção nisso. Penso que antes de o governo fazer uma proposta concreta sobre idade mínima e tempo de equiparação entre homem e mulher, temos de terminar a lição de casa. É fundamental trabalhar muito fortemente na profissionalização da gestão, tornar claro para a sociedade qual é o tamanho do ajuste, para que ela possa chegar a um novo pacto. A reforma não é uma questão só de governo, é um pacto da sociedade, a quem cabe dizer como é que os trabalhadores atuais vão cuidar de seus progenitores e como queremos que nossos filhos nos tratem no futuro. Temos um longo caminho a percorrer nessa discussão, mas precisamos fazê-lo com novas bases e valores, porque algumas projeções às vezes são um pouco catastrofistas.

NEY PRADO – Nesse pacto entra também a natureza do sistema, passar do atual para o de capitalização?

NELSON MACHADO – A sociedade pode e deve discutir tudo, sem vetos, mas na minha opinião o sistema brasileiro é bom. Um sistema que trabalha com a previdência social pública básica que busca a universalização é necessário diante das profundas desigualdades sociais que temos. De outro lado, uma previdência complementar privada, fechada ou aberta, capaz de administrar recursos de pessoas que são mais bem aquinhoadas e que necessitam de uma renda superior no futuro, também tem seu espaço. Os dois sistemas estão muito bem colocados, mas precisamos no Brasil de uma previdência pública.

ROBERT APPY – Infelizmente, penso que essas reformas não vão resolver o grave problema da previdência, que ameaça não só nosso desenvolvimento como também a possibilidade de respeitar os compromissos que temos com a população. Precisamos estudar seriamente essa questão, senão estaremos perdidos, pois não vamos suportar o déficit da previdência social. Gostaria de saber qual foi a participação do governo na evolução desse déficit, já que aumentou o salário mínimo em 16,6%, o que faz com que os benefícios previstos, que representavam 7,82% do PIB, cheguem a 8,5%. Será que o governo, antes de fazer a reforma, não poderia pelo menos tentar conter o déficit?

NELSON MACHADO – Uma questão importante é o impacto do salário mínimo na economia. Não podemos olhá-lo apenas do lado da despesa, mas também do lado da dinamização econômica. Veja que cerca de 65% dos R$ 165 bilhões pagos pela previdência correspondem a um salário mínimo, o que tem um efeito dinamizador na economia. Quando participei do plano plurianual em 2003, uma das questões era como fazer para que o círculo virtuoso do crescimento da produção tivesse condição de ser repassado para o trabalho. Caso contrário, teríamos sempre acumulação de riqueza, e isso não faz bem ao país.
Uma das questões discutidas era que o salário mínimo tem essa perspectiva. Então, dentro da previdência, o aumento real do salário mínimo é fator de crescimento econômico e distribuição de renda. E não teve um impacto tão grande no déficit como dizem. Lembro novamente que as projeções de déficit no começo de 2006 eram de R$ 50 bilhões e vamos fechar com R$ 42 bilhões no máximo. É possível continuar um forte trabalho de gestão e conter a taxa de crescimento vegetativo dos benefícios. Portanto, sinceramente, não creio que esse tenha sido um problema.

NEY FIGUEIREDO – O senhor demonstra com tranqüilidade e de forma didática que o bicho não é tão feio assim e que o déficit é administrável através das medidas que estão sendo tomadas. O governo Fernando Henrique Cardoso lutou muito, mas não conseguiu aprovar no Congresso a taxação dos aposentados. Lula fez isso logo no início de seu mandato. Qual foi o impacto da contribuição dos aposentados? Houve uma mudança na arrecadação que justificasse tal batalha?

NELSON MACHADO – Efetivamente, quero dizer que o bicho está aí, ele existe, não é tão feio como pintam, nem tão bonito como outras correntes de pensamento afirmam. O que estou tentando passar é uma visão equilibrada, em que se separem os fenômenos para melhor compreendê-los e tratar deles.
Com relação à taxação dos inativos, teve um impacto muito forte no regime dos funcionários públicos, não só nas contas da União, mas também dos estados e municípios. Os estados tiveram que aprovar leis criando os 11%. Isso naturalmente causou prejuízos eleitorais, não há dúvida, certo estremecimento. O presidente Lula faz o que precisa ser feito. Sou funcionário público concursado. Como sou da lei antiga, ao me aposentar terei salário igual ao da ativa, coisa que os que estão entrando agora não terão. Eu não contribuía para a previdência, mas para a pensão. À época achei justo que se aprovasse a contribuição de todos. Isso teve impacto nas contas, e tivemos uma redução de 0,4% a 0,5% do PIB na necessidade de financiamento do setor público.
Quando se fala disso, voltam à discussão as reformas. O presidente Lula, na entrevista que deu ao programa "Roda Viva", disse com clareza: a longevidade está aumentando, as pessoas vivem cada vez mais e melhor, é preciso rediscutir a questão da idade. Mas não deve ser algo imposto de cima para baixo, com base em premissas falsas e inadequadas. Segundo suas palavras, para discutir o assunto vamos convidar os trabalhadores, aposentados, membros do governo, e não vamos fugir dele. Isso terá impacto em nossa vida e na das próximas gerações.

CLÁUDIO CONTADOR – Temos a questão demográfica. Há não só uma queda de natalidade muito acentuada, como se vive mais. Isso significa que há necessidade de uma reforma acelerada, e não apenas social. Até mesmo o sistema privado com base na capitalização já está ultrapassado, porque dentro de alguns anos teremos problemas de novo. Nos anos 2050, mais ou menos, estaremos não mais com a pirâmide normal, mas caminhando para a pirâmide invertida. Isso tornará inevitável reduzir a cobertura de benefícios e mudar a idade mínima para a aposentadoria. Independentemente de todo o esforço do governo, qualquer que seja ele, continuaremos enfrentando desafios, o que significa que, em vez de uma reforma, viveremos um processo dinâmico de mudanças contínuas. Não sei como a sociedade vai entender isso. Na Europa alguns países já estão jogando a toalha. Ou seja, alguém que está entrando em qualquer sistema previdenciário pode ter certeza de que, ao se aposentar, terá de aceitar alguma mudança que não foi compactuada.

NELSON MACHADO – Para fazer essa discussão, precisamos colocar as contas na mesa com clareza. É um debate de longo prazo que não pode ser emocional. E teremos de olhar também, obviamente, para a economia. Tenho muita fé no futuro, sempre fui otimista. O que vai garantir a previdência daqui a 20, 30 ou 40 anos são, obviamente, as decisões que tomamos agora. Desde que haja crescimento da economia, com estabilidade política e paz social. Nós, estudiosos do assunto, temos de dar tratos à bola, criar propostas, dialogar com a sociedade, com os dirigentes empresariais e políticos. A mudança demográfica é clara. Nossa taxa de fecundidade era de 6% ou 7% há menos de duas décadas e estamos agora com 2%, praticamente na linha da reposição da população. A pirâmide, daqui a 20 ou 30 anos, será mesmo um caixote. Para os próximos 20 anos temos um bônus demográfico, uma população muito grande em idade de trabalhar. Portanto, toda a ênfase tem de estar voltada para o mercado de trabalho formal, para a criação de empregos. E para o ajuste nas idades – não há como fugir, já que estamos vivendo mais.

LUIZ GORNSTEIN – Temos duas áreas que crescem no país, que são educação e saúde. Em ambas o crescimento se dá sempre com instituições filantrópicas, especialmente hospitais, que não pagam contribuição patronal. E o mercado de trabalho cresce aleatoriamente, através de cooperativas, etc., pois a lei é muito rígida para empregos formais. Isso tudo deverá impactar, no futuro, as contas da previdência.

NELSON MACHADO – A questão da filantropia é muito interessante, porque está entranhada na cultura e na legislação há décadas, diria até há séculos. Mas é preciso explicitar, porque ela tem de estar ligada às políticas públicas. O Estado pode e deve incentivar este ou aquele setor, determinar que algumas coisas sejam feitas desta ou daquela maneira. Algumas ações realizadas por entidades filantrópicas são muito melhores do que se estivessem nas mãos do Estado. Há entidades que abusam, obviamente, mas existem aquelas sérias, em que as pessoas agem com dedicação e amor. A política tem de manter estas. Estamos, aliás, trabalhando em um novo decreto de regulamentação das filantrópicas, em parceria com o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome e com o Conselho Nacional de Assistência Social. Precisamos simplificar as regras de prestação de contas. Imagine uma Apae [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais] no interior de São Paulo prestando contas complicadas como se fosse um hospital de ponta, que tem contadores e advogados. Temos de separar essas coisas, há entidades pequenas, que trabalham com valores menores.
A filantropia é importantíssima para o país. Mas precisamos separar as contas, não colocar tudo dentro do déficit da previdência.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Se é verdade, e é verdade, que existem entidades filantrópicas que usam de artifícios para gozar da renúncia fiscal, incumbiria às autoridades competentes puni-las. Por outro lado, como o senhor afirmou, as verdadeiras entidades filantrópicas (dou o testemunho da Santa Casa de São Paulo, que caminha para os cinco séculos de existência) não só prestam serviços de forma melhor que o governo, como também oferecem diversos tipos de assistência que este não tem condições de dar. Entretanto, o que não constou da palestra e que é preciso dizer é que, apesar da renúncia fiscal de que goza, uma entidade filantrópica idônea sofre a agressão violenta que é a defasagem da tabela de retribuição do SUS [Sistema Único de Saúde], em valores que nem sequer cobrem o custo dos serviços prestados. Então a Santa Casa presta serviços e, em vez de receber, paga por eles, uma vez que a remuneração só cobre por volta de 50% dos custos.

NELSON MACHADO – Com relação à renúncia fiscal, o governo precisa aprofundar a fiscalização sobre as entidades, filantrópicas ou não. Estamos fazendo isso no âmbito do Ministério da Previdência e temos um longo caminho a percorrer. Quanto à tabela do SUS, essa é uma discussão que preferia fosse feita por Agenor Álvares, ministro da Saúde. A Previdência Social não tem poder sobre isso. Pelo que me lembro, tivemos nos últimos anos alguns reajustamentos, mas a tabela está achatada há décadas e eles talvez não tenham sido suficientes; não me considero competente, no entanto, para discutir esse assunto.

LENINA POMERANZ – Por acaso, minha faxineira quebrou o punho, e a acompanhei e acompanho ao hospital, onde pude observar determinadas coisas que têm a ver com o que foi dito aqui. Nesse hospital não se dá alta, e por princípio. Fico com ela na fila das seis às oito horas para esperar uma senha e então ouço as conversas. Um rapaz atrás de mim diz que precisava só de um documento que atestasse que é deficiente, porque tem uma perna um pouco mais curta que a outra. O médico que o atende pede que volte mais duas vezes antes de assinar o documento. É a forma de ressarcir-se do baixo valor pago por cada atendimento. A cada 15 dias que minha faxineira vai ao hospital, preenche uma ficha, o que significa que cada vez que comparece é cobrado um procedimento. Como não dão alta, as pessoas continuam voltando por conta de uma operação da perna ou coisa que o valha, durante seis, oito meses. É a reação das instituições pouco sérias que resolvem se ressarcir do baixo preço pago pelo SUS. Como economista, queria indagar se não valeria a pena fazer uma relação benefício-custo, para ver se, aumentando o valor dos pagamentos do SUS, não se reduziria o número de fraudes.

NELSON MACHADO – No passado, saúde e previdência eram juntas. Depois, com a Constituição de 1988 e a criação do SUS, isso foi separado. Do ponto de vista da previdência, identificamos muitas vezes, além de casos como o que você apresentou, situações em que o trabalhador demora dois, três, quatro meses para ter o tratamento cirúrgico de que precisa para poder retornar ao trabalho. Com isso ele fica, obviamente, pesando nas contas da previdência, mas, mais do que isso, onerando as contas da sociedade. Precisamos melhorar, não juntar, pois não vale a pena, a integração entre saúde e saúde do trabalho.

EDUARDO SILVA – Não seria possível definir, ou separar muito claramente, o que é aposentadoria, o que é benefício e o que é tratamento de saúde?

NELSON MACHADO – A dificuldade que existe na prestação de contas é que o orçamento é rígido, confuso, complicado. Estudo essa questão há tempos, e permito-me contar uma historinha. Quando cheguei ao governo em 2003, não me conformava com a Lei de Diretrizes Orçamentárias, que tinha mais de cem artigos. Uma lei como essa existe para dar diretrizes, não para ficar regulando as coisas, como o direito financeiro e orçamentário. Foi quando propus fazer uma lei mais enxuta. Chamei as lideranças do Congresso, os técnicos da Fazenda e do Planejamento, e apresentei a idéia. Todos concordaram e iniciamos o processo de discussão da LDO. Quando terminamos o debate, a lei tinha 15 artigos a mais do que quando começamos.

NEY PRADO – Foi dito aqui que o objetivo do sistema é a inclusão social. Isso significa que o governo deve ter os meios para poder levar adiante esse intento. Falou-se também, e muito bem, que o governo existe para processar as demandas através de políticas públicas que precisam ter eficácia. E se afirmou que a peça orçamentária, que deveria ser enxuta, acabou nesse trabalho interno se tornando ainda mais longa que a anterior. A Constituição deu um tiro no pé do governo e não tem condições de oferecer soluções em nenhum dos campos da seguridade social. Eu explico o porquê. Existem dois tipos de Constituição tradicionalmente: a sintética, que se fixa em princípios e é enxuta, e a analítica. A nossa, casuística, se tornou uma Constituição dirigente. Ela não estabelece apenas a norma, mas obriga e fixa políticas públicas. Como foi muito generosa, é um catálogo de ilusões. Todas as vezes em que o agente público tenta levar adiante alguma política eficaz, esbarra nos parâmetros rígidos e engessadores da Carta. Então, se não fizermos uma lipoaspiração no texto constitucional, os agentes públicos terão grandes dificuldades de implementar as políticas públicas.

ADIB JATENE – Há países que não têm previdência social, não fazem nenhuma provisão para esse fim. A arrecadação compulsória não é para a previdência, mas para a saúde, e o sistema funciona. No Brasil, tínhamos uma arrecadação compulsória que era para a previdência e para a saúde, e o superintendente regional nos estados tinha mais poder que o secretário estadual, porque seu orçamento era maior e respondia pelo atendimento médico-hospitalar ambulatorial. Vejamos qual foi a perda. O INPS [Instituto Nacional de Previdência Social, que daria lugar, a partir de 1990, ao INSS] estabelecia para consulta médica o valor de seis unidades, correspondendo cada unidade a 1% do salário mínimo. Em números de hoje, 1% é R$ 3,50, seis unidades são R$ 19,50, e esse seria o preço de uma consulta simples. Consulta que hoje vale R$ 3,50.
Em 1990, a contribuição que a previdência dava para a saúde foi rebaixada. E em 1993, com o ministro Antônio Britto, foi retirada integralmente, ficando todos os recursos para a previdência, que não consegue fechar suas contas. Hoje, a previdência dá para a saúde apenas a renúncia fiscal, nada mais. Só que o maior gasto da saúde é com os aposentados, e a saúde não consegue vincular recursos em quantidade suficiente. Porque a área econômica acredita que vinculação é palavrão, engessa o orçamento. Então é uma encrenca. Como é que o senhor imagina que poderíamos evoluir dentro da previdência e da saúde?

NEY PRADO – Pergunto também como é que podemos, num país parco em recursos como o nosso, universalizar o atendimento à saúde, que é um preceito constitucional.

NELSON MACHADO – Essa é uma coisa de que sou a favor. Na cidade de São Paulo há 39 distritos com 4 milhões de habitantes onde não há um só leito hospitalar. Temos de pensar nisso, atender essas pessoas de um jeito ou de outro. Enquanto isso, há uma concentração enorme de renda e pessoas que vivem como se estivéssemos em um país com renda per capita de US$ 50 mil.

NEY PRADO – O atendimento deve ser compatível com os recursos do país. O que acontece é que hoje o Poder Judiciário, com base na Constituição, aprova uma liminar que favorece um indivíduo que, embriagado, foi atropelado na rua, e precisa de uma prótese de bacia, importada, que custa US$ 20 mil a US$ 30 mil. O governo é obrigado a cumprir a liminar.

NELSON MACHADO – Quando fiz minha tese de doutorado, estudei os orçamentos de vários países do mundo e fiquei muito impressionado com o trabalho de um americano que dizia que o orçamento é resultante da luta entre os guardiões e os gastadores. Os gastadores são os ministérios que estão próximos das políticas públicas, o pessoal da educação, da saúde, que vê o problema, sente a necessidade e briga pelos recursos para universalizar a saúde e a educação, cuidar das crianças, dos velhos, manter as estradas. Do outro lado, estão os guardiões do Tesouro, o pessoal que fica na porta do cofre, cuidando do déficit, procurando aumentar a receita. O equilíbrio entre os dois otimizaria os recursos da sociedade.
Há uma esquizofrenia fortíssima no país, que obviamente não vamos resolver somente a partir da previdência ou da saúde, mas da sociedade como um todo. Temos uma carga tributária significativa, que, quando comparada com a de outros países, fica muito maior porque colocamos a previdência dentro dela, e lá não fazem isso. De outro lado, temos um PIB em que uma parcela significativa da economia não aparece, e temos alíquotas altas que induzem à sonegação. O que precisamos é de uma discussão clara entre os empresários, setor público, políticos, etc., para caminhar para a legalização da economia informal, aumentar a base de contribuição, reduzir as alíquotas. E assim ampliar a contribuição, chegando a uma maior arrecadação. A pedra de toque é reduzir a tremenda desigualdade da sociedade brasileira. A Constituição é excessiva, normativa, etc., por quê? Porque todos quiseram garantir seus direitos, e nossa sociedade é muito desigual. Penso que o caminho para melhorar o país passa por conseguirmos garantir um mínimo de renda para todos os brasileiros, incorporando milhões ao mercado de trabalho e de consumo e à cidadania.

SAMUEL PFROMM NETTO – Como simples cidadão, neste ano de 2006 fui a várias agências do INSS em São Paulo, por razões particulares. Essas sofridas idas e vindas me deram uma boa medida dos percalços que vive aquele que é obrigado a recorrer à previdência social. Eu me vi aturdido, frustrado e irritado com informações contraditórias, indiferença e frieza que testemunhei em relação à fragilidade, sofrimento e vulnerabilidade de muita gente que busca esses postos. Testemunhei demoras inexplicáveis, desobediência ao princípio do atendimento preferencial que deve ser dado ao doente, ao idoso, à gestante, etc., pessoas obrigadas a permanecer em pé e por longo tempo. Em um só dia, me vi obrigado a deslocar-me, por força de informações erradas, de um posto para outro, um vaivém absurdo, surrealista. Constatar com os próprios olhos que existe uma máquina burocrática mais ou menos emperrada, confusa e indiferente em relação às agruras que sofre o cidadão comum deixa bastante claro que há muito o que fazer para melhorar os padrões de atendimento na previdência social.

NELSON MACHADO – Não quis afirmar que o mundo é cor-de-rosa, mas colocar o que está sendo feito e o resultado que já temos. Fizemos a medida das filas. Havia mais de 80 pessoas em dezembro de 2005. Hoje esse número caiu para a casa dos 30. É evidente que não é uma maravilha, e que temos, ainda, problemas de cadastramento, de uniformização de procedimentos. A previdência sempre foi tratada de maneira regional, fragmentada.
O que estamos fazendo é algo básico, estamos criando uma organização verdadeiramente nacional e com foco em um único produto. Quando assumi o ministério, já tinha a proposta de retirar a fiscalização de dentro da previdência. Nosso produto é o atendimento. Agora estamos uniformizando os procedimentos, porque às vezes na Bahia há uma interpretação diferente da que existe no Rio Grande do Sul, etc. Estamos criando em São Paulo uma unidade que vai resolver essa questão do auxílio-doença. Adotamos o agendamento eletrônico, que já pode ser feito a distância. A partir do final de 2006 ou início de 2007 vamos ter uma agência específica para atendimento médico, separando com clareza duas coisas muito distintas: aposentadoria e pensão, que são benefício permanente, e salário-maternidade, auxílio-doença, etc., que compõem o benefício temporário. Isso estará separado, porque a clientela é diferente.
É claro que os resultados de uma empreitada como essa não surgem em seis meses, mas já estão aparecendo e tenho convicção de que dentro de mais algum tempo a saga que o senhor relatou será coisa do passado.

 

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