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A dura vida do inventor brasileiro

Boas idéias há de sobra, mas falta inventar mais apoio e menos burocracia

MIGUEL NÍTOLO


Therezinha e seu lava-arroz / Foto: Célia Thomé

Faça você mesmo uma experiência. Peça a alguém para listar inventos e inventores brasileiros marcantes, uma tarefa pouco complicada para pessoas com algum conhecimento da história nacional. Invariavelmente, a relação começará por Santos Dumont, o Pai da Aviação. E avançará com a citação de alguns outros nomes, mas, como acontece em boa parte dos casos, irá pouco além ou então se limitará ao criador do 14-Bis. Ou, quem sabe, incluirá o padre paraibano Francisco João de Azevedo, que idealizou pioneiramente uma máquina de escrever em madeira e recebeu, pela engenhosidade, uma medalha de ouro das mãos de dom Pedro II. Isso foi em 1861. O invento de Azevedo, infelizmente, não saiu do papel, tendo sido atropelado pelo lançamento de uma máquina de escrever nos Estados Unidos, 12 anos mais tarde. É certo que o Brasil está longe das nações mais desenvolvidas nesse quesito, pois grandes invenções foram e continuam sendo gestadas lá fora. Isso não significa, entretanto, que somos menos criativos ou não alimentamos afeição pela inovação.

Os conterrâneos de Dumont são tão engenhosos quanto os mais criativos dos povos. A questão é que somos uma nação repleta de problemas e sujeita a uma série infindável de obstáculos que atravanca seus passos, inibe seu crescimento e, por isso mesmo, torna as coisas difíceis para basicamente todos os empreendedores, em especial aqueles que querem viver de inventar. Pior: a categoria não mereceu até aqui o mesmo reconhecimento que lhe é devotado no exterior. É comum que o inventor isolado – que trabalha só, longe dos institutos tecnológicos e departamentos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) das grandes empresas, muitas vezes confinado em uma garagem ou um quartinho apertado no fundo do quintal – seja, vez por outra, taxado de "cientista louco", rótulo preconceituoso que não merece. Isso quando não lhe é atribuído o apelido de Professor Pardal, numa referência ao personagem de histórias em quadrinhos criado em 1952 por Carl Barks para os estúdios Disney. "É mais fácil pichar do que apoiar", reclama Wagner José Fafá Borges, criador do Salão do Inventor Brasileiro e atuante no ramo de marcas e patentes no Espírito Santo. É certo que algumas invenções extravagantes podem induzir a esse tipo de comportamento, mas elas são pouco representativas.

A vida dessa gente não é fácil. "Podemos dar vários nomes às pedras colocadas no caminho do inventor, mas prefiro destacar apenas um: a falta de uma cultura de propriedade industrial", diz Antonio Carlos Souza de Abrantes, examinador de patentes na área de eletrônica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). "O inventor deve proteger sua invenção, sempre", afirma. Abrantes fala com a autoridade de quem é apaixonado pelo assunto. E não apenas pelo fato de trabalhar no órgão máximo do setor no país. Ele criou, anos atrás, um site (www.inventabrasilnet.t5.com.br) para discorrer sobre os grandes inventos e inventores brasileiros, falar de histórias de sucesso e dar esclarecimentos sobre patentes.

Ele conta que assim que chegou ao Inpi, oito anos atrás, deparou-se com muitas histórias de invenções famosas, "um acervo de conhecimento que, pensei, tinha de ser registrado em lugar apropriado de forma que as pessoas pudessem acessá-lo". Abrantes comenta que muitas dessas histórias acabam caindo no esquecimento, arquivadas em meio a milhões de outras patentes, gerando uma idéia negativa: a de que no país nada se produz de tecnologicamente criativo e viável – o que, por sua vez, enseja certa intolerância em relação ao inventor nacional. "É notório o desconhecimento pelo grande público das invenções de brasileiros, o que dá origem ao desestímulo: se não há casos de invenções bem-sucedidas, então por que eu haverei de ser um inventor/cientista?", ele observa, preocupado com o destino do segmento no Brasil.

O técnico do Inpi informa que dados de 2004 da Organização Mundial da Propriedade Industrial mostram que o número de depósitos de patentes de residentes no Brasil é de apenas 21 para cada milhão de habitantes, contra, por exemplo, 2.884 do Japão, 2.189 da Coréia e 645 dos Estados Unidos. "O brasileiro pode ser criativo e inovador, mas ainda cultiva o péssimo hábito de não patentear seus inventos, uns em razão da falta de informação, outros em função da escassez de recursos", assevera o espírito-santense Fafá Borges. Ou, como lembra Carlos Mazzei, fundador e presidente da Associação Nacional dos Inventores (ANI), boa parcela dos inventores não deposita crédito em suas idéias. "Nem sempre eles acreditam no potencial de seus inventos", comenta. Mazzei afirma também que essa descrença pode levar o inventor a cometer a imprudência de não proteger juridicamente sua idéia. "Veja o que aconteceu com Santos Dumont, que não se preocupava em resguardar os direitos sobre suas invenções." Mazzei refere-se ao fato de que o mundo aprendeu a saudar os irmãos Wilbur e Orville Wright pela façanha de, pela primeira vez, conseguir realizar o vôo do mais pesado que o ar. Americanos, eles também vinham fazendo pesquisas no campo da aviação. Suas experiências pioneiras, porém, aconteceram em segredo, para garantir o registro da patente, e seu primeiro vôo, ocorrido em 1903, foi reconhecido retrospectivamente, graças a uma fotografia e ao depoimento de algumas testemunhas.

No livro O Que Eu Vi e o Que Nós Veremos, Dumont escreveu que não queria tirar em nada o mérito dos irmãos Wright, "por quem tenho a maior admiração. Mas é inegável que, só depois de nós, se apresentaram eles com um aparelho superior aos nossos, dizendo que era cópia de um que tinham construído antes dos nossos. A quem a humanidade deve a navegação aérea pelo mais pesado que o ar?", questionou.

Exemplos de sucesso

Milhares de inventores brasileiros não tomam o devido cuidado com o registro de suas idéias. O caso mais famoso é justamente o de Santos Dumont, que acreditava que sua invenção deveria favorecer, sem restrições, a toda a humanidade. Muitos outros, porém, preferem ser mais cautelosos. Por isso e apesar de todos os tropeços são numerosos os exemplos de pessoas que tiveram êxito porque souberam valorizar suas criações. Dois deles são sempre lembrados pelos experts porque viraram enorme sucesso de mercado: o Sterilair, aparelho que elimina fungo, mofo, ácaros e microrganismos nocivos à saúde, e o lava-arroz, utensílio de plástico que facilita o trabalho da dona de casa. O Sterilair foi inventado pelo físico Alintor Fiorenzano, nos anos 1980, e o lava-arroz pela dentista Therezinha Beatriz Alves de Andrade Zorowich, no final da década de 1950. O bom da história é que as novidades continuam brotando. São os casos do Pinga Colírio, criado pelo oftalmologista César Augusto Lizcano (faz com que o medicamento seja corretamente aplicado a uma distância ideal do globo ocular, sendo, portanto, adequadamente absorvido pelo organismo), do tarifador de ligações telefônicas, desenvolvido por Wirla Pontes e que tem a propriedade de fornecer o valor da ligação assim que ela é ultimada, e da embalagem de pizza que dispensa o serviço de mesa e foi imaginada pelo arquiteto Ricardo Cukierman, dono de pizzaria em São Paulo. "De tanto ver as pessoas rasgarem a embalagem para apoiar os pedaços veio a idéia de fazer picotes nas tampas", conta o inventor. "Destacado, cada um dos recortes da caixa (que têm a mesma conformação das porções da pizza embalada) pode substituir prato e talheres." Cukierman comenta que sua invenção é ideal para festas em casa e no escritório. Lizcano, Wirla Pontes e Cukierman integram os quadros da ANI, associação que deu vida, anos atrás, ao Museu Contemporâneo das Invenções, aberto à visitação pública e dono de um acervo de mais de 300 inventos.

A embalagem picotada de Cukierman comprova o que todos os especialistas afirmam: a necessidade é a mãe da quase totalidade dos inventos. "Eles normalmente são frutos de uma imposição ou de uma situação de pressão", afirma Dalva Lúcia Maffia, diretora do Serviço Estadual de Assistência aos Inventores (Sedai), da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo. Dalva está no setor desde 1971, quando assumiu pela primeira vez o comando da entidade. O Sedai foi fundado em 1952, inspirado nos bons serviços prestados por institutos similares criados por americanos e ingleses com o propósito de viabilizar o uso pela sociedade das invenções elaboradas durante a 2ª Guerra Mundial. O órgão tem hoje apenas dois funcionários (Dalva e uma secretária), mas no passado exerceu papel de destaque como incentivador do invento nacional. "Chegamos a empregar 85 pessoas, das quais 15 eram engenheiros, quatro advogados e dois economistas." Dalva recorda que, nos anos 1980, o Sedai respondia pelo acompanhamento e entrada de 50% dos pedidos nacionais de marcas e patentes no Inpi. "Era um tempo em que escrevíamos a patente, enfim, dávamos total apoio ao inventor, fosse ele de São Paulo ou de fora do Estado", ressalta. Uma das premissas que levou à criação do Sedai consistia em fornecer integral atendimento às universidades públicas paulistas. Mas, assim que elas foram ganhando estrutura própria no campo de propriedade industrial e inovação, ele foi perdendo terreno. E acabou entrando na tesoura da política de cortes de gastos do governo. Atualmente, o órgão comandado por Dalva faz o acompanhamento de 400 pedidos e patentes concedidas, "parte dos quais foi escrita por nós", ela completa. "Hoje, limitamos nosso trabalho a orientar o inventor a fazer a busca de anterioridade no banco de patentes do Inpi e a redigir o pedido. E cumprimos alguns trâmites naquele instituto, tais como solicitação de exame técnico, pagamento de anuidades, cumprimento de exigências, etc."

Mas será que apenas a falta de prudência no tocante ao pedido de patentes explica o fato de o Brasil se achar mal posicionado no ranking internacional de inventores? "Não. É que, além da falta de uma cultura de propriedade industrial, temos outro gargalo, representado pelo baixo nível de educação da população", sustenta Abrantes, do Inpi. "De acordo com o Banco Mundial, o brasileiro estuda em média cinco anos, contra nove do argentino, dez da população da maioria dos países desenvolvidos e 11 do coreano. Infelizmente, a maior parte dos brasileiros abandona a escola ainda na infância, especialmente por causa da repetência, que atinge a taxa inacreditável de 21% dos alunos matriculados", lastima o examinador do Inpi. Para mostrar a diferença entre o ensino no Brasil e o de nações mais cuidadosas com a educação, ele relata o caso das linhas de produção locais de uma multinacional do setor eletrônico, capacitadas a montar nove celulares por hora. "As linhas de manufatura no país de origem do fabricante produzem 15 aparelhos por hora, quase 70% a mais. As duas unidades contam com equipamentos idênticos e igual número de funcionários, teoricamente dotados do mesmo nível de formação escolar, o ensino médio completo." A explicação para essa disparidade, segundo o examinador do Inpi, reside no fato de que "o operário no país da multinacional foi educado por um excelente sistema de ensino público, ao passo que nosso trabalhador..."

História antiga

Um amontoado de fatores, portanto, conspira contra a invenção brasileira. Os inventores dizem que não têm apoio governamental, se assustam com a burocracia e, talvez por isso, grande parte das idéias acaba ficando pelo caminho. Na realidade, muita gente não sabe por onde começar. Não bastasse isso, há pessoas que têm medo de ser ridicularizadas, se dizem desamparadas e preferem manter seus inventos no anonimato. Essa é uma história antiga. "Minhas pobres invenções definham, morrem crestadas pela indiferença e por minha falta de jeito", lastimou-se em carta a um jornal do Recife o padre Azevedo, em 1875, chateado, dentre outras coisas, por não ter encontrado amparo para a sua máquina de escrever. "É demasiado delicada a vida de um inventor isolado se lhe falta apoio", afirma Mazzei, da ANI. Ele diz que no Brasil operam mais de 500 escritórios de marcas e patentes, empresas especializadas em fazer o registro de inventos no Inpi, mas que apenas isso não basta. É preciso mais, pois há sempre o risco de a patente acabar esquecida nos arquivos daquele órgão estatal, sem ganhar as ruas. "A maior parte dos depósitos de patentes, em qualquer país do mundo, não se transforma em realidade de mercado", comenta Abrantes, o examinador do Inpi. E isso por uma série de razões. Primeiro, o indivíduo fica transtornado só de imaginar o tempo que vai ter de esperar para meter as mãos na patente definitiva (pode chegar até a nove anos); depois, se assusta com os valores que teria de desembolsar caso assumisse a responsabilidade pela viabilização industrial e comercial de seu invento.

É nesse ponto que o clamor pela falta de apoio ganha maior dimensão. A bem da verdade, não é costumeiro o caso de inventores isolados que chegam sozinhos com suas idéias ao mercado. "Eu poderia citar como exemplo de inventor-empresário o paulista Arnaldo Rojek, de Jundiaí, criador da tampa Abre Fácil, presente em diversas latas de conservas", conta Abrantes. "Rojek fez grandes conquistas. Uma delas resultou na montagem, em 1963, da Metalgráfica Rojek, que hoje emprega centenas de pessoas." Mas o que é melhor para o inventor, fabricar ou licenciar? "Nem todo inventor tem vocação ou é senhor da habilidade exigida dos empresários", diz Abrantes. "Quase sempre a melhor saída é o licenciamento", assevera. Fafá Borges, do Salão do Inventor Brasileiro, comunga do mesmo raciocínio: "Na maior parte dos casos aconselho o licenciamento. É uma maneira de o inventor dar asas a um sonho sem ter de comprometer o dinheiro de sua subsistência. O caminho é fazer parceria com o empresário. Será que o inventor tem condições de produzir, embalar e até vender o resultado de sua criatividade? Isso é muito difícil numa economia globalizada".

Foi pensando assim que a dentista Therezinha Beatriz, depois de patentear seu lava-arroz, licenciou-o para uso comercial à Trol, então uma indústria de brinquedos e utilidades domésticas estabelecida em solo paulista. "O inventor nem sempre tem o dom comercial para tocar sozinho uma empreitada desse porte", diz Mazzei, da associação dos inventores. Ele explica que um dos papéis da ANI é tratar da aquisição de direitos autorais e fazer protótipos físico e computadorizado do projeto de seus clientes, oferecendo-o ao segmento empresarial. "Além disso, prestamos serviço de assessoria de imprensa para divulgá-lo na mídia", destaca o fundador da entidade. É o tipo de assistência de que o engenheiro de projetos Nelson Shinzato mais precisa para tornar realidade seu passador de fio dental, dispositivo que auxilia na limpeza dos dentes e cuja patente foi requerida em janeiro. "Já estou trabalhando em um novo invento", confidenciou à reportagem de Problemas Brasileiros.

Se tiver sorte e seu produto agradar, a ponto de despertar o interesse da indústria, o engenho de Shinzato poderá um dia, quem sabe, seguir a trilha do "Duro na Fronteira", jogo criado pelo jornalista André Zatz e pelo arquiteto Sérgio Halaban, e que foi inspirado no vaivém dos sacoleiros que cruzam a fronteira para fazer compras no Paraguai. Recentemente lançado na Alemanha pela Kosmos, uma das maiores editoras de jogos da Europa, transformou-se rapidamente num sucesso de público e de crítica. Sócio de Halaban na empresa SB Jogos, Zatz – que na verdade não se considera um inventor, mas mais propriamente um criador de jogos – revela que no ano que vem a dupla terá pela primeira vez um jogo fabricado nos Estados Unidos. Será produzido em inglês, alemão, francês e holandês e comercializado em diversos países.

Outra criação brasileira que encontrou espaço no mercado externo foi o Abre Fácil. A internacionalização começou com a adoção do sistema, no Brasil, por multinacionais como a Unilever e a Nestlé. A gigante americana da área de embalagens Silgan Containers foi além: licenciou a tecnologia da brasileira Rojek nos Estados Unidos, batizando o produto de Dop Top.

 

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