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“Literatura não é uma missão”

Para o escritor Milton Hatoum, no Brasil faltam creches e bibliotecas

CARLOS JULIANO BARROS


Milton Hatoum / Foto: André Campos

Vencedor do Prêmio Jabuti de 2006, o mais aclamado concurso literário do país, com o romance Cinzas do Norte, Milton Hatoum é considerado pela crítica especializada um dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade. Com mais de 60 mil exemplares vendidos, traduzido para quase uma dezena de idiomas, Hatoum é também um campeão de vendas no mercado editorial nacional. Nascido e criado em Manaus, onde deu aulas de literatura na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), há sete anos vive em São Paulo, cidade onde já havia morado quando se graduou em arquitetura, na década de 1970. A ascendência libanesa e as origens amazônicas são referências que permeiam e singularizam sua obra. Relato de um Certo Oriente (1989), Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005) são leituras obrigatórias para quem deseja conhecer a paisagem e os tipos sociais da região norte, onde se ambientam os dramas familiares e existenciais que marcam suas narrativas.

Problemas Brasileiros Você se formou em arquitetura, mas a literatura sempre falou mais alto?
Milton Hatoum – Fui influenciado desde muito cedo a cursar arquitetura, porque tenho um tio que é engenheiro arquiteto, e também porque gostava de desenhar, de imaginar espaços. Queria fazer arquitetura para ter uma profissão. Era impossível imaginar a carreira de escritor em um país como o Brasil. Arquitetura é um curso que atrai muito os desnorteados. Jovens que gostam de artes, mas que não vão ser artistas plásticos, nem atores, nem músicos, nem escritores. Então, a arquitetura é uma espécie de Meca para aqueles que não sabem direito o que vão fazer da vida.

PB Você falou que não imaginava viver de literatura. Mas, no fundo, esse era um plano que cultivava?
Hatoum – Comecei a gostar de literatura e de escrever quando morei em Brasília, em 1968. Saí de Manaus, em dezembro de 1967, e fiz uma espécie de minivestibular para entrar no Colégio de Aplicação, da Universidade de Brasília. Foi lá que comecei a ler de forma mais disciplinada. Mas eu já havia estudado em um bom colégio público em Manaus, o Pedro II, e já tinha lido bons livros. Isso foi importante na minha formação. Na USP [Universidade de São Paulo], quando estudava arquitetura, freqüentei algumas disciplinas de literatura, e tive grandes professores como Davi Arrigucci Jr., Alfredo Bosi, o saudoso João Alexandre Barbosa. Fiquei amigo deles, tanto que Davi escreveu a orelha do meu primeiro romance. Quando me formei, em 1977, trabalhei com jornalismo, fui colaborador da "IstoÉ". Dei aula de história da arquitetura, em Taubaté, fiz até alguns projetos, mas percebi que não queria ser uma pessoa com duas profissões. Até que com Dois Irmãos vim para São Paulo. Terminei o romance aqui, ele foi traduzido para vários idiomas. Comecei a dar cursos, a publicar na revista "EntreLivros", em que tenho uma coluna mensal. Também assino uma crônica no site "Terra Magazine". Hoje, vivo de direitos autorais e atividades ligadas à literatura.

PB Você pode ser considerado uma feliz exceção no meio literário nacional, por conseguir sobreviver de literatura. Você é defensor da profissionalização do escritor? Que medidas podem ser tomadas nesse sentido?
Hatoum
– Sou a favor porque vivo disso. Mas não dependo do governo para viver de literatura. Hoje, por exemplo, não vejo razão para ganhar uma bolsa do governo para escrever. Porém, acho que há muitos jovens que têm talento, mas não têm tempo. Ora, se o Ministério da Cultura subvenciona em parte o cinema, o teatro, a dança, a música, por que não a literatura? É uma forma de estimular os jovens. Em 1988, ganhei uma bolsa para fazer Dois Irmãos que me ajudou muito. Tive tempo para pesquisar e viajar pelo interior do Amazonas.

PB E as editoras, as empresas? Elas não poderiam dar mais apoio à literatura?
Hatoum
– Acho que sim. Mas no Brasil, infelizmente, a filantropia e o mecenato são muito tímidos. Se eu fosse um escritor americano ou europeu, estaria rico. Criaria uma bolsa para jovens escritores ou já teria construído várias creches na periferia de Manaus para mulheres pobres que não têm com quem deixar seus filhos. Nos Estados Unidos e na Europa, quem ganha prêmios literários importantes tem um público grande. Várias empresas poderiam premiar jovens escritores, ou mesmo escritores que já publicaram. Isso no Brasil é triste. Aliás, o Sesc é uma das exceções. Mas para um país da dimensão do Brasil ainda é muito pouco.

PB Você aproveita experiências pessoais nos seus livros? Dos seus três romances, existe algum que fale com mais profundidade sobre Milton Hatoum?
Hatoum – Os traços da vida pessoal existem sempre, mas estão disfarçados nos livros, não aparecem de forma ostensiva. Eu não poderia falar e escrever sobre coisas totalmente alheias à minha vida. Porém, o que é de fato autobiográfico é trabalhado, inventado, adquire nova tintura. É muito difícil encontrar uma correspondência direta entre vida e obra porque a linguagem transcende e reinventa o real. Mas a realidade é sempre um ponto de partida. Cinzas do Norte, nesse sentido, talvez seja o meu romance mais autobiográfico, em que expus o drama moral de uma geração – a minha geração.

PB As referências à Amazônia e à cultura árabe são matérias-primas básicas dos seus romances. No entanto, você vive há um bom tempo em São Paulo e já morou em cidades da Europa e dos Estados Unidos. É possível imaginar um livro seu com outros cenários, ambientado, por exemplo, em uma grande metrópole?
Hatoum – Tudo é possível. Já tenho uma vida em São Paulo, ao todo são 17 anos. São Paulo é uma cidade familiar para mim, mas ainda tenho muita coisa para tirar do meu passado amazônico. Enquanto isso não se esgotar completamente, minha obra vai ficar por lá mesmo – e não vejo nenhum problema nisso. Já escrevi contos que se passam em Paris e no Rio de Janeiro. Há outros contos inéditos que não são ambientados em Manaus. E trechos em Dois Irmãos e Cinzas do Norte que se passam em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Inglaterra e na Alemanha.

PB Esse distanciamento de Manaus permite a você uma análise mais rica do seu passado na Amazônia?
Hatoum – A distância espacial e temporal estimula mais ainda. Parece dar mais liberdade para inventar. Foi importante ter saído de Manaus para escrever Dois Irmãos e Cinzas do Norte. Porém, às vezes, sinto necessidade de voltar para respirar aquele mormaço, como se fosse uma espécie de elixir para a alma e para a imaginação. Porque os desastres e os traumas estão lá. E a gente escreve sobre isso. A gente não escreve para dignificar nada, nem para consertar o mundo. Literatura é uma espécie de cisão, de ruptura com o mundo. Quanto mais escabroso for o seu mundo, mais literária será a sua visão sobre ele. Literatura não é uma missão nem uma redenção.

PB Você já afirmou em outras entrevistas que sua produção não se enquadra no que se convencionou chamar de "regionalismo" – considerando, inclusive, essa corrente uma espécie de camisa-de-força. Porém, não se pode ignorar a força que o ambiente amazônico imprime à sua obra.
Hatoum – O regionalismo trabalha com elementos limitados, é circunscrito a uma geografia e a uma inflexão de voz muito específicas. Se o romance for apenas um inventário de paisagens e valores locais, ele não dá um salto. Entretanto, alguns dos grandes romances brasileiros escritos no nordeste, por erro, foram chamados de regionalistas. Vidas Secas não é regionalista. Nada na obra do Graciliano Ramos é, nem na de José Lins do Rego. Nem em Jorge Amado. Aqueles personagens são baianos e universais, tanto que são lidos no mundo todo. O regionalismo pode ser até mesmo uma terminologia preconceituosa da metrópole em relação aos escritores de outras regiões. O Brasil é o único país do mundo em que ouço falar de regionalismo e romance urbano. Acho que é um vício muito arraigado na nossa mentalidade, talvez pelo fato de o país ser muito grande. O maior escritor americano do século 20, William Faulkner, só escreveu sobre o sul dos Estados Unidos. Ele criou uma literatura inovadora, poderosa, mas nunca foi tachado de regionalista.

PB – No seu mais recente romance, Cinzas do Norte, a tensão entre pai e filho, capital e arte, liberdade e repressão, enfim, domina a atmosfera da trama do começo ao fim. Essa preocupação libertária é essencial em sua produção?
Hatoum
– Pode ser. Em todos os livros, os narradores são personagens que de alguma forma foram sufocados, humilhados, emparedados pelas circunstâncias sociais e familiares. O narrador de Cinzas do Norte é um órfão, o de Relato de um Certo Oriente é uma mulher que enlouqueceu e voltou a Manaus para fazer um acerto de contas com o passado. Em Dois Irmãos, o narrador não sabe quem é seu pai. Então, acho que essa busca de uma identidade, de uma liberdade, é comum aos três livros. É sempre uma situação opressiva, um personagem que se sente de certa forma acuado, e que tenta se libertar através das palavras.

PB – O grande escritor argentino Jorge Luis Borges dizia que, depois dos russos do século 19, os escritores perderam a capacidade de criar grandes aventuras e se focaram demais na subjetividade. O que você pensa disso?
Hatoum
– O romance de aventuras, que Borges menciona, é uma das narrativas mais difíceis de serem construídas, porque tudo tem de ser pensado em função dos detalhes da trama. O Mario Vargas Llosa tem grandes romances que podem ser considerados de aventura, como A Casa Verde. Acho que o romance psicológico é mais raro hoje em dia. O que tento fazer é uma mescla do romance de aventuras com o psicológico. E isso devo muito a Joseph Conrad. É um escritor que, para mim, sintetizou esses dois lados da narrativa, combinando peripécias com estados da alma.

PB – O intervalo entre Relato de um Certo Oriente e Dois Irmãos é de mais de dez anos. Cinzas do Norte, por sua vez, saiu cinco anos depois de Dois Irmãos. Como sua literatura se relaciona com o tempo?
Hatoum
– Simplesmente não consegui publicar outras coisas. Não gostei do que escrevi. Poderia ter publicado cinco ou seis livros, mas já existe tanto livro por aí... Nesse ponto, acho que sou um ecologista radical. Eu não tenho um pingo de pressa, para nada.

PB – Você já jogou fora algum livro inteiro?
Hatoum
– Vários, sem a menor pena.

PB – E pressão de editor? Você já enfrentou?
Hatoum –
Nunca fui pressionado pelo meu editor. É claro que eles perguntam como é que está o romance. Mas sempre me deram tempo. Há um ditado ibérico muito bonito: "Hay que dar tiempo al tiempo". Agora, estou escrevendo uma novela sob encomenda, a primeira. Mas já estava praticamente pronta na minha cabeça.

PB – Como funciona seu processo de criação?
Hatoum
– Faço muitas anotações sobre aquilo de que quero falar, escrevo sobre os personagens. Tenho de redigir o começo e o fim, senão não consigo. Quando escrevo essas extremidades, aí ataco. Sempre fiz isso nos meus romances. Os finais dos meus livros são, de certa forma, os começos. Eles começam pelo fim.

PB – A preocupação com a forma é determinante em sua literatura? Sua produção tem um quê de experimentação?
Hatoum
– Acho que sim, desde que a forma expresse aquilo que há de importante para ser dito. O experimentalismo gratuito, a forma pela forma, é totalmente artificial. Isso não faço.

PB – Sua literatura permite ao leitor uma boa visualização dos espaços onde transcorrem as tramas. Essa é uma influência da arquitetura?
Hatoum
– É provável. O arquiteto pensa através da representação e da construção do espaço. Algumas coisas dos meus romances, desenhei antes de escrever. A casa de Relato de um Certo Oriente, por exemplo. Muita coisa também é inventada, não faz referência direta a Manaus. É Manaus e não é. É a minha Manaus, da minha imaginação. Mas tento ser preciso do ponto de vista do espaço. Talvez seja uma mania realista também.

PB – Você é muito requisitado para entrevistas, participa de diversos seminários, encontros e palestras – ao contrário de escritores reclusos, como Rubem Fonseca e Raduan Nassar. Até que ponto a exposição na mídia ajuda ou atrapalha um escritor?
Hatoum
– Para ser sincero, estou bem cansado de tudo. Jamais seria um músico popular, não agüentaria. Tudo começa a ficar muito repetitivo. Aí, na décima entrevista, você acaba odiando seu próprio romance [risos]. Não agüento mais falar sobre Dois Irmãos. Se você me pedir para falar desse livro, certamente vou ficar mudo, porque já fui a muitas escolas e universidades, já conversei com muitos leitores, professores e jornalistas. E, quando você pensa que tudo acabou, começam as traduções. E os tradutores fazem dezenas de perguntas, e você tem de reler pela milésima vez aquilo que parece uma imagem na parede esquecida no tempo. Se eu publicasse muito, até faria sentido. Mas minhas obras completas cabem em oito centímetros da estante. Prometi a mim mesmo que neste ano termina minha exposição na mídia. Portanto, esta é uma das minhas últimas entrevistas.

PB – Mas essa exposição não faz com que você seja bem lido e bastante vendido? Vivemos em um país de poucos leitores, onde a literatura não dá retorno para a maior parte dos escritores...
Hatoum
– É um mito dizer que não há leitores no Brasil. Para uma boa publicação, há, sim. O que acontece é que existem poucas bibliotecas públicas, e os livros são caros para milhares e milhares de brasileiros pobres que gostam de ler. Pergunto: falam tanto de educação, por que não constroem boas bibliotecas com acervo renovável? Não precisam ser enormes, caríssimas, mas pequenas bibliotecas, de bairro. São duas coisas de que as nossas periferias precisam no Brasil: creches e bibliotecas.

PB – Os intelectuais e artistas brasileiros têm se portado com relação a questões políticas e ideológicas de maneira adequada ou se eximem da responsabilidade?
Hatoum
– Acho que muitos gostariam de participar, escrever e publicar, e não conseguem. Sou crítico com o que houve no governo Lula, a corrupção que rodeou o presidente. É preciso falar das coisas como elas são. Às vezes, o preço que se paga é o isolamento, talvez o ostracismo e a solidão. Mas eu, que votei no Lula, não posso deixar de criticar o que houve no governo dele. Porque todo mundo que conheço votou nele no primeiro mandato. Mas houve problemas, então você tem de falar.

PB – E nesta última eleição?
Hatoum – No primeiro turno, não votei no Lula. Votei no segundo porque acho que o outro candidato é muito conservador.

PB – De que maneira você se relaciona com outros campos da arte? Já pensou em escrever o roteiro de um filme, por exemplo? Uma peça de teatro? Você toca algum instrumento?
Hatoum
– Fui cantor quando era jovem. Tinha uma banda de iê-iê-iê, de rock’n’roll, Beatles, Rolling Stones. Mas cantava de tudo: Roberto Carlos, bossa nova, música italiana, bolero. Hoje canto para mim. Mas minha grande frustração é não tocar piano. Também pintava um pouco, não deu certo. E me interesso por teatro. Escrevi uma pequena peça, inédita no Brasil, que foi publicada na França. Agora, estou fazendo o argumento para um filme do Jorge Bodansky. Não o roteiro, porque é uma outra linguagem. E o Luiz Fernando Carvalho vai fazer uma microssérie com Dois Irmãos, na Rede Globo.

PB – O que mudou no seu dia-a-dia e na sua literatura com o nascimento de seu primeiro filho, João?
Hatoum
– Ele está com quase três anos. Tive meu primeiro filho aos 50 anos, mas acho que nunca é tarde: um filho muda completamente a vida, dá muito ânimo, nos faz mais tolerantes. A literatura me cansa mais do que meu filho. Porque o cansaço mental é mais profundo. O cansaço físico pode ser superado pelo sono. O João me deu mais energia, mais força, tive de me desdobrar para arranjar mais tempo. Por isso, falo para os cinqüentões que estão bloqueados: tenham um filho. Acho que a única obra da sua vida é um filho. O resto é literatura. 

 

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