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O ensino vence distância e preconceito

Tecnologia faz crescer número de pessoas que se formam sem freqüentar salas de aula

FRANCISCO LUIZ NOEL


Curso por correspondência: nos primórdios da EaD / Foto: Reprodução

A licenciatura em ciências biológicas era um sonho remoto para André Bebiano de Macedo, de Petrópolis (RJ), até 2001. Mas, como não possuía recursos para estudar fora nem havia esse curso na cidade, ele decidiu arriscar e conseguiu ser aprovado no primeiro vestibular do Rio de Janeiro para graduação a distância. Surpreso com o ritmo puxado, precisou reorganizar seu cotidiano familiar para poder atirar-se aos livros. Aos 34 anos, funcionário público, com um filho, ele recebeu o canudo em maio.

"A faculdade a distância caiu como uma luva, no meu caso", assim André resume sua conquista. Um dos oito diplomados no curso da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), ele já dá aulas e planeja mergulhar na profissão. Pelo mesmo caminho vai a curitibana Cristiane Macedo Faust, de 26 anos, da legião de 250 alunos da graduação a distância em administração da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Também servidora pública, com dois filhos, ela diz, animada: "Isso me motivou na busca de formação, pois não tive de abrir mão dos outros compromissos".

André e Cristiane são exemplos de que a educação a distância (EaD) está em alta no Brasil, impulsionada principalmente pelo avanço das tecnologias de informação. Nos vários níveis de ensino, mais de 504 mil brasileiros buscaram formação em 2005 nos cursos oficiais oferecidos nessa modalidade, reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC). Do supletivo à pós-graduação, o número de estudantes cresceu 62,6% em relação ao ano anterior – somados os cursos não-oficiais, mais de 1,2 milhão de pessoas fizeram uso da EaD em 2005.

A escalada não é surpresa entre os educadores. "Havia uma demanda reprimida", diz o diretor científico da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), Waldomiro Loyolla, responsável por esses cursos nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), de São Paulo. Tanto que várias instituições universitárias trataram de se mobilizar, organizando docentes, metodologias e material didático. Em 2005, eram 467 os cursos de graduação e pós-graduação no país, com 301 mil alunos – 88,7% a mais que no ano anterior. No final do ano passado, mais duas instituições públicas – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Universidade Estadual Paulista (Unesp) – anunciaram que oferecerão cursos de graduação a distância a partir do segundo semestre de 2007.

Como o petropolitano André, os aprovados nos cursos oficiais a distância recebem um diploma que nada deve aos do ensino convencional. As regras da EaD foram baixadas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em dezembro de 2005, no decreto 5.622, que regulamentou a lei 9.394/96, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Essas normas, vigentes para todos os níveis, incluem a obrigatoriedade de cursos projetados com duração igual à dos tradicionais e a exigência de avaliações periódicas em sala de aula. Também estabelecem os requisitos para credenciamento das instituições de educação a distância.

Expansão acelerada

O crescimento da modalidade salta aos olhos no "Anuário Brasileiro Estatístico de Educação Aberta e a Distância" ("Abraead") 2006. Elaborado pelo Instituto Monitor com apoio da Abed e do Ministério da Educação, o anuário esmiúça dados de 98 das 217 instituições autorizadas, assim como de cursos livres e corporativos. A maior concentração da EaD oficial está no sudeste, com 240 mil alunos (47% das matrículas) – 144 mil (29%), em São Paulo. O destaque em 2005 foi o Paraná, que triplicou a graduação a distância, totalizando 90 mil universitários.

Coordenador do "Abraead", o jornalista Fábio Sanchez assinala que a EaD passa por expansão acelerada. "E tende a crescer cada vez mais, numa velocidade impressionante", afirma. Sanchez salienta que a modalidade desponta como alternativa para milhões de pessoas num país em que 70% dos municípios não têm faculdades. O crescimento é flagrante também na educação de jovens e adultos (EJA, antigos supletivos de primeiro e segundo graus) e no ensino técnico, que tiveram mais de 202 mil alunos a distância em 2005, registrando um aumento de 40% em relação a 2004.

Somente no Instituto Monitor, em São Paulo, 6 mil alunos fazem supletivo e cursos profissionalizantes – mais de 30%, residentes em outros estados, viajam nos fins de semana e nas férias de trabalho para fazer as provas. "São pessoas que estão no mercado e têm conhecimento da profissão", informa a vice-presidente, Elaine Guarisi, ilustrando com a média de idade: 37 anos.

É o caso do paulistano Daniel Olímpio de Oliveira, de 31 anos. Em setembro de 2005, ao matricular-se no curso técnico de eletrônica, ele já tinha o objetivo de passar num concurso da Aeronáutica. "Estudei de segunda a sábado, em todos os momentos disponíveis, e nas férias do trabalho", relata. Em dezembro, conseguiu seu intento. Em cursos não-oficiais como esse, que vão da preparação de chocolates à eletricidade, o Monitor atende a 40 mil alunos.

O Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial em São Paulo (Senac SP) também atua no ensino a distância, com 23 cursos livres e de extensão universitária. Em 2005, havia 2 mil pessoas matriculadas. "A EaD é aliada da educação presencial e, em pouco tempo, não teremos mais essa distinção. Pensaremos nas competências que o aluno deve obter e escolheremos os recursos a utilizar", afirma a coordenadora do Núcleo de Educação a Distância do Senac SP, Regina Helena Ribeiro. No mesmo curso, ela exemplifica, vão conviver aulas presenciais e videoconferências. "A modalidade a distância não tem volta", prevê.

As empresas também vêm aderindo à EaD. Com a metodologia da modalidade, a rede Accor Hotels treina 5 mil empregados pelo Brasil afora. "Seria impraticável realizar cursos presenciais", diz o gerente de projetos de educação da rede, Jacques Metadier. Com os mesmos recursos didáticos, num escritório paulista de advocacia, as secretárias fizeram o curso técnico da profissão e obtiveram o registro profissional. "Foi uma conquista, pois representa o reconhecimento do mercado", diz, orgulhosa, Maria Heloísa Gardil, de 46 anos, mãe de dois filhos e secretária há 20 anos.

Programa nacional

Se vingar a Universidade Aberta do Brasil (UAB), criada pelo MEC em 2005 para dar corpo a um sistema nacional de educação superior a distância com base nas iniciativas em andamento, a difusão da EaD vai ser ainda mais veloz. Para implementar o projeto, o ministério planeja pôr em funcionamento, no segundo semestre de 2007, por meio da Secretaria de Educação a Distância (Seed), 150 pólos da rede no país, totalizando 67,5 mil alunos em cursos ministrados por consórcios de universidades. Os números devem dobrar no semestre seguinte.

"A meta é criar mil pólos em cinco anos", anuncia o diretor de políticas da Seed, Hélio Chaves Filho. "Isso envolve não só a esfera federal, mas também a municipal, que precisamos trazer para o projeto. Outro desafio é vencer a cultura, ainda muito forte, de negação da EaD. E precisamos criar uma rotina de pesquisa de novas tecnologias e consolidar o modelo de consórcios." A formação continuada dos professores e a produção de material didático também estão entre as prioridades. A UAB já tem adesão de 40 universidades.

Consórcio modelar é o pioneiro Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (Cederj), formado em 2001 pelo governo estadual e pelas universidades públicas UFRJ, UFRRJ, UniRio, Uerj, UFF e Uenf. O aluno aprovado no vestibular sai matriculado numa delas, como o petropolitano André. O consórcio conta com 14 mil estudantes inscritos em seis cursos, em 21 pólos regionais. "Já estamos nos preparando para oferecer bolsas de iniciação científica aos alunos com vocação", entusiasma-se o presidente do Cederj, Carlos Eduardo Bielschowsky.

A UAB coloca o Brasil em consonância com a tendência mundial de incorporação definitiva da EaD ao sistema educacional. Ficam para trás paradigmas espaciais e temporais como turma, sala de aula, freqüência, onipresença do professor, horários rígidos e semestre. Entram em cena inovações como ambiente virtual, interatividade, tutores online, flexibilidade de estudo e autodidatismo. Mesmo em contato periódico, ao vivo, com professores, atividades práticas e avaliações, os alunos estudam sozinhos em casa. O rendimento depende não só da inteligência, mas também da disciplina.

No mundo inteiro é assim. Na Europa, quase 1 milhão de universitários estudam a distância. Na Grã-Bretanha, a renomada Open University tem 200 mil alunos; na França, o Centre National d’Enseignement à Distance conta com 180 mil; na Espanha, a Universidad Nacional de Educación a Distancia (Uned) ensina a 110 mil pessoas. Países de dimensões continentais como Rússia, Canadá e China também usam a modalidade para aproximar lugares. Na Ásia e na África, são 3 milhões de universitários na EaD.

Do sonho à realidade

O modelo da UAB torna realidade o sonho de educadores como Darcy Ribeiro, ministro da Educação que, antes do golpe de 1964, idealizou a Universidade de Brasília (UnB). Com material impresso e módulos na internet, os estudantes terão como referência os pólos, mantidos pelas prefeituras, com biblioteca, computadores, laboratório, sala de aula e videoconferência e tutores com formação superior em cada disciplina – um por grupo de 25 alunos. Cada pólo reunirá 450 estudantes, em três cursos, com turmas de 50.

O protótipo da UAB é a graduação que alunos como a curitibana Cristiane fazem na UFPR, oferecida também em outras 23 instituições. Por ter apoio financeiro do Banco do Brasil, o curso é restrito a funcionários públicos selecionados em vestibular. Na universidade paranaense, os conteúdos estão online, interativos, em ambiente virtual do MEC. O material didático também pode ser adquirido em livros.

Soldado da Polícia Militar, Moisés Acácio Gonçalves, de 25 anos, prefere o material impresso. "Estudo três horas por dia, cinco vezes por semana. Quando não dá, compenso nos sábados e domingos", conta. "Como trabalho em escala, seria impossível freqüentar um curso presencial." Ele pretende, com o diploma de administração, ascender na corporação, fazendo concurso para oficial.

A preferência de Moisés pelos livros expressa a predominância dos impressos nos cursos, apesar dos avanços da informática. De acordo com o anuário estatístico, 84,7% das escolas adotam material impresso em suas aulas, enquanto a internet é utilizada em 61,2% dos casos e o CD-ROM em 42,9% – como os números evidenciam, muitos alunos fazem uso de mais de uma dessas opções. No relacionamento com os tutores, no entanto, as mensagens de correio eletrônico são empregadas em 86,7% das escolas. Depois vêm os telefonemas (82,7%), as consultas online (78,6%) e o contato presencial (70,4%).

Qualidade e preconceito

A EaD vem superando preconceitos da mesma maneira que vence as distâncias. Mas, onde quer que chegue, soa a pergunta: os diplomados apresentam a mesma qualidade dos que tiveram aulas em sala de aula, freqüência obrigatória, presença do professor e matéria no quadro-negro? Os defensores da modalidade garantem que sim. Alguns afiançam até que a EaD pode ser superior.

"O ensino a distância não é de pior qualidade. Pelo contrário: todos os indicadores nacionais e internacionais mostram que a formação dos alunos é igual ou melhor. O estudante de EaD não é um aluno de segunda categoria", diz Hélio Chaves Filho, da Seed. No Cederj, Bielschowsky destaca que "o grande desafio é não deixar a qualidade cair". Físico, ele exemplifica: "Nosso curso de licenciatura em física tem a mesma qualidade do presencial da UFRJ".

Um dos focos de resistência à EaD está, paradoxalmente, entre os docentes. No início das atividades do Cederj, houve professores que torceram o nariz na hora de visitar os pólos do interior fluminense. "Muitos voltaram emocionados, por ver alunos de lugares distantes tendo a chance de fazer cursos de alta qualidade", diz Bielschowsky exultante. Parafraseando Nos Bailes da Vida, do mineiro Milton Nascimento, o físico destaca que o docente da EaD deve ter "a alma repleta de chão" para ir aonde o aluno está.

Para o também físico Waldomiro Loyolla, da Abed, a educação a distância impõe desafios novos ao docente. "Ele passa a ser um orientador e não mais aquele que disponibiliza conteúdos. Precisa ensinar o aluno a aprender sozinho", diz. Sem ter mais a autoridade máxima do processo de aprendizado, o professor tende a tornar-se uma espécie de mediador, pois parte das discussões da sala de aula passa a ocorrer na internet.

A diretora do Núcleo de Educação a Distância (Nead) da UFPR, Marina Isabel de Almeida, observa que, nas universidades públicas, há muito a fazer para estimular os docentes. "Quem faz EaD tem ônus alto. Na maior parte das vezes, mantém a carga didática presencial e ainda assume a adicional. Existe pouca consciência e pouco reconhecimento do trabalho que um curso a distância dá", lamenta. Outro requisito para a adaptação e a integração dos docentes passa pela linguagem, explica Bielschowsky: "O aluno não deve fazer mais de 30 minutos de leitura sem atividades. Na internet, é preciso haver simuladores, vídeos e links, com o máximo de interatividade. No Cederj, temos mais de 70 técnicos trabalhando com os docentes. Fazendo o material, o professor aprende a dominar a linguagem".

Do lado dos estudantes, o desafio da EaD é reduzir a evasão, mais alta que na educação presencial. Uma das causas reside nas expectativas equivocadas dos alunos em relação às exigências e à qualidade dos cursos. "A maioria se matricula numa hora de entusiasmo. Acredita que a educação a distância é de segunda e que vai ter o diploma barato, sem muito esforço. Quando vêem que é sério, desistem", relata Elaine Guarisi, do Monitor, onde 60% dos matriculados não terminam os cursos. No Cederj, dos 30 colegas do recém-formado André, 22 (73%) ficaram pelo caminho.

Os estudantes de EaD devem certificar-se da idoneidade das escolas e da validade dos cursos. Nos últimos anos, alunos de vários estados tiveram dores de cabeça com supletivos e cursos técnicos não-regularizados. Denúncias de venda de diplomas também ecoaram. "O primeiro passo é saber, nas secretarias estaduais de Educação, se a instituição está autorizada. Aliás, isso deve ser feito também quando se trata de escolas presenciais", recomenda Waldomiro Loyolla. No caso dos cursos universitários, as informações podem ser verificadas na Seed (http://portal.mec.gov.br/seed).


Pioneirismo nas ondas do rádio

A educação a distância no Brasil começou no rádio. Em 1923, Edgard Roquette Pinto e Henrique Morize, da Academia Brasileira de Ciências, criaram a pioneira Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, com o intuito de difundir a instrução. Num Brasil em que a maioria dos 31 milhões de habitantes era analfabeta, entravam no ar, em 1925, aulas de português, geografia, história, higiene, ciências, física, química e francês, em meio à programação normal. Em 1936, Roquette Pinto doou a Sociedade ao governo: nascia assim a Rádio MEC – cabeça do Serviço de Radiodifusão Educativa (SRE), criado em 1937.

O primeiro curso por correspondência no país data de 1939, quando o imigrante húngaro Nicolás Goldberger fundou o Instituto Rádio Técnico Monitor. Da capital paulista, despachava apostilas de eletrônica, ferramentas e peças para a montagem de um rádio, nos moldes do que se fazia na Europa e nos Estados Unidos. Em 1941, surgiu o Instituto Universal Brasileiro. Na década de 1960, a EaD chegou à televisão. Em 1961, a TV Rio levou ao ar o primeiro curso de alfabetização de adultos na telinha, da professora Alfredina de Paiva e Souza. Em 1967, o governo militar criou o Centro Brasileiro de TV Educativa, que produziu centenas de programas.

Ao lado do radiofônico Projeto Minerva – supletivo de primeiro e segundo graus oferecido de 1970 a 81 –, a telenovela educativa "João da Silva" fez escola, veiculada pela TV Globo e por várias emissoras educativas a partir de 1974. A teatralização do ensino com base no cotidiano visava levar os adultos à conclusão do antigo primário (primeira a quarta série). A tevê dominou a educação a distância nos anos 1980, com os telecursos de primeiro e segundo graus, que foram transmitidos em mais de 40 emissoras e, em 1996, deram origem ao Telecurso 2000. Nos anos 1990, a difusão da informática favoreceu a chegada da EaD ao nível universitário. O primeiro curso de graduação, de pedagogia, surgiu em 1995, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

 

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