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Na vanguarda dos anseios populares

As causas mudaram, mas os estudantes mantêm a mobilização como forma de ação política e social

JOÃO MAURO ARAUJO


Manifestação do MPL / Foto: João Mauro Araujo

Cada pedaço da rua pode virar uma arma em potencial. Pedras arrancadas da calçada, cabos de madeira ou ferro que sustentam faixas ou bandeiras, garrafas, latas e toda sorte de entulho espalhado acabam servindo de "munição". A sensação é de que tudo se move ao mesmo tempo, e o barulho dos gritos se confunde com as explosões. Os carros estacionados viram barricadas, enquanto se alastra a fumaça do gás lacrimogêneo arremessado pelos policiais no meio da multidão. Muita correria, escassa visibilidade. Pessoas se perdem, outras são feridas e presas. Algumas vezes o aparato repressor vem a cavalo, noutras traz cachorros; há ainda carros blindados disparando jatos de água, armas cuspindo balas de borracha ou metal – ninguém sabe ao certo, somente quando atinge a pele. Ao término da passeata, os estudantes se recolhem, os militares retornam aos caminhões. No dia seguinte, a contagem das baixas, as notícias manipuladas pelos jornais dos respectivos lados. Não obstante, o asfalto vai sendo varrido, como que se preparando para a próxima batalha urbana.

Essa poderia ser a descrição de um conflito no Brasil, México, França ou qualquer país em meados dos anos 1960. Os estudantes, junto com os trabalhadores, engajavam-se em lutas movidas por ideologias diante da polarização global entre forças capitalistas e socialistas. "A questão do socialismo estava muito presente. Era uma perspectiva concreta em todos os movimentos sociais e que estava em avanço no mundo: havia conflagrações na Indochina, na África, na América Latina, e manifestações nos Estados Unidos e na Europa", afirma Gilberto Belloque, ex-militante do movimento estudantil (ME). As reivindicações transpunham os limites das universidades e das fábricas. De repente, a utopia dos textos impressos em livros de teoria política parecia ao alcance, embora os escudos continuassem cercando os castelos.

No início da década de 1960, os movimentos populares almejavam mudanças na ordem constituída, por meio de pressões por reformas, fosse com a distribuição de terras, fosse com aumentos salariais. Eram reivindicações que visavam a melhorias na qualidade de vida dos trabalhadores. Naquela época, a União Nacional dos Estudantes (UNE), entidade fundada em 1937, era influenciada principalmente por militantes da Ação Popular (AP), de orientação católico-progressista, e do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nessa esfera foi organizado, em abril de 1961, o Centro Popular de Cultura (CPC), com o objetivo de trabalhar questões sociopolíticas através de dramaturgia, música, cinema e artes plásticas. Buscava-se o diálogo com o povo em praças públicas ou eventos de sindicatos, adotando estratégias de agitação e propaganda, com foco, principalmente, na política imperialista americana. O conteúdo ideológico sobrepunha-se à forma, ou seja, a intenção de conscientizar era mais importante que o entretenimento. Tendo se apresentado em ligas camponesas e em congressos operários, em cima de caminhões ou na rua, passando por vários municípios brasileiros, o CPC foi dissolvido em março de 1964.

Golpe

Após o golpe militar de 1964, a sede da UNE foi incendiada e seus líderes presos e perseguidos. Daí em diante as reuniões ocorreriam na clandestinidade, com o estalar de dedos durante os discursos substituindo os tradicionais aplausos. A recuperação do ME, no entanto, foi mais rápida que a das organizações operárias, o que elevou sua responsabilidade na luta contra o governo ditatorial. Segundo Belloque, isso se deveu ao fato de os estudantes terem uma capacidade natural de renovação de lideranças, já que a cada quatro ou cinco anos costuma mudar a estrutura: uns entram, enquanto outros saem ao término do curso. Todavia, com Belloque não foi assim. Por conta da militância política na dissidência estudantil do Partido Comunista, teve de antecipar sua saída da faculdade. "Deixei de freqüentar as aulas, porque do contrário seria preso", lembra. Belloque ingressou na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) em 1966, ano em que os estudantes deram início às críticas à ditadura em protestos públicos. Assim que entrou, ele começou a participar das atividades do ME. "Desde o trote já tinha gente se aproximando. Havia uma ‘pesca’ imediata dos calouros, e aqueles que tinham algum conhecimento, alguma relação, já eram levados para os congressos", explica.

Em São Paulo, os principais focos do ME concentravam-se no campus da Cidade Universitária, no bairro do Butantã; na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – que até o final de 1968 ficava localizada na Rua Maria Antônia, próximo aos prédios do Mackenzie – e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em Perdizes. No ano de 1965, Tânia Solitrenick fazia o último período de um curso técnico de química no Mackenzie, equivalente ao atual ensino médio. Atuante na União Secundarista, ela costumava atravessar a rua com os colegas nos intervalos das aulas para participar de atividades culturais e políticas no prédio da USP: "Nós fomos adotados pelo pessoal do ‘Partidão’ (PCB) na Filosofia". Tânia lembra que numa das primeiras investidas dos alunos do Mackenzie contra o grêmio da Filosofia, eles só encontraram meia dúzia de secundaristas assistindo a uma mostra de filmes. Anos depois, as rivalidades ficariam bem mais constantes e violentas.

Além da embrionária formação política, Tânia também se preparou para o vestibular com o pessoal da Filosofia e foi aprovada no curso de ciências sociais, no qual ingressou em 1966. Passou a militar no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) – que funcionava na ilegalidade –, atuando na formação de quadros e organização de passeatas. "Sempre fiquei na parte de apoio, não tinha estrutura para pegar em armas. Dava cobertura para companheiros e levantava dinheiro quando possível", lembra. Os estudantes ligados ao ME em geral buscavam embasamento. Ninguém queria ficar nos limites do curso ou da classe social de origem. "A questão ideológica, da fundamentação teórica, era bastante evidenciada: a gente estudava economia, filosofia, queria entender as diferenças de uma teoria capitalista e socialista. Eu assistia aulas na Poli, e o politécnico estudava sociologia, ia ler Paulo Freire... Era uma verdadeira polivalência", explica Maria Luiza Belloque, que cursou pedagogia na USP até 1968. Ex-moradora do Conjunto Residencial da USP (Crusp), lembra com detalhes uma ação da Polícia Militar (PM) em 1967, que redundou em um conflito de várias horas. Os policiais foram enviados para retirar os excedentes – alunos que moravam de forma ilegal – do Crusp e os estudantes que haviam ocupado o bloco F antes de ser liberado. "Nós ficamos espremidos no saguão; eles [a PM] tentavam abrir e entrar, e a gente jogava pedra, garrafa. O dia amanheceu, mas a encrenca continuava. Era um negócio meio surrealista", conta Maria Luiza. Por fim, a polícia acabou desistindo da operação.

As perseguições ao ME continuavam. Os últimos dois congressos da UNE foram todos violentamente reprimidos: no 28º, em 1966, tropas da polícia e do exército sitiaram a cidade de Belo Horizonte (local marcado para o evento clandestino) com barreiras e efetuaram revistas de automóveis; em 1967, a 29ª edição, cujas atenções estavam voltadas para o acordo MEC-Usaid – que visava, entre outros pontos, privatizar o ensino superior, cobrar mensalidades nas escolas públicas, subordinar os currículos à lógica do mercado e abolir a autonomia das universidades –, acabou sendo realizada num convento beneditino de Vinhedo. A guerra aberta entre a ditadura militar e o ME, no entanto, seria declarada no violento ano de 1968. Na tarde de 28 de março, poucos dias antes do quarto aniversário do golpe, o estudante secundarista Edson Luiz de Lima Souto foi assassinado durante manifestação pela reabertura do Restaurante Calabouço, que era o marco principal da resistência do ME no Rio de Janeiro. A essa altura, a inflação e o arrocho salarial pesavam na economia, gerando também a revolta dos trabalhadores, que faziam greves e engrossavam os sindicatos.

Os fatos impunham uma necessidade de organização mais consistente dos movimentos sociais. A chamada "sexta-feira sangrenta", em junho de 1968, somaria pelo menos 28 mortes. Prisões, "sumiços repentinos", tortura. "A derrocada dos movimentos pacifistas começou a colocar na mesa, como ordem do dia, a derrota da ditadura pela violência. Já que ela se impunha pela força, começou a tese de derrubá-la pela força", explica Belloque. Em 3 de outubro de 1968, os alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) viram-se sob uma chuva de bombas e coquetéis molotov, arremessados por estudantes da Universidade Mackenzie em direção ao prédio da USP. Os agressores eram em sua maioria ligados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar treinado e apoiado por agentes da repressão. Enquanto policiais assistiam ao ataque impassíveis (e até com certa satisfação), estudantes da USP foram baleados, alguns queimados por ácido, o prédio destruído, e foi acrescentada mais uma morte ao saldo. Menos de duas semanas depois, a polícia cercou o local onde ocorria o 30º Congresso da UNE – uma chácara em Ibiúna – e prendeu 700 estudantes. Parte do ME passou então a atuar nos grupos armados, oriundos principalmente de dissidências dos partidos comunistas. Assaltos a bancos e seqüestros eram estratégias utilizadas para financiar a resistência e exigir da repressão a liberdade de militantes presos.

Após a promulgação do ato institucional número 5 (AI-5), a PM retornou ao Crusp e prendeu todos os moradores, mas Gilberto Belloque e Maria Luiza já não estavam mais lá. Eles alugaram uma casa, onde editavam um jornal alternativo voltado para a conscientização dos calouros. "Era uma posição nossa fazer uma ação mais política, ter uma imprensa, trabalho de panfletagem entre estudantes, operários, classe média, profissionais liberais", conta Belloque. A vida do casal na clandestinidade ficou mais perigosa quando um amigo militante foi morto dentro de um carro que estava em seu nome. Mais tarde, no início de 1970, Gilberto Belloque foi preso pela Operação Bandeirante (Oban) e cumpriu seis anos de prisão em São Paulo.

Mudança de perfil

"A partir dos anos 1970, acho que o ME virou um gueto, ficou restrito aos campi das universidades. Houve um esfacelamento e começaram aqueles mea-culpas, ou autocríticas, que encerravam os debates internos. O ME caiu num processo niilista de autoflagelação. O pessimismo era muito grande. Você não podia fazer nada, que era rotulado de pequeno-burguês, alienado", avalia o sociólogo Adalberto Santos. Quando ele entrou na Faculdade de Ciências Sociais, em 1971, nem prédio o curso tinha. As aulas aconteciam nos chamados "barracões" – laboratórios frios, com teto de zinco e paredes finas, cedidos pelo Departamento de Psicologia para os cursos que haviam mudado da Rua Maria Antônia após o conflito. Com a morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme, em 1973, a comoção reacendeu os ânimos. "Fez com que desabrochasse um sentimento de união, de briga, de coesão do ME", lembra Santos, que esteve na missa realizada na Catedral da Sé em homenagem a Vannucchi.

Nos anos 1960 e 70, o ME teve tanta importância política que servia como uma espécie de canalizador dos anseios sociais da população. Havia intercâmbio entre movimentos estudantis e operários, porém, por causa da repressão, poucas pessoas sabiam quais universitários atuavam no movimento operário. Santos chegou a ter uma frustrada inserção, no início da década de 1970, quando foi estagiar na Volkswagen. Deveria informar-se sobre os benefícios que a empresa dava aos empregados: alimentação, vestuário, serviço médico, transporte. Contudo, ele e outros colegas da USP vislumbraram um espaço de atuação política naquele universo de 45 mil trabalhadores. "Eles tinham um mural que era bem fraquinho, mais baseado em recortes de jornais favoráveis ao governo ou sobre saúde, família. Começamos, então, a incluir cartazes do ‘Pasquim’, por exemplo, que faziam críticas bem-humoradas à estrutura política na época." O novo mural passou a ser bastante lido pelos trabalhadores, até o dia em que Santos chegou à fábrica e o encontrou todo arrebentado. "Entrei na sala, e havia uma menina de Santo André chorando. ‘Olha, o pessoal da USP está todo com o general. Você tem de ir para lá.’ Aí minha barriga gelou", lembra. Santos foi recebido pelo general, diretor de relações industriais da Volkswagen, que disse ter verificado sua ficha no Serviço Nacional de Inteligência (SNI). Por sorte, não constava nenhum envolvimento com qualquer partido clandestino, e Santos foi apenas mandado embora para casa.

A repressão continuaria intensa ao longo da década de 1970, mas sofreria enormes pressões após os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog (1975), numa dependência do DOI-Codi de São Paulo, e do operário Manuel Fiel Filho (1976), pela mesma polícia política. Com isso, houve a substituição do general comandante do 2º Exército e o conseqüente fim da tortura e do assassinato dentro dos quartéis.

A UNE, banida desde 1964 pela Lei Suplicy de Lacerda, reorganizou-se a partir de 1979, no Congresso de Salvador. Daí em diante, os estudantes participaram da luta pela redemocratização na Campanha das Diretas Já (1984) e, anos mais tarde, das manifestações pró-impeachment de Fernando Collor. Durante o mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o foco da crítica estudantil foi dirigido às privatizações e ao descaso com a educação.

Aos 70 anos, a UNE enfrenta hoje uma fase muito diversa daquela dos tempos do regime militar. Se naquela época o ensino superior público correspondia a mais de 80% das matrículas, hoje o gráfico se inverteu. Principalmente nos anos 1990, houve uma expansão das escolas particulares e da privatização interna das instituições públicas: na USP, por exemplo, os estudantes denunciam que a presença de fundações financiadas pela iniciativa privada condiciona as pesquisas aos interesses do mercado. Outra diferença é que durante a ditadura eram cerca de 95 mil universitários, em período integral, enquanto na atualidade são 4 milhões, a maioria dos quais matriculados em cursos noturnos. Ou seja, o perfil agora é do estudante-trabalhador.

Nas novas universidades, a organização do movimento estudantil é por vezes dificultada, devido principalmente à falta de tradição. "Muitas instituições atuam de duas formas: com o propósito de reprimir, não deixam a UNE entrar no prédio, instalam catracas eletrônicas, monitoram quem está lá dentro, não dão espaço físico, constrangem; outra estratégia é a cooptação: ‘Monte seu Centro Acadêmico (CA)! Eu dou uma bolsa a você para ser do CA’ – o que cria uma vinculação da pessoa à mantenedora", explica Gustavo Lemos Petta, atual presidente da UNE.

À tradicional bandeira do ME pelo ensino público gratuito, laico e de qualidade, foram adicionadas outras reivindicações, nessa nova conjuntura. Como tantas faculdades vêem a educação com olhos de mercado, a briga ocorre também no campo da tesouraria. Há práticas abusivas corriqueiras, como a de aumentar os valores das mensalidades quando os estudantes saem de férias ou a de cobrar a matrícula como taxa adicional, e ainda a de constranger e expulsar alunos inadimplentes, mesmo sendo isso proibido por lei.

Para combater essa situação, a UNE apresentou em novembro de 2005 o projeto de lei 6.489, que visa fiscalizar o aumento das mensalidades nas instituições de ensino privado, inclusive condicionando o reajuste à negociação do mantenedor com pais e alunos. A UNE participou também do debate em torno do projeto de lei 7.200, que trata da reforma universitária, encaminhado pelo Ministério da Educação ao Congresso Nacional. "O que tem de positivo é que enquadra as universidades particulares em regras mínimas de qualidade, o que vem causando chiadeira muito grande por parte delas. Dá autonomia para as federais e aumenta alguns mecanismos de democracia, mas não é a reforma dos sonhos", avalia Petta. Ele aponta também alguns pontos negativos, como a insuficiência dos recursos que seriam destinados à universidade e o retorno da lista tríplice, que substituiria a eleição direta para reitor.

A UNE enfrenta muitas críticas de outras entidades estudantis, que a acusam de "fábrica de carteirinhas" e "filhote de partido", e denunciam a parceria da entidade com uma empresa de rádio que, por sua vez, tem convênio com uma multinacional de fast-food, em cujos estabelecimentos pode ser feita a carteirinha da UNE. Além disso, elas reclamam de certa apatia do órgão que congrega o maior número de estudantes no país. Petta acredita que condenar a presença dos partidos é equivocado: "Na UNE, temos um espectro que vai do PSOL [Partido Socialismo e Liberdade] ao PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira]. Os partidos sempre vão existir. O que a gente tem é de se esforçar para preservar a autonomia da entidade, encontrar e manter espaços para quem não está em nenhum partido poder atuar". Ele diz que a entidade está revendo a parceria com a rádio e rebate a acusação de apatia, mencionando as últimas convocações para manifestações: "Esse é um esforço constante: o principal continua sendo mobilização, pressão, gente na rua, no Congresso Nacional, em Brasília... Mas é preciso entender que, como qualquer outro movimento social, o ME vive fases cíclicas de mobilização de massa, e isso não se deve exclusivamente à postura de quem está na direção das entidades – depende de fatores históricos, conjunturais".

Movimentos autônomos

Nos últimos anos da década de 1990, surgiu um movimento social com estrutura e propostas de ações anticapitalistas essencialmente combativas, formado em grande parte por estudantes. Durante seu apogeu, entre 1999 e 2002, muito se falou a respeito da onda de protestos contra o processo de globalização econômica. Os projetos de orientação liberal encabeçados por organismos como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (Bird) ou a Organização Mundial do Comércio (OMC) passaram a ser questionados em razão da interferência na soberania dos países pobres, onde agravariam problemas sociais, ambientais e culturais.

A idéia de promover os "dias de ação global", baseados na tese de "globalizar a resistência contra a globalização do capital", surgiu durante o 2º Encontro Zapatista, ocorrido na Espanha, em 1997. Logo foi organizada uma coalizão de movimentos sociais camponeses e de jovens urbanos que se reuniram em torno da Ação Global dos Povos (AGP). "A AGP nasceu de uma rede formada com uma série de princípios. Dois chamam a atenção: os protestos não iriam optar pela via institucional; não buscavam reforma das instituições nem diálogo com elas; em segundo lugar, eram movimentos que assumiam sua separação dos partidos políticos de atuação na esfera estatal", explica Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas da USP-Leste, co-autor do livro Estamos Vencendo – Resistência Global no Brasil.

A AGP ganhou repercussão principalmente após os protestos simultâneos ao encontro da OMC em Seattle (EUA), em 1999, quando cerca de 50 mil pessoas foram às ruas e conseguiram impedir que parte dos delegados chegasse ao evento. Naquele ano a rodada de negociações fracassou; foi, inclusive, suspensa um dia antes. Daí em diante o movimento conseguiria atuar ao mesmo tempo em vários países, chegando a reunir milhares de pessoas nos "dias de ação global". Seattle foi também o marco de fundação do Centro de Mídia Independente (CMI), uma rede de comunicação alternativa criada inicialmente para cobrir as manifestações e que depois evoluiria para uma lógica própria de atuação, apoiando diversos movimentos sociais locais e internacionais.

A rede do CMI hoje está presente em mais de 150 cidades pelo mundo. A versão brasileira surgiu com a primeira manifestação local de ação global, que ocorreu em frente à Bolsa de Valores de São Paulo, no dia 26 de setembro de 2000. "Houve uma convergência de pessoas que estavam no movimento estudantil, membros de alguns grupos anarquistas e da parte mais libertária de grupos ecológicos e feministas, entre outros", lembra Ortellado.

As ações da AGP seguiam uma linha mais lúdica, que dava prioridade à autoexpressão dos participantes. Era comum ver pessoas fantasiadas, batuques improvisados, malabaristas, rodas de capoeira, peças de teatro de rua ensaiadas na hora, enfim, algo mais espontâneo que os atos partidários puxados por carros de som. As causas também foram ampliadas: luta contra a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), pela liberdade de presos políticos, contra as guerras.

Os protestos globais cresciam, acompanhados pelo aumento da repressão. Nos países que sediavam as rodadas internacionais, fortalezas blindadas eram armadas para tentar conter os manifestantes. Brigas intermináveis, bairros sitiados. Em 20 de julho de 2001, a cidade de Gênova, onde ocorria o encontro de cúpula do G8, testemunhou a morte de Carlo Giuliani. A foto do manifestante italiano estatelado no chão após ser alvejado por um policial, que em seguida passou literalmente com o carro por cima do corpo, foi estampada em jornais de várias partes do mundo. "Em 2001 a repressão a esse movimento, que estava crescendo bastante, foi muito violenta, e logo depois, com o 11 de Setembro, surgiram leis antiterror que buscaram criminalizá-lo de uma maneira ainda maior", afirma Ortellado.

Após um período, entre novembro de 1999 e maio de 2004, marcado por vários eventos de ação global, os movimentos antiglobalização começaram a se desarticular. Segundo Ortellado, a AGP estava repetindo uma fórmula que só tinha dado certo em Seattle, sem conseguir avançar: "Nossa atuação realmente funcionava como pressão política, mas o objetivo de barrar, ou impedir, o encontro não estava sendo alcançado". No Brasil, com a dissolução da AGP, parte dos manifestantes migrou para movimentos estudantis, mantendo algumas características da experiência anterior.

Nos últimos anos, vem crescendo o chamado Movimento Passe Livre (MPL), cuja meta principal é lutar pelo fim da concepção mercadológica que rege o transporte coletivo. Devido ao alto valor das passagens, muitos estudantes deixam de ter acesso às escolas, ou precisam rastejar por baixo das catracas (quando os cobradores permitem), apesar do artigo 208 da Constituição, segundo o qual o Estado deve garantir atendimento ao educando do ensino fundamental, provendo, através de programas suplementares, material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. De acordo com um estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 37 milhões de brasileiros não podem pagar as tarifas vigentes. "É uma Argentina dentro do Brasil que está excluída do convívio social por não ter acesso ao transporte, que deveria ser público, mas está voltado para o interesse dos empresários", comenta Victor Henrique Calejon, membro do MPL.

Formado a partir dos princípios de horizontalidade, apartidarismo, independência e autonomia, o MPL – que é composto principalmente por estudantes secundaristas – adota um modelo federalista de organização, articulado em mais de 20 núcleos e comissões de norte a sul do país. A idéia teve origem na Campanha pelo Passe Livre, organizada por estudantes de Florianópolis, em 2000. Três anos depois, ocorreu em Salvador a "Revolta do Buzu", como resposta a um aumento no preço das passagens de ônibus naquela cidade, e, em 2004, a "Revolta da Catraca", novamente em Florianópolis, onde a partir de manifestações e pressões na Câmara Municipal os estudantes conseguiram a aprovação do Projeto Passe Livre (posteriormente vetado por uma ação direta de inconstitucionalidade). Os "dias que abalaram Floripa" ampliaram as vozes do movimento, mas este só foi formalizado na Plenária Nacional pelo Passe Livre, que aconteceu durante o Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre.

No último dia nacional de luta pelo passe livre (26 de outubro), os estudantes foram às ruas, fizeram manifestações com batucada, panfletagem e "queima de catracas" em várias cidades, já ensaiando para o período pós-eleitoral, que como esperado trouxe reajustes nas tarifas. A reivindicação prossegue, porém: "A luta do passe livre não tem um fim em si mesma, ela é só um passo inicial de debate na construção de um transporte verdadeiramente público", adverte Calejon. 

 

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