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Sacoleiras do outro lado do Atlântico

Mulheres angolanas atravessam o oceano para comprar roupas no Brasil

JULIANA BORGES


Zungueira com sandálias à venda: traço cultural / Foto: Juliana Borges

Numa rua antiga da região central de São Paulo há um hotel em que é possível comer pratos típicos angolanos, como galinha com muamba, calulu e costela de boi com fungi, entre outros. Algumas quadras adiante, numa loja atacadista de sapatos, está pendurada uma grande bandeira de Angola. Ainda próximo dali, num outro hotel, trabalha um recepcionista de meia-idade que, de tanto conviver com seus hóspedes, adquiriu um curioso jeito "africano" de falar, entoando palavras com sons mais abertos e incorporando expressões do português do outro lado do Atlântico, como "fixe", que quer dizer "legal". Finalmente, bem ao lado desse hotel está instalada uma exportadora chamada Kwanza Sul – Kwanza, ou Cuanza, é o nome do maior rio de Angola e da moeda daquele país. Esses quatro endereços ficam no bairro do Brás, um dos maiores pólos de venda de roupas no atacado da capital paulista. Estão lá para atender a uma fiel clientela: as centenas de sacoleiras angolanas que periodicamente atravessam o Atlântico e desembarcam em São Paulo à procura de produtos para revender em seu país de origem. As compras são feitas em quantidades enormes, que depois são despachadas por transportadoras. O lucro obtido com a transação paga as passagens de avião, que custam mais de U$ 1 mil, e ainda garante o sustento dessas mulheres.

O Brás é um lugar de migrantes, uma mistura de bolivianos, paraguaios, nordestinos, paulistanos, guineenses, libaneses e, também, angolanos. Onde quer que se ande, nas lojas, nas ruas, entre os camelôs, nos mercados, na feira da madrugada – um mercado aberto que começa às 3h30 da manhã –, nos hotéis ou nos restaurantes, a presença destes últimos é quase sempre notada – pelo colorido das roupas e pelo primor dos penteados das mulheres, ou pelas vozes com sotaque, quase sempre em tom alto –, e festejada pelos dólares que trazem de seu país natal. Alguns, geralmente estudantes, vivem em São Paulo. Mas a maioria está apenas de passagem.

Apesar de serem numerosos, porém, é grande a dificuldade para conseguir quaisquer informações sobre eles. Basta se apresentar como jornalista para rapidamente portas se fecharem, sorrisos se apagarem, rostos se virarem e afastarem, para, enfim, a conversa terminar subitamente. Em alguns momentos, a hostilidade, embora silenciosa, se torna óbvia. Em outros, é mais direta. "Já está na hora da senhorita ir embora daqui", insistiu uma turma de amigos angolanos que moram no Brasil e costumam se encontrar no Brás. Alguns dias depois, foi a vez de a dona de um hotel afirmar nervosa, por telefone: "Não tenho nada a declarar sobre isso". No dia anterior, a repórter estivera em seu estabelecimento na companhia de um angolano, sem se identificar como jornalista, e a situação fora bastante diferente. Na ocasião, ela conversou com a proprietária do estabelecimento, saboreou comida típica e ouviu os cozinheiros dizerem que aprenderam a fazer pratos africanos e acabaram gostando. "As angolanas são maioria no nosso hotel. Temos de fazer de tudo para satisfazer os clientes, né?", comentou uma das funcionárias.

A razão para essa espécie de pacto de silêncio é uma só. Os lucros obtidos com as compras das sacoleiras são fartos. Acontece que, sob o ponto de vista jurídico, muita coisa é feita de maneira informal: parte do dinheiro é trazido ao Brasil sem ser declarado, compras são feitas sem nota fiscal e, apesar de a maioria dos produtos serem remetidos por meio de exportadoras, em geral as mulheres levam na bagagem muito do que compraram. Para os comerciantes, é um dinheiro que não querem perder. Do lado das angolanas, é um meio de ganhar a vida. Por isso, fornecer quaisquer informações que possam comprometer essa atividade econômica tão importante é desnecessário e arriscado.

Por cerca de um mês, a reportagem de Problemas Brasileiros percorreu as ruas do Brás na tentativa de conhecer um pouco da história dessas sacoleiras. Depois de muitas portas fechadas, algumas se abriram. Foi possível, então, notar que há muito mais aspectos envolvidos nesse processo do que uma simples relação comercial. Mais importante do que saber quantos dólares elas têm no bolso ou investigar se o dinheiro foi ou não declarado é perceber as mudanças que esse vultoso comércio está trazendo às duas partes envolvidas. Pois o ser humano, sempre que se coloca em contato com outro diferente, sofre e provoca transformações. Nesse caso específico, embora aparentemente superficiais, na realidade elas são profundas. Os nomes dos estabelecimentos e das pessoas foram trocados para preservar a privacidade das fontes, apesar de alguns terem concordado em falar abertamente.

Sucesso das novelas

Devido a sua história banhada de sangue, Angola tem de comprar fora quase tudo o que consome. Quatro décadas de combates armados – de 1961 a 1975, os angolanos lutaram contra os portugueses pela independência; depois, de 1975 até 2002, a nação viveu uma guerra civil entre grupos políticos – empobreceram a população e praticamente estagnaram a economia local. O saldo de tantos conflitos foi cruel – cerca de 1 milhão de mortos, 4,5 milhões de refugiados de guerra e milhões de minas terrestres plantadas por todo o território. Hoje, os angolanos vivem uma situação difícil: o país ocupa a 160ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano entre 177 nações avaliadas, tem a segunda maior taxa de mortalidade infantil do mundo (295 por mil crianças nascidas) e 68% da população vive abaixo da linha de pobreza. Esse comércio transatlântico informal é uma das saídas que muitas mulheres em condição um pouco melhor do que a média da população encontraram para sobreviver.

As primas Inês e Cristina, que moram na capital Luanda, são duas delas. Elas chegaram juntas ao Brasil, em um vôo da Taag (Linhas Aéreas de Angola). "Viajamos três a quatro vezes por ano, sempre que precisamos de alguma coisa que não encontramos lá", diz Inês. "Compro principalmente roupas, mas acabo levando de tudo um pouco: sapatos, cintos, bolsas", completa. Cristina, mais expansiva, conta que, no início, vendia as mercadorias nas ruas, mas, hoje, prefere que as clientes vão até sua casa. "Lá no Roque [Roque Santeiro, o maior mercado a céu aberto da África, que fica em Luanda] era mais difícil. Todos só queriam comprar novidades. Se uma roupa não era vendida na primeira ou segunda semana, ninguém queria mais", diz Cristina.

As primas estão hospedadas no quarto 404 de um dos hotéis do Brás que se especializaram em receber africanas. O lugar é um típico estabelecimento do centro de São Paulo: construção e decoração antigas, pé-direito alto, piso gasto nos lugares mais usados, balcão de couro vermelho com tampo de mármore. A diária é barata, apenas R$ 29 (com banheiro externo), e o quarto, bem simples: tem uma pia, uma cama de solteiro, um guarda-roupa, uma estante e uma pequena televisão. As primas pretendem ficar duas semanas visitando as lojas brasileiras à procura do melhor preço. Todos os dias elas saem de manhã, por volta das 9 horas, e só voltam quando as lojas fecham. "Se não olhamos direito os preços, podemos levar produtos mais caros, e aí não compensa", diz Cristina. No terceiro dia de compras, o quarto já está praticamente tomado por grandes pacotes. Em meio a eles as duas assistem com atenção à última semana da novela Cobras e Lagartos. Em Angola, graças às antenas parabólicas que recebem sinais de emissoras brasileiras, elas não perdem um capítulo. As novelas brasileiras são, de longe, os programas de maior sucesso. Mais do que apenas entreter os telespectadores africanos, servem, para muitos, de referência sobre o que vestir. Por isso, Cristina e Inês precisam ficar atentas ao figurino. "A blusa que comprei é igual à da Ellen", observa Inês, referindo-se à personagem interpretada pela atriz Taís Araújo. Nas ruas do Brás, os lojistas confirmam a influência da tevê na escolha do que comprar. "Tudo o que as atrizes das novelas estão usando as angolanas levam", diz a dona de uma loja. "Hoje em dia, o que mais sai são as roupas da Ellen e da Leona [interpretada por Carolina Dieckmann]."

O enorme interesse pelos programas de televisão é um termômetro da influência que o Brasil exerce sobre aquele país africano. "Os angolanos, sobretudo os de nível social mais baixo, nutrem quase que uma idolatria pelo Brasil", afirma o professor Carlos Serrano, do Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo (USP).

Informalidade tribal

A informalidade do comércio e o medo de dar informações tornam difícil saber, mesmo que aproximadamente, quanto dinheiro é movimentado pelas sacoleiras africanas em São Paulo. Mas a quantidade de estabelecimentos especializados em atender esse nicho de mercado – são dezenas de lojas – fornece uma pista.

Com uma quantidade expressiva de mercadorias comercializadas, muitos se perguntam por que os angolanos não fazem esse comércio de maneira mais organizada e formal. A resposta não é fácil, e uma discussão rasa sobre o assunto pode dar origem a argumentos preconceituosos. "Chamar o negócio das sacoleiras de informal é não conhecer um processo histórico", afirma o angolano Abdu Ferraz, fundador da organização Liga dos Amigos e Estudantes Africanos (Laea), que tem por objetivo assegurar a inclusão do negro na sociedade brasileira. "A ‘camelagem’ é um conceito tribal relacionado à prática de ganhar dinheiro, tribal no sentido de que é tradicional para um africano. As sacoleiras que vêm comprar no Brás estão seguindo a lógica comercial que seu povo adota há centenas de anos."

Assim como em Angola, na maioria dos outros países africanos boa parte do comércio sempre aconteceu nas ruas ou nos mercados a céu aberto, como o Roque Santeiro. Nas ruas, as "zungueiras", como são chamadas as vendedoras ambulantes, carregam bacias sobre a cabeça com todo tipo de produtos: eletrodomésticos, roupas, alimentos, sandálias havaianas, etc. Diferentemente de outros povos, como os libaneses ou os chineses, os angolanos não têm uma cultura empreendedora mais desenvolvida. Dentro dessa lógica, que se perpetua há séculos entre os africanos, fica mais fácil entender que tanta informalidade não é falta de profissionalismo, mas um traço cultural.

Troca de experiências

O trajeto que as sacoleiras angolanas atualmente percorrem várias vezes por ano é uma rota histórica. Cinco séculos atrás, seus ancestrais fizeram o mesmo caminho a bordo de navios que os trouxeram ao Brasil na condição de escravos. Vinham oprimidos, maltratados, maltrapilhos. Uma situação bem diferente da das sacoleiras de hoje. Os recepcionistas dos hotéis as chamam pelo nome, conhecem seus parentes, que também já estiveram aqui para fazer compras, e se esforçam para agradar. Os taxistas costumam esperar por muito tempo sem reclamar, enquanto as angolanas se arrumam para sair. Os lojistas mandam seus vendedores buscarem as clientes na porta dos hotéis e lhes oferecem descontos a que brasileiros não têm direito. A dona de um hotel faz questão de hospedar as melhores clientes em sua própria casa. O africano, que no passado veio ao Brasil na condição de escravo e historicamente ocupou a incômoda condição de inferior e assistido, hoje é visto com outros olhos e recebe toda a atenção.

À primeira vista motivada por razões econômicas, essa distinção de tratamento tem origens muito mais profundas. "Diferentemente do negro brasileiro, a angolana chega aqui sem conhecer um passado de escrava, sem nunca ouvir que tem cabelo ruim, sem saber que está num país em que existe a idéia de ser feio por ser negro", afirma Ferraz. "Ela não tem vergonha de ser negra, não precisa olhar para baixo ou arquear os ombros. Isso gera um impacto grande em quem a recebe", completa. "O brasileiro não está acostumado a enxergar o africano em condições iguais ou até superiores a ele. A presença das angolanas em São Paulo está começando a mudar esse cenário."

Do outro lado do oceano, as mudanças provocadas pela presença das sacoleiras no Brasil estão sendo igualmente profundas. Essas mulheres estão em contato constante com uma realidade completamente nova. Acostumadas ao comércio nas ruas, elas encontram aqui uma nova forma de organização econômica. Vivendo em um país que tem o mesmo presidente há 26 anos, elas se deparam com debates políticos na televisão. Até pouco tempo atrás dependentes financeiramente de seus maridos, elas passam a se sustentar sozinhas e, com isso, podem atender melhor às próprias vontades. "O contato constante com o Brasil faz com que elas, aos poucos, deixem de negociar nas ruas e comecem a vender em suas casas. Depois, passarão a comprar manequins e a organizar pequenas vitrines e, um dia, montarão lojas. É um processo de aprendizado", diz Ferraz. Cristina e Inês, por exemplo, já mudaram o jeito de comercializar suas mercadorias.

Essas sacoleiras, apesar da condição econômica que lhes dá oportunidade de vir ao Brasil várias vezes por ano, não têm acesso a infra-estrutura básica. "A pobreza é muito relativa. Elas movimentam um montante que permite comprar um chuveiro ou um gerador, mas não têm esses aparelhos em casa. E, quando vêm ao Brasil, não os levam, porque não têm essa lógica, essa cultura", afirma Ferraz. Mas, aos poucos, essas mulheres vão incorporando novos hábitos. "Se ficam num quarto com ar-condicionado e banheiro com chuveiro, algum tempo depois elas também vão querer ter isso lá. E seu vizinho vai ver o chuveiro e também vai desejar ter um. E, assim, devagar, a mudança vai se propagando", completa.

Novo comércio

Para facilitar o contato entre as duas partes – as sacoleiras e os lojistas – há uma figura importante, cuja função é fazer a intermediação: os guias. Geralmente são estudantes angolanos que moram no Brasil e conhecem melhor os hábitos daqui. Sempre atentos às novidades, eles se encarregam de acertar a entrega das mercadorias no hotel, conhecem as lojas em que suas conterrâneas preferem comprar e sabem negociar com os vendedores. "Mesmo as que vêm sempre ao Brasil gostam de contratar um guia, porque estão num país estranho", diz o estudante de administração Roni, de 26 anos, no Brasil há seis. "Atualmente, o que se vende mais é cabelo, usado para fazer penteados." Apesar de ser auxiliado financeiramente pela família, ele precisa encontrar maneiras de engordar o orçamento, e o trabalho de guia é uma saída para isso. Aqui no Brasil, Roni fez amizade com muitos libaneses e acabou se convertendo ao islamismo. A religião o ajuda a driblar a falta que sente de seu país. Seus olhos ensaiam ficar marejados quando ele fala de sua terra, da saudade da família, mas sabe que é melhor ficar até terminar a faculdade. Seu sonho é montar uma academia de ginástica em Angola, nos moldes das unidades das grandes redes brasileiras. "Estou tentando arrumar um sócio. Agora é a hora certa para investir. Com o fim da guerra, o país está crescendo demais", diz.

Roni está coberto de razão. Há quatro anos vivendo em paz, e com ricas jazidas de diamantes e reservas de petróleo em seu território, Angola voltou a receber altos investimentos estrangeiros. Sua economia está se reaquecendo rapidamente, e Luanda parece hoje um canteiro de obras, de tantos empreendimentos que estão surgindo. Um dos maiores está sendo tocado pela construtora brasileira Odebrecht – ainda em 2007, ela vai inaugurar o primeiro shopping center do país. Angola oferece ótimas oportunidades de negócio, e aqueles que souberem explorá-las agora serão beneficiados. São os empreendedores, como Roni, que ajudarão a promover uma profunda transformação no país. "A classe média angolana é formada por pessoas que estudaram no exterior, têm graduação e mestrado e estão hoje na faixa de 40 anos de idade. Elas têm acesso ao orçamento do Estado, a linhas de financiamento e estão começando a instalar as primeiras fábricas angolanas próprias", explica Ferraz. Depois de consolidado, esse processo provavelmente irá ameaçar uma atividade que, há séculos, se mantém na África: o trabalho das sacoleiras

 

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