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Romeu e Julieta na terra da tradição

Comunidade fundada por imigrante japonês luta para preservar ideais e cultura

NATÁLIA SUZUKI


Atividade na escola: cada vez menos crianças
Foto: Natália Suzuki

Numa comunidade fundada em 1933, na região noroeste do estado de São Paulo, 70 imigrantes e descendentes de japoneses vêm lutando, durante todas essas décadas, para manter distanciamento do mundo exterior, vivendo do trabalho e do amor à terra. Devotos das artes, eles se esforçam para preservar seus traços culturais e o idioma de origem. Apesar disso, incorporaram a cultura brasileira em muitos aspectos de sua vida e, hoje, vêem-se diante de situações que suscitam questionamentos, como casamentos interétnicos e miscigenação.

Num amanhecer abafado de outubro de 2006, o som do berrante não acordou os moradores da comunidade Yuba para mais um dia de trabalho no campo, como costuma acontecer todos os dias. Antes das seis da manhã, eles vestiram roupas sóbrias e alinhadas em vez das costumeiras camisetas surradas, jeans e botas brancas de plástico. Era um dia de festa, e há sete anos não celebravam um evento como esse.

A cozinha, onde diariamente os membros da comunidade se reúnem para fazer as refeições, tinha novos ares, decorada com grandes lírios brancos. A cerimônia religiosa foi realizada logo de manhãzinha, com a luz do sol ainda fraca e preguiçosa, para que todos pudessem participar do evento, pois, ao longo do dia, cada um deles estaria muito ocupado, cuidando dos preparativos da festa que aconteceria ao anoitecer.

A fisionomia austera de Leandro Faistauer, de 30 anos, e de seu pai, herança da ascendência alemã, contrastava com as dezenas de faces de japoneses, em maioria no lugar. Os moradores-convidados nunca haviam visto a noiva, Agnes Kanna Yuba, de 26 anos, ou simplesmente Ago, como todos a chamam, tão linda assim, com um vestido branco cintilante e os cabelos pretos lisos escorrendo pelas costas. Mas nem todos os membros de Yuba estavam presentes à cerimônia religiosa. Alguns por sono, outros talvez porque ainda não tivessem aceitado a novidade.

Gaijin galante

A união entre Agnes e Leandro poderia ser como qualquer outro matrimônio interétnico que, atualmente, é bastante comum entre os descendentes de japoneses no Brasil. O acontecimento, no entanto, não apenas é atípico dentro da comunidade da noiva, como desta vez apresentou contornos inéditos. No passado, houve casos em que membros se casaram com brasileiros sem ascendência nipônica, mas o evento, automaticamente, fazia com que o casal deixasse o local. Como Agnes e Leandro manifestaram o desejo de permanecer ali, a possibilidade de um gaijin (gai: fora; jin: pessoa) morar em Yuba gerou uma série de discussões e medos.

Em março de 2005, Leandro estava em Minas Gerais – a primeira parada de uma viagem de férias pelo Brasil –, quando recebeu uma ligação de um amigo, que comentou a existência de uma comunidade de japoneses, um tanto isolada e alternativa, localizada no noroeste de São Paulo, no município de Mirandópolis, a cerca de 600 quilômetros da capital. Curioso, o gaúcho de São Leopoldo decidiu desviar-se de sua rota e conhecer o lugar. Na época, tinha poucas informações sobre aquele reduto; sabia, por exemplo, que os mais velhos moradores do local nem sabiam falar português. Ouvira também que, mesmo sendo agricultores, desenvolviam um trabalho primoroso dedicado às artes, especialmente à dança.

A comunidade recebeu o novo visitante de braços abertos. Já nos primeiros dias, o gaúcho começou a trabalhar no campo junto com os moradores. A vida ali era bem diferente da que conhecia e a que estava acostumado. No sul, ele cuidava de um projeto social voltado para crianças deficientes e dependentes químicos. Em Yuba, todos trabalham e são responsáveis por realizar uma tarefa específica, mas não há remuneração.

Quando idealizou a comunidade que fundou em 1933, o imigrante japonês Isamu Yuba imaginou-a como um lugar onde os moradores pudessem trabalhar a terra e sobreviver daquilo que fosse cultivado. Desde então, não há salários entre os membros. A produção de grãos, hortaliças e frutas e a criação de alguns animais suprem praticamente todas as necessidades internas.

Durante as décadas de 1940 e 50, Yuba desenvolveu uma das maiores granjas da América do Sul, mas que acabou falindo por problemas administrativos e devido às dívidas astronômicas assumidas com bancos. No início, a comunidade se localizava em Guaraçaí (SP) e contava com uma população de 220 pessoas, mas, com a perda das terras decorrente da falência, teve de mudar-se em 1956 para uma propriedade menor, na vizinha Mirandópolis. Parte dos moradores decidiu não permanecer com Isamu na nova fase, e a comunidade se reduziu à metade.

Apesar da crise financeira, Yuba conseguiu se reerguer. Após a morte do fundador em 1976, a fazenda praticamente abandonou a atividade granjeira. Hoje, a sobrevivência da comunidade está baseada no plantio de goiabas – a colheita e a manutenção dos pomares são feitas pelos próprios membros, que se encarregam de distribuir a produção média de 120 caixas semanais nos mercados dos municípios de Dracena, Tupi Paulista e Junqueirópolis. Além desse fruto, plantações menores, de manga, abobrinha, milho e quiabo, também são destinadas ao comércio e ajudam na renda mensal.

Outra atividade que ganha importância é a produção de cogumelos shitakes. Desde 1987, Yoshiki Tsuji é o responsável por esse cultivo e vem desenvolvendo e aprimorando uma técnica de plantio artesanal. Os shitakes frescos seguem para restaurantes de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.

Ainda hoje, a questão econômica é bastante complicada em Yuba. Apesar de não haver circulação monetária internamente, é inevitável o contato com o sistema capitalista. A maior dificuldade está na administração das dívidas e nas tentativas de sobrevivência e adaptação de um modelo arcaico de produção, baseado na pequena agricultura.

Além de um sistema econômico peculiar, o fundador adotou o lema "cultivar a terra, orar e praticar a arte" para estruturar e orientar os caminhos de seu grupo. Após 70 anos, esse princípio se enraizou entre os moradores, que se preocupam em deixá-lo como legado para as gerações seguintes. "Yuba é fruto de uma utopia de Isamu, que acreditava numa comunidade solidária, em que as pessoas poderiam viver do trabalho na terra e, ao mesmo tempo, cultivar a criatividade intelectual. Ele foi um imigrante excepcional e arrojado. Era diferente de outros japoneses que almejavam trabalhar no Brasil, ganhar dinheiro e retornar ao Japão. Criticava aqueles que se envolviam com a agricultura e se embruteciam no afã de enriquecer", explica Célia Oi, diretora executiva do Museu Histórico da Imigração Japonesa, em São Paulo.

Ao contrário de muitos que saíram miseráveis do Japão, Isamu Yuba vinha de um meio abastado, tanto que chegou ao Brasil em 1926 acompanhado da família e com seu pedaço de terra, de cerca de 10 mil alqueires, já garantido – adquirido por intermédio da companhia de emigração antes de deixar seu país. Seus filhos contam que ele resolveu partir para o Novo Continente depois de ver um cartaz de propaganda do governo, que dizia que a América era um lugar livre. Encantado com isso, imaginou que aqui poderia conquistar terras e edificar uma nova cultura. Parte de suas idéias era inspirada em obras de Jean-Jacques Rousseau e Liev Tolstói.

Isamu desejava que inúmeras formas artísticas fossem estimuladas em sua comunidade. No final dos anos 1940, o fundador fez o primeiro investimento cultural: comprou um piano de cauda Rösler. Quando a atual professora de balé, Akiko Ohara, chegou à comunidade, em 1961, ele mandou que cortassem uma parte dos pés de café para a construção de um palco. Até hoje, apresentações de festas de fim de ano, com uma programação de peças de teatro, números de dança e canto, são realizadas ali.

O apreço pela cultura disseminou-se entre os moradores. A qualquer hora do dia é possível ouvir alguém tocar uma peça de Beethoven ou Mozart. O som do piano se mistura com a bagunça das crianças correndo pela cozinha ou com o barulho de água jorrando da lavanderia. Katsue Yuba, de 60 anos, uma das filhas do fundador, é amante de ópera, mas não deixa de admirar cantores e compositores de música popular, como Chico Buarque, Maria Bethânia e Noel Rosa.

A maioria dos moradores sabe tocar um ou mais instrumentos musicais ou, então, dedica-se ao canto. As práticas de violino, violoncelo, piano e saxofone ocorrem à tarde ou após o jantar. Com o tempo, Masakatsu Yazaki, de 63 anos, responsável por ensinar violino e violoncelo a outros membros, também aprendeu a fabricar esses instrumentos.

Alguns moradores se dedicam à escultura. Mitsue Yuba, de 57 anos, aprendeu a dar forma à argila retirada do riacho apenas com a ajuda de um livro, moldando peças e utensílios. Mas as esculturas que tornaram Yuba famosa em circuitos de artes foram as do artista plástico Hisao Ohara, falecido em 1989. O granito era a matéria-prima de seus trabalhos, que foram expostos em mostras internacionais e em bienais. "Por ser um material rebelde, dou-lhe formas suaves", costumava dizer. Hoje, suas obras estão reunidas num jardim construído na comunidade em sua memória.

Foi com toda essa bagagem histórica e cultural que Leandro se deparou quando chegou a Yuba. Logo percebeu que aquele era um local onde poderia se enraizar. Convivendo com os membros, identificou-se com a filosofia de desapego aos bens materiais e de valorização do lado espiritual. Compreendeu que naquele lugar o trabalho realizado por cada um era uma contribuição individual para o bem-estar coletivo. "Aqui, as pessoas estão lutando pelo mesmo objetivo, por algo comum, sem renda, troca ou retorno financeiro. Meus valores começaram a mudar."

Após um mês em Yuba, Leandro exprimiu sua vontade de permanecer ali como morador. A partir desse momento, ele começou a sofrer um duro processo de adaptação. A situação se tornou mais complicada quando se apaixonou por Agnes, filha de Tsuneo, o líder da comunidade, e os dois começaram a namorar.

Com o anúncio do casamento, os moradores sentiram necessidade de discutir a situação de Leandro. Muitos brasileiros sem ascendência japonesa já haviam passado temporadas ali, e foram bem recebidos e acolhidos, mas nenhum se tornou um morador de verdade. Há uma grande diferença entre aqueles que são membros e os que são apenas visitantes. Estes últimos podem ficar por meses e até anos, mas não pertencem a Yuba, ou seja, não são da família e não participam das decisões, ainda que trabalhem como os demais e se sentem junto com todos a cada refeição.

Casar com alguém da comunidade pode até facilitar a inserção de uma pessoa de fora, mas isso não significa sua aceitação como membro. Essa "cidadania" só chega em circunstâncias bastante especiais, com o tempo, depois de muito trabalho e esforço, por meio dos quais a pessoa poderá mostrar que é digna desse reconhecimento.

"Você é bem-vindo se está passeando, mas para morar existe uma barreira invisível, porque isto aqui é uma grande família. Como sou de fora, fica difícil. A comunidade é bem aberta, mas, quando fecham, não é fácil reabrir a porta. Ainda estou em processo de adaptação", afirma Kojiro Takahashi, de 38 anos, nascido no Japão e que vive na comunidade desde 1994. Ele conta que decidiu permanecer ali em 1999, um pouco antes de se casar com Catherine Yo Takahashi, de 35, nascida em Yuba.

O fato de Leandro ser brasileiro, sem o domínio da língua japonesa e a familiaridade com a cultura, pesou bastante contra ele. Na opinião de Célia Oi, a comunidade o vê como uma ameaça. "Sua figura representa perigo. As pessoas sentem isso e, portanto, têm medo. A vida em comunidade tem sido muito cômoda para muitos deles, principalmente os mais velhos. Permanecer ali significa estar protegido das maldades e desafios do mundo. Leandro representa o outro, o estranho que ‘invade’ o ninho, o gaijin." Segundo ela, esse comportamento remete a uma característica da população japonesa conhecida como "cultura da ilha", marcada pela desconfiança com que os japoneses viam os estrangeiros.

Em Yuba, é freqüente a prática de reuniões, nas quais os membros discutem questões de interesse coletivo, e durante meses a permanência do forasteiro foi o tema central desses encontros. Os moradores não nascidos na comunidade em geral assumiram posturas menos conservadoras, defendendo sua estadia. Os membros mais velhos, por sua vez, manifestaram-se contra Leandro ficar ali, e sua posição foi decisiva quanto ao destino do novo casal.

A entrada de pessoas que não fossem nipônicas não era aceita por Isamu Yuba. O imigrante acreditava que essa era a estratégia correta para conservar os costumes e as tradições – uma tática de autopreservação. Ele afirmava que a cultura e a língua dos gaijins poderiam permear a comunidade e influenciar o modo de vida que construíra.

Célia Oi explica que os imigrantes importaram o costume do mura hachibu, ou seja, o ostracismo da aldeia, que consistia em expulsar os indivíduos indesejados numa comunidade. Segundo ela, quando aceitou se casar com Leandro, Agnes se dispôs a acompanhar o marido para onde quer que ele fosse. "Yuba decidiu em relação ao casal e não em relação a ela. A escolha de Agnes já foi feita: ela optou pelo marido e não pela comunidade."

Segundo Koichi Mori, pesquisador do Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, sediado em São Paulo, em situações como essa, o retorno do membro exilado só é possível no caso de um homem, nunca de uma mulher. "Se o filho homem de uma família japonesa se casar com gaijin tem chance de regressar à comunidade. Temporariamente ele é suspenso, mas se nascer um filho seu, poderá recuperar a cidadania, se quiser. Se for uma mulher, não. Essa diferença está ligada à noção folclórica de como cada sexo contribui para a reprodução. No Japão, acredita-se que a mulher só empresta o corpo para ter o filho, que é criado pelo sangue do pai. Nesse caso, o filho, apesar de mestiço, pode ser considerado japonês", explica Mori.

Em Yuba, o significado de manter as tradições está ligado estritamente à idéia de unidade racial e, por esse motivo, a miscigenação também não é aceita. Essa situação contrasta com a realidade da comunidade nipônica no Brasil, em que 45,6% dos casamentos atuais acontecem com brasileiros sem nenhuma ascendência japonesa.

Para o pesquisador, há dois motivos para que a miscigenação não seja facilmente aceita. "Os mais velhos acreditam que netos mestiços não transmitem a cultura. Esse é um tipo de visão comum na comunidade nikkei [de origem japonesa] em geral, e ainda ocupa a cabeça dos moradores de Yuba." A segunda razão se relaciona ao fato de que, antigamente, os brasileiros com que eles tinham contato eram caboclos de classe baixa. "Havia a preocupação quanto à assimilação desses indivíduos por intermédio dos filhos."

Apesar de todos esses obstáculos, a festa de casamento foi celebrada em Yuba. A alegria do festejo conseguiu esconder o conflito que se manifestara até as vésperas do matrimônio. No dia seguinte à comemoração, foi como se nada tivesse acontecido. Yuba retomou suas atividades normalmente, e o assunto mal foi comentado.

Agnes e Leandro se mudaram para uma casa em Mirandópolis. Ele se comprometeu, no entanto, a continuar com suas atividades em Yuba, ajudando na colheita de quiabo do sogro, que passou a aceitar a união. Nos outros dias, ele planeja dar aulas em Birigui. Agnes, por sua vez, percorre de ônibus os 20 quilômetros de sua casa até a comunidade todos os dias para realizar as mesmas tarefas da época em que era solteira: atuar como professora, cuidar de seu avô e auxiliar a preparar as refeições.

Futuro incerto

O casamento de Agnes e Leandro trouxe à tona o debate acerca da preservação de Yuba. Até então, o questionamento sempre estivera latente e interiorizado em seus membros. A partir desse acontecimento, o problema se tornou concreto e passível de discussão.

Além da crise econômica, é cada vez mais difícil para Yuba seguir os mesmos parâmetros da época em que foi fundada por Isamu. O contato com o mundo exterior se ampliou e, ao contrário de muitas comunidades étnicas, ela não fechou as portas para a modernidade. Ali não existem restrições ao acesso à internet e a aparelhos eletrônicos, que são trazidos por turistas ou parentes de fora. Sua juventude gosta de balada e ouve músicas da MTV.

Desde a década de 1990, a comunidade sofre um forte êxodo por parte dos jovens. Um morador de Yuba precisa, desde cedo, escolher se continua ou não ali. Opção profissional, relacionamento amoroso e estudos interferem diretamente nessa decisão. Camila May Kumamoto, de 23 anos, que saiu de Yuba para cursar enfermagem na Universidade de São Paulo (USP), lembra que a crise financeira e a falta de perspectivas também influenciam na saída dos membros.

A maneira mais fácil de deixar Yuba é ir para o Japão trabalhar como dekassegui. Muitos conseguem estudar lá ou nos Estados Unidos por meio de programas de intercâmbio. Poucos optam pela vida universitária.

A continuidade de Yuba também esbarra na dificuldade de formação de novos casais. Há mais ou menos 20 anos os membros se casavam entre si. Hoje, praticamente todos os jovens têm algum grau de parentesco. Há apenas uma família que não é consangüínea das demais. "Não existem namoros. Todo mundo é parente de todo mundo, é como se fôssemos irmãos", conta Camila. O matrimônio com imigrantes do Japão se tornou raro, pois o fluxo dessas pessoas para o Brasil diminuiu consideravelmente. Como resultado disso, são poucas as crianças em Yuba: há apenas cinco com menos de 11 anos. Uma década atrás eram quase 30.

Para Célia Oi, tanto o casamento interétnico como a miscigenação são inevitáveis. "Esses dois fatores são uma realidade em qualquer comunidade. Não é possível viver numa sociedade sem se relacionar com os outros integrantes. O casamento de Agnes e Leandro é um fato que obriga a um questionamento sobre o futuro."

Um lugar entre Brasil e Japão

Assim como muitos povos, os japoneses que vieram ao Brasil tentaram preservar ao máximo sua cultura e tradições originais, por diversas vias. Até o início da 2ª Guerra Mundial, era freqüente a estratégia, por parte das comunidades nipônicas fundadas no estado de São Paulo, de evitar ao máximo o contato com brasileiros, como fez Yuba. Falar o idioma japonês se tornou fundamental nesses redutos. "Não é uma língua muito lógica. Ela está ligada ao comportamento dos japoneses, que sempre quiseram evitar o enfrentamento. A forma de expressão é carregada de ambigüidade, que acaba também se estendendo para os relacionamentos", diz o pesquisador Koichi Mori.

Apesar da resistência a interagir com a sociedade circundante, essas comunidades não estiveram imunes às influências brasileiras, principalmente nos últimos anos, em que o contato social aumentou. A professora de japonês Masako Moriwaki, de 30 anos, vinda da cidade de Nagano graças a um intercâmbio cultural, afirma que, num primeiro momento, se surpreendeu com o que viu em Yuba. "É uma sensação muito estranha, pois encontrei um ambiente onde se fala japonês, mas não aquele que conheço." Ela conta que há elementos ali que não lembram em nada os costumes atuais de seu país.

Mori faz ponderações sobre o que de fato seria a cultura japonesa aqui: "No Brasil, ela não existe. Os imigrantes acabaram sendo mais japoneses do que os que ficaram no Japão. Foi construído um modelo por eles, com elementos sociais e culturais do país. A escolha e a sistematização fizeram com que esses elementos perdessem o significado original, porque foram retirados de um contexto para criar um outro sistema".

Yuba se ateve rigorosamente à preservação de determinados costumes que, no próprio Japão, deixaram de existir há anos. Masako cita o Obondori, uma festa do dia de finados, que na comunidade é um grande evento e em seu país não é nem mais lembrado. Um outro exemplo é a preparação de um dia inteiro de gincanas para pessoas de todas as idades, o undokai. Enquanto em Yuba há um dia reservado no calendário para isso, no Japão deixou de ser uma prática.

Célia Oi acredita que a comunidade enfrenta um grande desafio. "Ela está numa fase crucial de mudanças. As antigas gerações já deixaram o comando, e a nova procura um destino e razões para a preservação do ideal Yuba. Nesse momento de crise de identidade, o fator ‘Leandro’ é bastante simbólico e não é o único da comunidade Yuba. A própria sociedade nipo-brasileira está em busca de respostas a vários questionamentos. As novas gerações já não se identificam com as antigas estruturas mantidas pelas anteriores", avalia.


A dança peculiar de duas etnias

Quando Akiko Ohara, de 71 anos, chegou ao Brasil em 1961, com o marido, Hisao Ohara, ela buscava um sentido para a vida e um lugar onde pudesse exercer livremente a arte da dança.

Akiko não tinha intenção de permanecer definitivamente no país ou mesmo de formar um grupo de balé. Mas foi pela arte que encontrou o caminho para contribuir na construção da comunidade. "A dança era algo que eu poderia fazer. Acabei ficando mais de 40 anos. Achei bonito o modo de vida de Yuba, e por isso quis viver aqui", conta.

Akiko explica que, ao longo das quatro décadas em que se dedicou a desenvolver atividades de dança na comunidade, nunca teve pretensões de fazer com que essa arte adquirisse a importância que hoje lhe é atribuída. "Nosso balé não é feito para exibição. As pessoas que começaram a dançar, por acaso, eram lavradoras também. Depois do trabalho duro no campo, inconscientemente o corpo deseja expressar movimentos através do suor da dança, que é o mesmo da lavoura", explica.

Akiko fez do balé um espaço democrático. Todos, homens e mulheres de qualquer idade, aprendem, participam e se apresentam no palco. Por outro lado, os ensaios requerem rigor e dedicação. Aos poucos, a prática da arte acabou incorporada ao dia-a-dia de Yuba com a mesma naturalidade com que os moradores colhem goiabas ou cozinham. Essa característica se traduz nas próprias coreografias. Akiko conta que o cotidiano e as pessoas da comunidade são a inspiração para criar os números e os movimentos de dança. As temáticas remetem ao trabalho com a terra, o contato com a natureza, e rememoram a vinda dos imigrantes japoneses ao Brasil.

O balé se distingue por uma visível hibridez entre a cultura brasileira e a japonesa. Os membros de Yuba são capazes tanto de dançar uma quadrilha de uma festa junina como um número folclórico dos pescadores do Japão.

E foi pela peculiaridade de construir um diálogo cultural harmonioso que esse balé se tornou famoso nas cidades das redondezas e na comunidade nipo-brasileira do país. Até hoje, foram mais de mil apresentações em todo o Brasil, no Japão e no Paraguai.

Na dança, os membros da comunidade traduzem o esforço, o carinho pela terra e a resistência de uma cultura própria. É nos palcos que sublimam todos os seus problemas e divergências. São quatro gerações representando tudo aquilo que um dia Isamu Yuba sonhou.

 

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