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Verão movido a água de coco

Consumo do fruto in natura cresce e deixa toneladas de resíduos nas ruas

FRANCISCO LUIZ NOEL


Foto: Adilson dos Santos

No canudinho, gelada no fruto verde, ela é um item obrigatório do verão nas praias brasileiras. Cada vez mais pedida no corre-corre da vida urbana, também desce gostosa no copo, na garrafa ou na caixinha cartonada – apresentações indispensáveis para a disputa de igual para igual com os refrigerantes. Embora seja uma gota no mar das bebidas não-alcoólicas, com menos de 2% do mercado, a água de coco conquista novos paladares ano a ano. Seu consumo in natura provoca, porém, efeito colateral sobre o meio ambiente: mesmo com ações de reciclagem, toneladas de cascas são jogadas nas ruas dos grandes centros e das cidades litorâneas.

O plantio e a produção de coco só têm feito aumentar no Brasil, seja para matar a sede, seja para gerar outros produtos. Adubada pelos ganhos de produtividade, a colheita mais do que dobrou em uma década, atesta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De 967 milhões de cocos em 1997, colhidos em 231 mil hectares, o país saltou para 1,98 bilhão em 2006, em 290 mil hectares, cultivados por 224 mil agricultores de todos os portes. Do total de frutos, 70% são tirados verdes do coqueiro-anão, especialmente para aproveitamento da água. Os outros 30% são das variedades gigante e híbrida – a primeira, com mais polpa, destinada à obtenção de leite e coco ralado; a segunda, de água e, depois, leite.

Originária do sudeste asiático, a Cocos nucifera espalha-se por terras intertropicais de quase cem países, com mais de 11 milhões de hectares plantados. A Ásia concentra 80% da produção, que superou 55 milhões de toneladas em 2006. Indonésia, Filipinas e Índia respondem por 70% da oferta global. O coqueiro é fonte de sustento para milhões de asiáticos, substituindo a soja no óleo de cozinha e recebendo polpudos subsídios. Quarto no ranking, com 6% da colheita mundial, o Brasil ostenta um mercado sem igual para o fruto jovem do coqueiro-anão – graças ao sucesso da água, o país é o maior produtor de coco verde do planeta. Nos outros países, o forte é o coco maduro e seco das variedades gigante e híbrida.

"Coco verde é coisa do Brasil. Nos anos 1990, o hábito de tomar a água se irradiou das praias do Rio de Janeiro para os outros estados. Hoje, o país todo a consome", diz o químico Philippe Mayer, gerente de projetos da empresa carioca Coco Verde, que manufatura produtos com a fibra do fruto. Há 12 anos pesquisando as utilidades do coco, ele visitou vários países produtores e não viu nada igual. O avanço da bebida sobre o paladar nacional, observa, foi impulsionado por fatores como a facilidade da oferta, típica da agricultura tropical, e a crescente valorização dos alimentos naturais.

Refrescante e saborosa, a água de coco incorporou-se de vez ao verão, associada a virtudes terapêuticas e nutricionais. Muitas são pura fantasia, como a de que a bebida tem alto poder alimentar e substitui o soro fisiológico – uso a que se prestou na 2ª Guerra Mundial. "Ela refresca, hidrata e tem poucas calorias. Mas não é uma fonte de vitaminas nem de compostos ditos funcionais. Tem alto teor de potássio, mas baixo de sódio. Por isso, não substitui o soro. Pode até ter sido usada dessa forma, mas em emergências", explica, na unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) dedicada à agroindústria de alimentos, no Rio de Janeiro, a pesquisadora Lourdes Cabral.

Por ter mais frutose que sacarose e glicose, o produto beneficia-se de menos restrições ao consumo que os refrigerantes, inclusive aqueles diet e light. "A água de coco possui baixo valor calórico e não requer adoçantes artificiais", assinala a pesquisadora da Embrapa. Em sua composição entram também fósforo, cloro e magnésio. E, à reduzida quantidade de vitaminas (A, B1, B2, B5 e C), juntam-se baixos teores de carboidratos, proteínas e gorduras. Para repor energias, o mercado de bebidas refrescantes envasadas não dispõe de outro produto natural com efeito similar.

Do coqueiro ao mercado

No dia-a-dia das cidades, as técnicas de processamento industrial tornaram-se imprescindíveis para que o produto esteja ao alcance de brasileiros e turistas estrangeiros. Na competição travada em supermercados, mesas e balcões com refrigerantes, sucos e água mineral, três em quatro embalagens de água de coco apresentam o líquido esterilizado a temperatura ultra-alta (UHT, na sigla em inglês), o que permite o armazenamento por grandes períodos, a exemplo do leite longa vida. A água de coco também pode ser envasada, in natura, pelos processos de congelamento, por até seis meses, e de resfriamento, por até três dias.

"A composição da água de coco propicia o desenvolvimento microbiano, gerando problemas de conservação após a abertura do fruto", explica Lourdes Cabral. Enzimas presentes sobretudo em cocos novos são outro fator de instabilidade, e podem dar coloração rosada à bebida. "Os métodos de conservação visam remover total ou parcialmente a flora microbiana e conter a ação das enzimas, mantendo a qualidade do produto, principalmente o teor de sólidos solúveis e a acidez", diz a pesquisadora. Conservantes, quando são adicionados, devem ter especificação no rótulo.

O choque da UHT, a mais de 100ºC, elimina todos os microrganismos da água de coco, mas provoca leve alteração no sabor. "Influi, mas não prejudica", assegura o presidente do Sindicato Nacional dos Produtores de Coco (Sindcoco), Francisco Porto. É o preço a pagar em troca da conquista de posições num mercado dominado por bebidas artificiais. "Um nordestino criado com água de coco pode dizer que o sabor muda, mas o consumidor do sudeste ou do sul não sente", garante Porto, que está há 30 anos no ramo. Nordeste e outras regiões têm também, segundo ele explica, gostos diferentes: "O sulista prefere água de coco mais doce". Quanto mais novo o fruto, mais adocicado é o líquido.

Jovem entre as bebidas refrescantes de prateleira, atrás ainda do suco de laranja, que detém 3% do mercado de não-alcoólicos, a água de coco só tende a se favorecer do avanço das técnicas de processamento. Em pesquisa com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia, Lourdes Cabral desenvolveu uma tecnologia de ultrafiltração que mantém as propriedades da bebida e permite seu armazenamento prolongado, sem mudanças no sabor. Nesse processo, patenteado pela Embrapa e testado por uma envasadora de Maceió, os microrganismos e enzimas são retidos por uma membrana microporosa.

Outras pesquisas perseguem a obtenção de água de coco em pó. A inovação é fato acadêmico na Universidade Estadual do Ceará (Uece), mas está longe de ser realidade comercial. No mercado do coco-anão, a fórmula da desidratação industrial é sonho antigo. "Como a procura é sazonal, crescendo muito no verão por causa do calor, das férias e do turismo, seria possível estocar nos outros meses", explica Francisco Porto. Na estação quente, a demanda supera a oferta e infla os preços em mais de 30%. Citando as praias catarinenses, Philippe Mayer, da Coco Verde, explica: "O encarecimento ocorre porque o sul não bebe água de coco no inverno e tem consumo enorme no verão".

Demanda em expansão

O Brasil não dispõe de dados precisos sobre o tamanho do negócio da água de coco, cujas ramificações alcançam a economia formal e a informal. "É um mercado que vem crescendo em média 5% ao ano", exulta o presidente do Sindcoco, referindo-se à expansão engrenada no início da década pelas indústrias envasadoras. Francisco Porto estima que a maior parte da produção nacional de coqueiro-anão chega ao consumidor final por canais que passam pela informalidade. São milhares de quiosques, barraquinhas e carrinhos nas cidades e praias de norte a sul. "Mais de 60% da bebida é consumida in natura", ele afirma.

A popularidade em cidades como o Rio de Janeiro exemplifica a força do consumo direto no coco. No verão, cariocas e turistas consomem diariamente mais de 600 mil frutos verdes, estima Philippe Mayer, com o conhecimento adquirido na Coco Verde, que até três anos atrás distribuía o produto. "São mais de cem atacadistas. E mais de 60 caminhões de fruto descarregados por dia", afiança. Cada veículo, ele faz as contas, carrega 7 mil cocos, entregues a bares, supermercados, clubes, vendedores ambulantes e barracas na orla. Nos 35 quilômetros de praias, mais de 300 quiosques oferecem o produto aos banhistas, no coco gelado aberto na hora.

Com o fruto verde a R$ 1,50, em média, nas ruas e praias do país, só a água in natura movimenta, por baixo, R$ 1,8 bilhão por ano. Observando que as indústrias protegem cifras a sete chaves, Francisco Porto assinala que esse negócio guarda sinergia com o do leite de coco, a respeito do qual também há falta de dados fidedignos. Na economia do coco, só o ralado apresenta números confiáveis, porque o país dispõe de salvaguarda legal, destinada a preservar a produção da concorrência asiática. De acordo com o mecanismo protecionista, as empresas só podem somar importações anuais de 5 mil toneladas da polpa ralada. Entre nacional e importada, foram 31 mil toneladas em 2007, responsáveis pela movimentação de R$ 217 milhões no atacado.

O mercado formal de água de coco é abastecido por grandes, médias e muitas pequenas envasadoras. A maioria fica no nordeste, onde estão 80% das terras cobertas por coqueirais no Brasil. Três pesos pesados dominam a atividade – Sococo, Amacoco e Ducoco –, com fábricas em Maceió, Petrolina (PE), Itapipoca (CE) e Belém. Juntas, são responsáveis por mais de 70% das vendas de água envasada, além de produzir leite e coco ralado. Em Moju (PA), a Sococo mantém o maior coqueiral do Brasil, com 8 mil hectares. Graças a um supercoqueiro híbrido, colhe por ano o recorde de até 160 frutos por pé.

Popularizado como coco-da-baía, por ter desembarcado em solo baiano em 1553, trazido pelos portugueses, o fruto tem no estado o seu maior produtor. Dos 81,6 mil hectares de coqueirais da Bahia saíram em 2006 mais de 628 milhões de frutos (31,6% do total nacional). Bem atrás estão Pará, Ceará, Pernambuco, Espírito Santo, Sergipe, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Paraíba e Alagoas. Graças à tecnologia de manejo, capixabas e fluminenses têm o melhor rendimento, de mais de 13 mil cocos por hectare; o menor está entre os potiguares, abaixo de 3 mil frutos. Na média, a produtividade brasileira gira em torno de 7 mil cocos por hectare.

Essa diferença de desempenho explica por que, na geografia do coco, os estados do nordeste têm 80% da área dos coqueirais brasileiros e detêm, contudo, 66,5% da produção nacional. Em contrapartida, a intensificação da irrigação, as técnicas de adubação e o controle fitossanitário invertem a equação nas duas outras principais regiões produtoras. Do sudeste, com pouco mais de 8% da área plantada com coqueiros no país, saem 17% de toda a colheita. No norte, puxada pela produtividade exuberante de Moju, a produção de cocos é de 14%, numa área que corresponde a 9,7% do cultivo no país.

Desafio ambiental

Com 300 a 400 mililitros de água, cada coco verde pesa em média 1,5 quilo depois de esvaziado. A proporção entre líquido e sólido no fruto dá idéia do impacto ambiental criado pelo descarte das cascas após o consumo in natura nas ruas e praias. Somados, os 1,2 bilhão de frutos do coqueiro-anão produzidos em 2006, correspondentes a 60% de toda a colheita nos coqueirais, geraram nada menos de 1,8 milhão de toneladas de cascas. A grande quantidade de resíduos deixada nas vias públicas, recolhida pelos serviços de limpeza urbana, atravanca ainda mais os aterros sanitários.

"Como toda matéria orgânica, essas cascas são potenciais emissoras de metano, um gás de efeito estufa, e contribuem para diminuir a vida útil dos aterros. Provocam também a proliferação de animais transmissores de doenças, mau cheiro e até a contaminação do solo e de corpos de água", adverte na unidade de agroindústria tropical da Embrapa, em Fortaleza, a pesquisadora Morsyleide de Freitas Rosa. Engenheira química dedicada há oito anos à reciclagem, ela aponta como solução o aproveitamento das cascas para a produção de substrato agrícola, sob a forma de pó, e de manufaturas de aplicações variadas, a partir das fibras.

Grande parte do problema das cascas é creditada pelo químico Philippe Mayer à desatenção governamental. "É preciso mais consciência na esfera pública para fazer com que o setor privado trabalhe de forma profissional", alerta, referindo-se à negligência generalizada entre atacadistas e revendedores em relação ao destino dos resíduos. No Rio de Janeiro, ele exemplifica, a lei impõe ao comércio responsabilidade sobre o lixo de sua atividade, mas a Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb) acaba fazendo o recolhimento, em vez de punir os infratores.

Na contramão do descaso com as cascas, a Coco Verde bem que tentou conjugar a distribuição de frutos com a reciclagem, coletando os frutos após a venda da água. "Desenvolvemos e patenteamos uma tecnologia de aproveitamento da fibra para a manufatura", conta Philippe Mayer. Sem conseguir dar fluxo sustentável ao retorno das cascas, por falta de cultura de reciclagem no comércio, a empresa encerrou a distribuição em 2004. Em 2007, suspendeu também a reciclagem. "Ninguém tem interesse em separar as cascas. Estamos comprando fibra no nordeste", lamenta Mayer. Atualmente, 150 pessoas trabalham na Coco Verde, confeccionando peças para paisagismo, decoração e uso industrial.

Em todo o país, são pouco mais de dez as unidades recicladoras de cascas. Triturado e seco, o coco gera pó para plantio de mudas e desdobra-se em fibras que dão forma a vasos, tapetes, cordas, mantas para a indústria e a contenção de encostas e xaxim artificial, pois o natural, da samambaiaçu, está em extinção. Uma das primeiras unidades funciona desde 2005 em Fortaleza – um projeto da Embrapa com recursos do Banco Mundial. Tocada por ex-catadores de papel, a iniciativa não deslanchou, ao contrário de empresas de reciclagem e manufatura que até exportam peças de fibra, em estados como Pará e Minas Gerais.

Cascas deixadas para trás na capital cearense não faltam: só na Avenida Beira-Mar e na praia do Futuro, no verão, são mais de 40 toneladas por dia. Entretanto, com capacidade para processar diariamente até 15 toneladas, no bairro de Jangurussu, a recicladora não beneficia mais de 20 toneladas por mês e emprega cinco trabalhadores fixos, quando deveria ter 15. Pesquisador da Embrapa Agroindústria Tropical, Adriano Mattos atribui os problemas a falhas na mobilização e na capacitação gerencial dos ex-catadores. "A unidade não gerou o impacto social que se esperava", reconhece. "Do ponto de vista tecnológico, no entanto, vem cumprindo seu papel, como modelo para outras iniciativas."

A transformação do problema das cascas em solução tem um bom exemplo em Quissamã, no norte fluminense. No município, a cultura do coco teve início em 1991, como alternativa de diversificação agrícola frente à monocultura da cana, contribuindo para conter o êxodo rural. Em 2006, os agricultores colheram 8 milhões de frutos. Com apoio da prefeitura, a Cooperativa Mista dos Produtores Rurais de Quissamã montou, em 2002, uma envasadora que põe no mercado mais de 6 mil garrafas da Água de Coco Quissamã, líder nas prateleiras do Rio de Janeiro.

As cascas tornaram-se matéria-prima para o artesanato na região em 2002. Incentivadas pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), mulheres de localidades rurais aprenderam a aproveitar os resíduos do coco e deram início à atividade, apoiadas pela organização não-governamental Harmonia, Homem, Habitat (3Hs). Não demorou e estavam fornecendo luminárias, jogos americanos, cortinas e esteiras de forração de teto e parede para decoradores e lojas do Rio de Janeiro e da badalada Região dos Lagos. Batizada de Arte de Fibra, a iniciativa reforça a renda de 54 famílias da zona rural.

A prova de fogo das artesãs ocorreu em 2004, quando a Petrobras encomendou 6,6 mil jogos de mesa para presentear trabalhadoras no Dia Internacional da Mulher. "Foi 1,2 tonelada de coco de uma vez só, em 22 dias de muito trabalho. O grupo viu do que era capaz e pegou liga", lembra a gerente executiva da 3Hs, Darlene Monteiro. Elas dão utilidade a mais de 3 toneladas de cascas de coco por ano. "No Natal, foi uma bolada boa. Houve gente que ganhou R$ 600, R$ 800", conta. De olho nas exportações, as artesãs aderiram a princípios de responsabilidade socioambiental que orientam compras em outros países. "Não tem produto químico nem trabalho de crianças no projeto", frisa Darlene.

 

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