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Um país em que faltam corações

Deficiências no sistema de doação e captação de órgãos reduzem número de transplantes

CEZAR MARTINS


Rodrigo Marques, com os pais e o irmão
Foto: Cezar Martins

O Brasil tornou-se, em 26 de maio de 1968, a primeira nação da América Latina a realizar um transplante de coração. Apesar do pioneirismo, o país assiste há três anos a um retrocesso preocupante nessa área, pois houve uma diminuição de mais de 30% no número de cirurgias em pacientes que precisam de outro órgão para sobreviver. Um contra-senso quando se lembra que, há quatro décadas, o cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini ganhou respeito e notoriedade internacional ao implantar no mato-grossense João Ferreira da Cunha, o João Boiadeiro, um coração sadio. O peão morreu depois de 28 dias por causa da rejeição, mas o feito conseguido no Hospital das Clínicas, na cidade de São Paulo, fez com que a equipe brasileira se tornasse referência em todo o mundo.

Contudo, nos últimos anos, o país não se modernizou e hoje está atrás de vizinhos como Uruguai, Chile e Argentina, que asseguram à população melhores condições de acesso a esse tipo de tratamento. Em 2004, segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), foram feitos 206 transplantes de coração no Brasil, um recorde. No ano seguinte, o número caiu para 196 e em 2006 chegou a 139. Os Estados Unidos realizam, em média, 2,3 mil por ano. De janeiro a junho de 2007, a ABTO contabilizou 60 pacientes cardíacos transplantados, e a maioria dos especialistas esperava outro ano de decréscimo – a contagem final ainda depende de consultas aos hospitais de cada estado. "A partir de 1997 houve a regulamentação de todos os procedimentos referentes aos transplantes, e até 2004 o número de cirurgias cresceu 10% ao ano, o que era uma taxa boa. Mas parece que o sistema está saturado. Desde então, quase todos os transplantes que necessitam de doadores mortos diminuíram no Brasil", afirma a médica nefrologista Maria Cristina Ribeiro de Castro, cujo mandato como presidente da ABTO terminou em dezembro último.

O Brasil tem 335 pacientes na lista de espera por um transplante cardíaco, de crianças a idosos. Todos apresentam em comum o fato de que apenas um novo coração será capaz de mantê-los vivos, pois nenhuma outra alternativa de tratamento funcionou. "O transplante é uma medida tomada sempre em último caso, quando a doença cardíaca já evoluiu. O problema de diminuição na captação de órgãos se reflete muito mais no caso do coração, porque ele precisa ser implantado até quatro horas depois de retirado. A exigência de qualidade do doador é muito maior e um sistema sem a eficácia adequada diminui o número de cirurgias realizadas", opina Noedir Stolf, chefe da equipe de transplante cardíaco em adultos do Instituto do Coração (InCor).

O garoto Rodrigo de Melo Marques foi um dos poucos felizardos a conseguir um transplante em 2007. Há sete meses ele estava internado no InCor à espera de um novo coração, a única maneira de resolver a cardiomiopatia restritiva – doença em que as paredes dos ventrículos enrijecem e impedem o enchimento do músculo com o volume adequado de sangue – detectada em 2005. A cirurgia foi realizada em 12 de dezembro, dez dias após seu aniversário de quatro anos, com o órgão vindo de uma menina que morreu em Bragança Paulista, no interior de São Paulo. "Não se sabe o que causou a doença. Mas a boca dele ficava roxa e o fígado começou a aumentar. Ele amanhecia inchado e só podia tomar 500 mililitros de líquido por dia, incluindo leite e sucos. O que ele fosse beber, tinha de tirar dessa cota. Depois de um ano e meio passando por outros tratamentos, o médico disse que teria de fazer um transplante", lembra o pai do menino, Alexandre Vasconcelos Marques.

Antes de poder comemorar, o pedreiro de 38 anos vivenciou a angústia de esperar que surgisse um doador para o filho e ao mesmo tempo constatar que o sistema de captação de órgãos não funciona adequadamente. "No dia 25 de novembro apareceu um doador compatível. Mas ele teve uma parada cardíaca e não foi possível usar o coração." Até terem a família atingida em cheio pela necessidade de recorrer a um transplante, Alexandre e sua mulher, a bancária Cláudia, pouco sabiam da crise vivida no país. "Antes do Rodrigo, não tinha consciência de que as dificuldades eram tão grandes para conseguir um coração. Sabíamos que a boa notícia viria de uma tragédia para outra família, mas as pessoas são solidárias e querem doar. A falta de informação da população é um problema grande", afirma o pai do garoto.

Para os médicos e administradores dos hospitais, as campanhas educativas na mídia são importantes, mas apenas elas não resolverão a questão. Para fazer crescer o número de cirurgias, dizem os especialistas, o governo precisa investir maciçamente na capacitação de médicos e na aparelhagem dos hospitais. O país tem pouco mais de 5,4 doadores por milhão de habitantes, enquanto o Uruguai chega a ter 25, e a Espanha, líder mundial em transplantes, 33,8. Para aumentar o índice nacional, é preciso que mais profissionais estejam habilitados a diagnosticar a morte encefálica de um paciente. O segundo passo é criar na comunidade médica a cultura de notificar a presença de um doador às centrais de transplante com mais agilidade e eficiência, para que a família possa autorizar a retirada dos órgãos em tempo hábil. Hoje, estima-se que menos da metade dos casos de morte cerebral cheguem ao conhecimento das centrais a tempo.

Os espanhóis resolveram o problema a partir do início da década de 1990 com a criação de comissões remuneradas especificamente para buscar ativamente, em todos os hospitais credenciados daquele país, pacientes que poderiam vir a doar órgãos. A legislação brasileira já prevê algo semelhante, mas ainda é pouco eficiente. Uma portaria de 2005 do Ministério da Saúde determina que todos os hospitais com mais de 80 leitos constituam uma Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT). O problema é que os profissionais escalados para fazer parte desses grupos não recebem remuneração extra nem treinamento adequado e têm de acumular as novas funções com as que já desempenham. "Para que desse certo mesmo, precisaríamos ter algo como na Espanha", opina Stolf.

Aprimorar o trabalho das comissões é um dos projetos de Abrahão Salomão Filho, que assumiu a coordenadoria do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) no segundo semestre de 2007 com a meta de voltar a fazer o número de operações crescer. "Estamos trabalhando em cima dessa lei antiga para mudá-la. A nova proposta é estabelecer um pagamento para a equipe de busca de órgãos. Ela teria vencimento próprio, bancado com dinheiro repassado do Ministério da Saúde para as secretarias de cada estado." Otimista, o coordenador do SNT refuta comparações com outros países e diz que o sistema brasileiro é um dos melhores do mundo. "Desde agosto foram feitas diversas ações para reverter a queda no número de transplantes. Tenho certeza de que, quando fecharmos o balanço de 2007, o número de cirurgias terá voltado a aumentar."

No início de dezembro, o Ministério da Saúde reuniu, num simpósio de três dias em Brasília, especialistas em todos os tipos de transplante para discutir as estratégias de ampliação do número de cirurgias dessa natureza. O governo espera que os efeitos práticos dos debates comecem a ser sentidos neste ano, após um hiato no diálogo para a busca de melhorias. "O SNT tem câmaras técnicas para cada órgão. Quando elas se reúnem, trocam informações importantes e experiências. Fazia dois anos que elas não se encontravam, e isso pode ter contribuído para a queda dos números", destaca Salomão Filho.

Ainda que essas medidas funcionem, o país esbarra na estrutura precária de seus hospitais públicos. Isso porque, para que os órgãos continuem funcionando enquanto não são retirados, é preciso manter o paciente que sofreu morte cerebral ligado aos aparelhos da UTI, como se fosse um doente com chance de sobreviver. "Os médicos não conseguem olhar com a devida atenção para esse doador. Com a carência de leitos e recursos, é dada prioridade a quem pode viver, e não a quem já está em coma irreversível. Mas, nesses casos, se nada é feito, os órgãos que poderiam ser aproveitados também morrem", explica Maria Cristina.

Diferenças regionais

As doenças cardíacas são a principal causa de morte em todo o mundo, com cerca de 17,5 milhões de vítimas por ano, de acordo com levantamento da Organização Mundial da Saúde. O Brasil não é exceção, mas, por conta da deficiência do atendimento da rede pública, muitos doentes que poderiam ganhar mais tempo de vida nem sequer chegam a ser diagnosticados como candidatos a uma cirurgia para substituição do coração. "Não são todos os estados que fazem transplantes, seria difícil mesmo conseguir isso. Mas as cirurgias estão muito centralizadas no sul e sudeste do país. Em estados mais pobres, os pacientes morrem antes de ser incluídos na lista pelos médicos. É um problema crônico do sistema de saúde brasileiro", afirma a ex-presidente da ABTO. "São Paulo tem a maior lista de espera do Brasil, cerca de 40% dos casos que requerem transplante no país. Isso significa que muitos outros estados estão encaminhando seus pacientes por não ter condições de atendê-los", complementa.

De janeiro a junho do ano passado, o Paraná realizou 19 transplantes de coração e foi a unidade da Federação com o melhor desempenho, seguido de Minas Gerais e São Paulo (cada um com 11 cirurgias), segundo o Registro Brasileiro de Transplantes, relatório editado pela ABTO. Já os dados do Ministério da Saúde colocam São Paulo na liderança, com 23 operações contra 18 dos paranaenses. Os números parciais são bastante diferentes por conta dos métodos de apuração de cada órgão. Enquanto o governo federal coleta os dados nas centrais estaduais, a ABTO busca informações diretamente nos hospitais transplantadores – se algum médico sair de férias e não atualizar seus registros, o relatório pode ficar defasado até ser fechado o balanço total do ano, quando a recontagem é feita. Apesar das divergências, os dois levantamentos servem para mostrar o abismo que separa as regiões brasileiras. No mesmo período de 2007, segundo os números do governo, Pernambuco e Ceará – os dois únicos estados do nordeste que aparecem na lista – fizeram juntos apenas nove transplantes e nenhum havia acontecido nas regiões norte e centro-oeste.

No Brasil, a captação de órgãos e os transplantes são de responsabilidade das administrações estaduais, que organizam para isso centrais ligadas a suas secretarias de saúde. Mas é o Ministério da Saúde que regulamenta o sistema, por meio do SNT, e que arca com os custos da maior parte dos transplantes de coração, com pagamento feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Jussara Freitas Trancoso, coordenadora da central de transplante do Paraná, acredita que uma maior interação entre os representantes estaduais poderia estimular o país todo a aumentar o número tanto de doações quanto de cirurgias. "Cada estado tem sua forma de trabalhar, mas a troca de experiências e informações poderia ser bastante útil. O Paraná tem conseguido bons resultados na área de transplantes cardíacos, e os dados estão abertos para consultas", afirma a médica, que ressalva: "Nosso número de transplantes não é suficiente para a lista de espera que temos. Outros estados têm mandado seus pacientes para cá. Santa Catarina, por exemplo, diminuiu muito o número de transplantes de coração, e os moradores de lá se cadastram aqui".

Frustração

A frieza dos números e dos levantamentos estatísticos, muitas vezes, impede que a sociedade se sensibilize com tragédias familiares que poderiam ter sido evitadas caso houvesse uma pressão maior para um aumento exponencial dos transplantes. Foi com esse propósito que o engenheiro agrônomo e professor universitário Francisco Neto de Assis criou em 1998, ano em que seu filho Eduardo morreu por não ter conseguido um coração, a organização não-governamental Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (Adote). "A lei que regulamentava os transplantes de órgãos entrou em vigor em 1º de janeiro daquele ano e praticamente paralisou o sistema nos primeiros meses, quando ocorreram menos de 20 cirurgias. Não deu tempo de chegar um coração para ele", recorda o pai.

Eduardo tinha 15 anos e morava em Pelotas, no Rio Grande do Sul, quando foi incluído na lista de espera, em 13 de dezembro de 1997, por ter cardiomiopatia dilatada. Morreu depois de 165 dias, vítima da doença, que impede os ventrículos de bombear sangue suficiente para suprir as necessidades do organismo. "Até maio foram meses de muita angústia, porque não havia órgãos, mesmo a gente sabendo que os doadores existiam. Eu marquei 180 dias como um prazo razoável para o transplante acontecer e contava cada dia que passava como um a menos para a realização da cirurgia. A gente só se dá conta do drama depois que tudo acaba, porque não espera que aconteça o pior. Eu estava muito otimista", diz Assis.

Antes que seu filho se tornasse um candidato a transplante, o fundador da Adote já tinha constatado a ineficácia do sistema. No início de 1997, sua sobrinha Carolina morreu em um acidente automobilístico no Rio Grande do Norte. Os parentes tentaram doar os órgãos da garota de 17 anos, mas os médicos que a atenderam estavam completamente despreparados. Assis conta que os responsáveis pelo hospital não sabiam sequer para qual telefone ligar, informando a existência de uma doadora, e os órgãos acabaram desperdiçados. "Ainda hoje, vemos que o problema reside na falta de conhecimento dos profissionais. Mais de 70% das famílias aceitam doar os órgãos de um parente morto, mas menos da metade dos casos de morte encefálica são notificados", afirma.

Para a maioria dos parentes de pacientes que morrem sem conseguir realizar um transplante cardíaco, depois de constatadas as falhas atuais, resta o sentimento de impotência e frustração. "No dia seguinte à morte de Eduardo, voltei para casa e percebi que tinha uma filha adolescente, outro filho que estava na faculdade, e não tinha acompanhado as mudanças deles. Durante a doença, o espaço foi todo ocupado por um único filho. Isso acabou interferindo na relação com os outros dois, mudou completamente minha vida e a de minha mulher, Vera Lúcia", relata Assis, que publicou um livro sobre o drama de Eduardo e hoje dedica a maior parte de seu tempo à busca por melhorias na área de transplantes. "Criticamos, mas tentamos fazer isso sempre de forma construtiva. Temos uma relação muito boa com os hospitais e o governo, mantemos um nível de parceria mesmo. É intenção de todos que os transplantes funcionem no país."

Em contrapartida, os doentes cardíacos no Brasil que conseguem ser transplantados ganham novas perspectivas depois de recuperados. Embora a rotina deles seja completamente alterada por conta dos remédios diários, necessários para evitar a rejeição do órgão, o índice de sucesso nas cirurgias realizadas é bastante significativo – 78% dos pacientes que recebem um novo coração passam dos três anos de sobrevida. Um desses exemplos é o do ator Norton Nascimento, transplantado em dezembro de 2003 e falecido no final do ano passado, aos 45 anos, devido a complicações decorrentes de uma infecção pulmonar. Ele havia retomado sua carreira e encenado a peça Adão e Eva, o Clássico, escrita por sua mulher, Kely Nascimento, que trata da doação de órgãos. Quando o espetáculo estreou, Norton mostrou entusiasmo com a volta ao trabalho e destacou a importância das campanhas educativas para os profissionais e a população em geral. "Há medo de falar sobre a morte, mas é algo que um dia vai chegar. Porém, na morte existe a possibilidade de salvar vidas. As informações e as campanhas promovidas pelo governo têm de ser mais consistentes, para que as pessoas possam ser tocadas e conscientizadas. Eu sou uma campanha ambulante. Transplantar é dar alguma coisa que nunca mais teremos de volta."

Francisco de Assis cita ainda os ganhos científicos conquistados pelas instituições brasileiras que contam com especialistas em transplantes em seus quadros. O próprio doutor Zerbini foi um dos principais responsáveis pela criação e desenvolvimento do InCor, ligado ao Hospital das Clínicas, ainda hoje o mais importante centro de transplantes de coração da América Latina. "Algumas instituições vêem esse benefício, enquanto outras apenas levam em consideração a remuneração pelas cirurgias e às vezes se desestimulam com o montante pago por um transplante cardíaco. Quando damos nossa vida para que outros vivam a sua, o valor é tão alto que ninguém poderia pagá-lo." 

 

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