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Doente também é gente

 


Voluntários e crianças internadas: tratamento humanitário / Foto: Divulgação

Hospitais descobrem as vantagens de humanizar o tratamento

IMMACULADA LOPEZ

O sol está quente. As mães aproveitam para esperar o resultado dos exames no gramado em frente do prédio. Logo na recepção, desenhos coloridos anunciam que este é um hospital diferente. No pequeno saguão central, batizado de Praça do Bibinha, um grupo de pacientes espera o início da atividade cultural do dia, a ser realizada por voluntários, que já fazem parte da rotina dos atendimentos e internações.

Nos quartos, as crianças transformam a cama do hospital em seu pedacinho de mundo – que, apesar da dor e do sofrimento, não precisa ser triste ou solitário. Enquanto brinquedos se espalham pelos lençóis, peixes e borboletas reluzem nas paredes pintadas. Mas a principal diferença é a presença afetiva da família – mães, pais e familiares são muito bem-vindos. Cada criança tem direito a um acompanhante dia e noite, que conta com orientação da equipe, sala de descanso e refeições gratuitas.

O pequeno Daniel faz um desenho sob os olhos atentos do pai, que aproveitou o dia de folga para ficar com ele. Em outro andar, dona Teresa não sai do lado de sua recém-nascida. No quarto vizinho, uma enfermeira ensina a mãe a fazer o curativo, para quando seu filho receber alta.

Esse é o dia-a-dia do Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, onde há mais de 300 crianças internadas, muitas delas em estado grave – há casos de câncer, traumas cranianos, transplantes. Fica evidente o rigor técnico do atendimento. Mas o que mais surpreende é o respeito à dignidade humana.

O hospital, que começou sua história em 1919 com a ação da Cruz Vermelha, é hoje o complexo hospitalar com o maior número de especialidades pediátricas do Brasil, e dos seus atendimentos 75% correspondem ao Sistema Único de Saúde (SUS). Ao lado de outras instituições, o Pequeno Príncipe também está na vanguarda do chamado movimento de humanização hospitalar. Em reconhecimento a esse trabalho, recebeu este ano o Prêmio Criança 2002, concedido pela Fundação Abrinq a projetos que promovem os direitos das crianças e podem inspirar políticas públicas na área.

Novo conceito

"A humanização é algo óbvio: tratar as pessoas como pessoas", define o pediatra Donizetti Giamberardino, diretor clínico do hospital. Ele destaca que, nos últimos 50 anos, o conhecimento técnico-científico deu um salto, mas deixou de lado a importância do relacionamento entre o médico e o paciente. "Agora, estamos reconstruindo essa relação."

A humanização propõe uma nova maneira de olhar para o paciente – geralmente tratado como alguém passivo, submisso e ocioso. "Ele deve ser visto além da doença e reconhecido como sujeito, que continua tendo opinião, autonomia e direito à informação", diz o artista plástico Eduardo Valarelli, coordenador do Projeto Carmim, uma organização não-governamental que leva a arte aos quartos de hospitais em São Paulo (ver texto abaixo). Durante a internação, o doente e sua família ficam em meio ao desconhecido e inesperado, num momento de intensa fragilidade. Mais do que nunca, mereceriam atenção e respeito. "Muitas vezes apenas encontram pena e frieza", acrescenta Valarelli. Na contramão da rotina hospitalar, a humanização propõe que cada um seja considerado na sua subjetividade e que a internação se transforme numa oportunidade de descobertas e crescimento.

Há menos de um ano, o Pequeno Príncipe criou uma área específica para cuidar das atividades de educação e cultura do hospital. Contra a ociosidade e o isolamento, a equipe tenta abrir novos mundos para os pacientes. Enquanto funcionários se revezam contando histórias, pais redescobrem o prazer de brincar com os filhos. Nos saguões, crianças se reúnem para rir e aprender com música, teatro e vídeos educativos.

Através de uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação, a equipe também as estimula a manter o vínculo com a escola. No decorrer da semana, monitores ajudam-nas a fazer as lições, acompanham o estudo ou simplesmente trazem cartinhas dos colegas de sala. "Tudo isso é promoção de saúde", garante o psicólogo Cláudio Teixeira, coordenador da área. Afinal, ao poder criar, rir e sonhar, a criança fortalece o vínculo com a vida.

Várias dimensões

Faz parte da humanização não apenas a mudança de relacionamento entre o paciente e o médico, mas a de todos os profissionais – incluindo porteiro, enfermeiro, nutricionista, assistente social, faxineira – com os pacientes e seus familiares. Além da relação entre os próprios funcionários e, destes, com a diretoria do hospital.

As experiências mostram que há muito a ser feito. A par da humanização do atendimento, é preciso levar em conta a melhoria das condições de trabalho. Afinal, só pode atender bem o profissional que é valorizado e reconhecido. Torna-se importante fazer uma gestão mais transparente e participativa, bem como investir em cursos de formação contínua da equipe.

Porém, em geral, acontece o contrário: cada vez mais o serviço de saúde segue a lógica da rapidez, eficiência e produtividade, com sobrecarga de turnos e de pacientes. Apresenta também uma grande fragmentação e especialização do atendimento, desconsiderando a pessoa como um todo. Segundo Ety Cristina Forte Carneiro, coordenadora de relações institucionais do Pequeno Príncipe, nos hospitais em geral poucas vezes há espaço para o ouvido atento, o olho no olho, o toque. "E esses cuidados", avalia, "não são detalhes ou requintes, mas sim a essência do atendimento."

Ela afirma que uma boa assistência precisa levar em conta a integridade, individualidade e dignidade de cada paciente. "Quando uma família chega com sua criança doente, ela não espera apenas um diagnóstico e tratamento. Ela quer ser bem informada, respeitada e acolhida no seu sofrimento", diz Ety Cristina. De que adianta um atendimento ágil, se a família se sentir abandonada e aflita?

Alguns profissionais, entretanto, não se esqueceram disso. Em diferentes hospitais, a exemplo do Pequeno Príncipe, florescem iniciativas pioneiras, com propostas de um novo tipo de atuação. Muitas vezes, são organizações não-governamentais, como o Projeto Carmim ou os Doutores da Alegria (ver texto abaixo), que vêm instigando a reflexão e provocando mudanças na vida dos pacientes e profissionais da área. Atento a esses resultados, o próprio Ministério da Saúde lançou, em 2001, o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar.

A idéia nasceu dois anos antes, no final de 1999, quando o ministério fez uma pesquisa com os usuários para saber quais eram suas principais queixas quanto ao atendimento de saúde. Uma das primeiras se referia à má qualidade da relação com o profissional. "Essa constatação motivou o ministério a desenvolver um projeto voltado para as interações humanas nos hospitais, onde os conflitos são mais agudos", conta a psicóloga Eliana Ribas, coordenadora do programa nacional.

Iniciativa disseminada

A ação começou com um projeto piloto que incluía dez hospitais que já desenvolviam trabalhos diferenciados de humanização. Em seguida, ele foi estendido para 94 hospitais da rede do SUS, com a capacitação de 250 profissionais. Em 2002, o número de instituições subiu para 500. Nessa etapa, para garantir a multiplicação e descentralização da proposta, foram envolvidas especialmente secretarias municipais e estaduais de saúde.

A chave de ouro do programa reside na sensibilização e na formação de gestores e profissionais da área. "Não temos uma receita pronta, mas apenas diretrizes. Cada hospital deve encontrar seu caminho", diz Eliana Ribas. O ponto de partida é reconhecer potenciais na equipe, formar um grupo de trabalho, sensibilizar a diretoria e institucionalizar a proposta.

"A humanização só vai adiante se envolver a gestão dos hospitais", garante Ety Cristina, do Pequeno Príncipe. Em outras palavras, depende da vontade política de quem detém o poder. Não adianta contar apenas com a ação isolada de um ou outro funcionário. É preciso que a idéia "contamine" o hospital como um todo e tenha respaldo institucional.

"Começamos com o receio de encontrar muita resistência, mas o interesse e a adesão das pessoas estão sendo surpreendentes", conta Eliana Ribas. Afinal, todos saem ganhando: o gestor conquista maior reconhecimento; os profissionais ficam mais satisfeitos; os usuários têm melhor atendimento; os custos diminuem. Isso porque cai o número de faltas, reduz-se o desperdício de material e, principalmente, aumenta a adesão dos pacientes ao tratamento, o que abrevia o tempo de internação.

Portas abertas

Após participar das discussões do programa nacional, o Hospital das Clínicas (HC), de São Paulo, criou um Grupo de Trabalho de Humanização Hospitalar com o objetivo de articular e ampliar as ações já desenvolvidas nos vários institutos e unidades do hospital. "Nosso maior desafio é criar uma nova postura o dia todo, todos os dias", resume a assistente social Maria José Paro Forte, coordenadora do grupo.

O Instituto da Criança é um dos protagonistas desse movimento dentro do HC. Além de abrir suas portas para organizações não-governamentais, ele decidiu desenvolver projetos próprios. O Comitê Juvenil, por exemplo, reúne 50 adolescentes e jovens voluntários que realizam atividades de recreação nos quartos e na brinquedoteca do hospital. As famílias dos pacientes, por sua vez, recebem apoio emocional do Conselho Familiar, também formado por voluntários.

Ao mesmo tempo, a interação dos pacientes com os funcionários tem merecido atenção crescente. No projeto Conhecendo Quem Faz, as crianças internadas fazem um tour pelos bastidores do hospital, visitando as áreas de Recursos Humanos, Suprimentos, Rouparia e Restaurante. Por um lado, o ambiente se torna mais conhecido e amigável para elas. Por outro, os funcionários resgatam a afetividade de seu trabalho.

Comunidade ativa

Ao lado dos hospitais infantis, as maternidades têm ocupado a dianteira do processo de humanização. Na periferia de Belo Horizonte, o Hospital Sofia Feldman assumiu a assistência humanizada como missão. Esse compromisso lhe rendeu, já em 1999, o Prêmio Galba de Araújo, oferecido pelo Ministério da Saúde. Filantrópico, o hospital disponibiliza 100% dos seus leitos ao SUS, com uma média mensal de 700 partos.

"Sempre tivemos a preocupação de que o parto não fosse uma vivência estressante e solitária, como acontece em muitas maternidades", conta a psicóloga Júlia Cristina Amaral Horta, da equipe do hospital. Passo a passo, os profissionais foram encontrando caminhos para concretizar esse objetivo. Primeiro perceberam que, apesar de permitirem que as mulheres escolhessem um acompanhante para o parto, muitas continuavam sozinhas. Então, criaram em 1997 o projeto Doula Comunitária, pioneiro em todo o Brasil.

Mulheres da comunidade são preparadas para acompanhar as gestantes na hora da internação. São 14 voluntárias que ajudam no banho, fazem massagem, trazem palavras amigas. A cada plantão de 12 horas, uma doula está presente no hospital.

Ao mesmo tempo, a equipe reparou que, na seção de pediatria, algumas mães não podiam ficar o tempo todo cuidando de seus filhos. Outras precisavam de orientação e apoio para a amamentação. Resultado: nasceu o projeto Mãe Substituta, que envolve mais 14 voluntárias da comunidade.

Outro aspecto da humanização é reconhecer o direito de opinião dos pacientes. Com essa inspiração, o Sofia Feldman criou a função de ouvidor – exercida por um voluntário da comunidade que, através de questionários, recolhe e encaminha críticas, sugestões e denúncias dos usuários do hospital.

Chega a ser irônico que muitas famílias acabem encontrando nesses hospitais um espaço privilegiado de cidadania, tão ausente do seu dia-a-dia. Durante a internação, além de comida balanceada, cama quente e roupa limpa, têm acesso à cultura, educação, solidariedade. "Talvez, neste momento histórico, os hospitais brasileiros tenham de cumprir esse papel. Mas só faz sentido se o governo, a comunidade e o empresariado apoiarem e ampliarem essas iniciativas", diz Cláudio Teixeira, do Pequeno Príncipe. Dessa forma, a passagem dessas pessoas pelo hospital é apenas o começo de uma vida mais cidadã.


Artistas mostram as cores da esperança

Tintas, lápis de cor e pincéis são oferecidos ao paciente, que tem o direito de aceitar ou não – pelo menos, essa escolha ele poderá fazer dentro do hospital. O convite é de um artista do Projeto Carmim, uma organização não-governamental atuante em São Paulo desde 1996.

Formada por artistas plásticos profissionais, a equipe já faz parte da rotina de alguns hospitais da capital. "No começo, enfrentamos resistência. Muitos funcionários não entendem o que estamos fazendo ali e temem que atrapalhemos seu trabalho", conta Eduardo Valarelli, fundador e coordenador do projeto. "Mas, com o tempo, a mesma enfermeira que reclama da tinta no lençol passa a perceber o impacto da atividade na vida do paciente." Ao resgatar seu potencial criativo, ele aumenta sua auto-estima e passa a colaborar mais com o próprio tratamento.

A mudança começa com o convite do artista, que acredita na vitalidade do paciente. A partir daí, este se torna protagonista do processo e afeta a equipe que está a seu redor. "É uma enfermeira que sorri; o médico que passa e elogia; a copeira que pede o desenho de presente", diz Valarelli. Pequenas mudanças que revelam humanidade.

Com o objetivo de multiplicar a experiência, acaba de ser lançada a Carmim Escola Social de Arte. A idéia é preparar artistas, profissionais de saúde, ex-pacientes e educadores para utilizar as artes plásticas na promoção humana, sempre em busca de qualidade. "A humanização não pode se transformar num modismo superficial", alerta Valarelli. Não basta decorar corredores, "é necessário contar com pessoas formadas, com propostas criteriosas e consistentes".


Riso e fantasia

A brincadeira começa no olhar. Da porta do quarto, a dupla de palhaços pede licença para a criança. Enquanto algumas explodem em alegria, outras apenas esboçam um sorriso. Todas as reações são respeitadas. Se o sinal é verde, o improviso toma conta do quarto. A partir do que encontram pela frente, os artistas provocam a imaginação dos pacientes. Travam diálogos incríveis e criam mundos sublimes de riso e fantasia.

A fita métrica vira termômetro. Microfones de plástico se transformam em equipamento de radiologia. São comuns as extrações de "miolo mole" ou "chulé encravado". "Não negamos a realidade que a criança está vivendo, mas apostamos na sua capacidade de reinventar e ir além", explica a atriz Soraya Saide, que há oito anos faz o papel da agitada doutora Sirena no elenco dos Doutores da Alegria.

Fundado em 1994 como uma organização não-governamental, o grupo acredita que o humor é um recurso essencial para auxiliar as crianças e seus familiares a superar os traumas inerentes à doença e à internação e restituir a alegria a sua vida. Até hoje, os Doutores já visitaram mais de 200 mil crianças e, no momento, atuam em sete hospitais de São Paulo e dois do Rio de Janeiro.

"O principal objetivo é interagir com a criança numa relação horizontal, de igual para igual", diz a psicóloga Morgana Masetti, que assessora o trabalho da equipe. Ela conta que os pais logo percebem a mudança. Ao contrário da passividade e submissão esperada dos pacientes, seus filhos assumem uma postura ativa e participante, superando o estresse. Eles se sentem acolhidos na sua individualidade – deixam de ser apenas mais um número no hospital.