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Caminhos da metrópole

 

Obra aborda a longa trajetória da capital paulista em busca de soluções

CECÍLIA PRADA

A cidade de São Paulo é a segunda metrópole do mundo em população – mais de 10 milhões de habitantes –, um formigueiro humano que resultou de correntes migratórias diversas, atraídas por um pólo industrial e comercial que se firmou em torno da vila fundada pelos jesuítas. O crescimento se intensificou a partir da década de 1890, e sua vocação produtiva atrai diariamente dos municípios vizinhos uma população extra de 1 milhão de pessoas. Considerando a região metropolitana, a cidade atinge o status de megalópole, chegando a 18 milhões de habitantes.

Nada melhor para tentar entender o fenômeno da grande urbe em que vivemos do que o livro Os Rumos da Cidade – Urbanismo e Modernização em São Paulo, do professor Candido Malta Campos (filho do conhecido urbanista Candido Malta Campos Filho), lançado pela Editora Senac São Paulo. São 664 páginas que representam nove anos de uma pesquisa originada de tese defendida pelo autor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 1999. Abrangendo o período que vai da passagem do Império à República até os anos 1940, a obra atinge ponto culminante do trabalho coletivo de toda uma geração de urbanistas que desde a década de 80 procura analisar os problemas críticos das grandes cidades brasileiras – principalmente de São Paulo.

A partir dos diversos conceitos histórico-culturais que estiveram presentes em todas as tentativas de intervenção e planejamento do espaço paulistano no período estudado, a obra proporciona ao leitor um verdadeiro corte geológico nas "muitas São Paulos" que se sobrepuseram na primeira metade do século 20, examinando com densidade e rigor as estratégias de ação, as políticas eivadas de paradoxos adotadas, as ideologias subjacentes – e nos leva, em sua conclusão, a "pensar o que fizemos desta cidade", a "refletir sobre nossa machucada contemporaneidade", na expressão de seu apresentador, o professor Carlos Guilherme Mota.

Delimitando seu campo de estudo, o autor cita as várias tentativas de dividir a história da cidade e de suas modificações urbanísticas, estabelecidas por Benedito Lima de Toledo – a cidade colonial, a metrópole do café e a cidade atual; por Nestor Goulart Reis Filho – a cidade de taipa (até 1888), a cidade européia (1889 a 1930), a cidade modernista (1930 a 1960) e a metrópole atual; e Francisco Prestes Maia, que identificava "quatro surtos urbanísticos": as administrações de João Teodoro Xavier (1872-75), Antônio Prado (1899-1910), Raimundo Duprat (1911-14) e a sua própria (1938-45). Mas Malta Campos também adverte dos riscos que tais sistematizações podem acarretar, alimentando "a ilusão de totalidades coesas sucedendo-se sobre o mesmo espaço", o que poderia fazer perder de vista as disputas e contradições internas presentes sempre na sociedade em formação e na evolução urbana.

Não se trata de estabelecer divisões sumárias entre a classe dominante e a trabalhadora, mas sim de analisar, antes de mais nada, as fraturas existentes nas próprias classes dominantes – no plano nacional, a identificação tradicional da nacionalidade com o país rural, que tinha a "fazenda" como núcleo agregador e via nos recursos naturais e na exploração do imenso interior a programação prioritária, contra os principais centros urbanos, especialmente São Paulo, onde se digladiavam já fazendeiros (a "lavoura"), o complexo agroexportador (casas comissárias e importantes grupos ligados ao café), a indústria nascente e o comércio de importação.

Imprescindível, para essa análise do "campo de disputa" constituído pela grande cidade, um mergulho na história política do estado, com a divisão, desde o final do Império, entre "conservadores" e "progressistas".

Os engenheiros

Quando a sociedade provinciana do século 19, dominada por fazendeiros e bacharéis, começou a querer acertar o passo com o "progresso", o sonho de se criar entre nós metrópoles iguais em pujança e elegância aos grandes centros europeus foi tomando forma. Embora o preconceito contra os engenheiros, representantes da "técnica", fosse significativo, na década de 1870 o impulso dado à cidade de São Paulo pela cafeicultura, com o conseqüente estabelecimento das ferrovias e a centralização do escoamento pelo porto de Santos, estimulava a necessidade de reformular a capital, para que ela estivesse à altura do desenvolvimento econômico.

A figura de destaque dessa época foi o presidente da província, João Teodoro, que em um relatório revelava seus objetivos: "A capital, engrandecida, chamará a si os grandes proprietários e capitalistas da província, que nela formarão seus domicílios [...] o comércio lucrará, ampliando seu consumo. As empresas se fundarão [...] [tudo] graças às facilidades proporcionadas pelas vias férreas".

As conseqüências dessa política – designada mais tarde como "a segunda fundação de São Paulo" – foram obras de todo porte (alargamento de ruas, criação de praças e jardins públicos, organização do transporte coletivo), que estimularam iniciativas privadas de loteamentos e construção de residências de alto padrão.

Realmente, no último quartel do século 19 nada fazia prever a importância que a cidade atingiria, como ponta-de-lança da industrialização. São Paulo era considerada "um antigo entreposto de tropeiros" que, se não fosse por sua Academia de Direito e seus estudantes, poderia morrer de inanição. Enquanto a industrialização nascente concentrava-se no Rio de Janeiro e na Bahia, a própria expansão agrícola paulista estava centrada no município vizinho e concorrente, Campinas – cuja população em 1872 equivalia à da capital (pouco mais de 30 mil habitantes).

Exemplo de intervenção capaz de mudar a feição da cidade foi a "questão do viaduto" – a proposta de um litógrafo francês radicado em São Paulo, Jules Martin, para um viaduto que ligasse o "triângulo" do centro velho com o Morro do Chá causou uma polêmica que durou de 1877 a 1885, pois implicava a desapropriação e demolição de casas de famílias abastadas – principalmente a da baronesa de Tatuí, viúva do barão de Itapetininga. Contudo, outro fator, inteiramente aleatório, contribuiu para que a cidade de São Paulo assumisse a hegemonia no estado – a epidemia de febre amarela que atingiu a rival Campinas com inusitada virulência entre 1889 e 1897, causando a decadência de toda a região, só recuperada nos anos 1920.

A extensa e documentada pesquisa realizada pelo professor Malta Campos examina detalhadamente todos os planos urbanísticos e as intervenções isoladas feitas pelos sucessivos prefeitos e governadores paulistas e permite ao estudioso acompanhar passo a passo a abertura de avenidas, campanhas de saneamento, a construção de edifícios públicos, planos viários. Dá especial atenção, porém, à obra de três prefeitos que atuaram no período por ele examinado: Luís de Anhaia Melo, o "prefeito predileto dos ‘tenentes’ intervencionistas", mas que soube, no breve período que passou no cargo (1930-32), mostrar o excepcional urbanista que era; Fábio Prado (1934-39), dotado de ampla visão social e capaz de reformar a estrutura administrativa de toda a prefeitura, incrementando também a vida cultural (criou o Departamento de Cultura, cuja direção foi confiada a Mário de Andrade); e Prestes Maia, que desde a década de 1920 tentava, com João Florence de Ulhoa Cintra – um grande técnico e professor da Escola Politécnica –, articular um projeto urbanístico total para a cidade. Conhecido como "Plano de Avenidas", esse projeto, parcialmente implantado quando Maia chegou à prefeitura, é analisado com profusão de detalhes e profundidade crítica no livro de Malta Campos.

As duas cidades

A mais importante questão urbanística de toda metrópole – especialmente as dos países "em desenvolvimento" – é esta: permitir que sua expansão se faça de maneira espontânea e caótica, ou contê-la e discipliná-la por meio de legislação adequada e intervenções urbanas constantes e coerentes?

O grande complicador da questão é, no entanto, o aspecto ideológico que implica uma determinada visão urbanística, a qual, segundo a alternância de partidos e personalidades no poder, pode tornar-se inteiramente contraditória. Uma sucessão de prefeitos e governantes costuma retardar reformas imprescindíveis – quadro bastante conhecido de uma população que sofreu, e sofre, com obras interrompidas, verbas desperdiçadas. Um exemplo: a precariedade da rede do metrô de São Paulo. Discutida desde 1927 em relatório de James Dalrymple, um consultor escocês contratado pela prefeitura, sua construção foi sempre adiada por "desnecessária", em prol de "soluções viárias" espetaculares, englobadas dentro daquele sonho de dotar de avenidas largas o patinho feio que era a Paulicéia bastante desvairada, onde o tráfego febricitante de automóveis atestaria o progresso da cidade que – conforme se anunciava nos bondes da Light – era "o maior centro industrial da América Latina".

O prefeito Prestes Maia, mantido durante o período do Estado Novo, pôde realizar pelo menos parcialmente seu "Plano de Avenidas", coerente com a orientação "monumentalística" da autocracia. Mas engavetou os estudos anteriores sobre o pré-metrô (1927) e o metrô subterrâneo (de 1937, gestão de Fábio Prado), pois achava que "o crescimento disperso e circular da urbe faz prever condições desfavoráveis às linhas de trânsito rápido". Fácil criticar hoje a falta de visão do prefeito – mas é preciso lembrar que a sua época era ainda a do deslumbramento com o automóvel e a viação rodoviária. Erro semelhante caracterizaria, em plano nacional, a destruição da rede ferroviária em prol do plano exclusivamente rodoviário, prevalecente nas décadas de 1950 e 1960.

A impossibilidade de conjugar duas visões, a do momento presente e a do futuro, resultou obrigatoriamente em miopia – já em 1900 viajantes estrangeiros constatavam que em São Paulo havia uma "outra cidade" que não constava das belas fotografias de Guilherme Gaensly e que crescia em ritmo bem mais intenso do que as bizantinas discussões sobre arruamentos e ajardinamento. Era a cidade popular, que surgia ao lado da "oficial".

Um século depois, as mesmas contradições constituem o próprio tecido da urbe monstruosa que nos digere – só que as visões incômodas da miséria e da degradação não são um panorama longínquo e enfumaçado, elas estão entrelaçadas no cotidiano das grandes artérias financeiras, dos belos bairros residenciais, no paradoxo extremo civilização/selvageria que nos devora a todos, neste início de milênio. Somos parte integrante deste caos que novos projetos e um plano diretor abrangente pretendem disciplinar. Somos possuídos por esta cidade que tentamos em vão, durante mais de um século, domar, possuir.

Mas da própria precariedade de um planejamento total, da consciência de que ele é apenas, e simplesmente, o planejamento possível para o momento dado, nasce uma visão mais otimista, como a do ilustre geógrafo Milton Santos: "A região paulista praticamente já nasce moderna, tanto pelo lado da produção quanto pelo do consumo, mas também pelo meio ambiente construído, propício às transformações". Para ele, a idéia da grande cidade como espaço degenerado, caótico e desumano não passava de "um estereótipo, contraposto ao que seria o campo idealizado da visão romântica". Assumindo a metrópole em toda a sua complexidade, via-a também na riqueza do inter-relacionamento humano, nas trocas de informação, no processamento econômico, nas conquistas sociais: "A cidade é o lugar ideal, porque é o lugar onde todo mundo se comunica. Em todo caso, se comunica mais do que em outra parte. A cidade grande é o lugar da sociodiversidade. E quanto mais sociodiversidade, mais riqueza".

O antropólogo italiano Massimo Canevacci, que no livro A Cidade Polifônica (Studio Nobel, 1993) nos dá uma das mais sofisticadas imagens da urbe paulistana, citando Italo Calvino chama a atenção para o fato de que "não se deve confundir nunca a cidade com o discurso que a descreve" – já que, no caso específico da polifonia paulistana, temos "o paradigma inquieto de uma cidade que deve ser vivida de dentro e de fora", com a consciência da intrínseca força dialética que a propulsiona para o futuro.

É essa também a visão de Malta Campos. Nas páginas finais de sua obra, após analisar os novos dilemas que a cidade enfrenta nesta era de globalização, ele chama a atenção para a necessidade de reconhecer que o modelo de urbanização que nela persiste "não é único nem inevitável, tendo resultado dos embates em torno da modernização urbana ao longo do século passado". E expressa sua convicção de que somente na medida em que nos dispusermos a entender esse processo é que poderemos "abrir a possibilidade de criar outros projetos e outros rumos para a cidade".