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Sítio Conceiçãozinha / Foto: Maurício Monteiro Filho

Baixada Santista: reduzir emissão de poluentes não é suficiente

MAURÍCIO MONTEIRO FILHO

Passados 15 meses da publicação do último relatório da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) sobre a poluição do sistema estuarino de Santos (SP) e mais de duas décadas do auge da contaminação da Baixada Santista, ainda são inconclusas as informações acerca de seus reais efeitos sobre os ecossistemas aquáticos e, especialmente, sobre a população. Certo é que estão longe de serem suficientes os esforços de governo e indústrias na recuperação ambiental da região.

O relatório, tornado público em agosto de 2001, é o resultado de dois anos de análises de amostras coletadas em 26 diferentes pontos, distribuídos desde São Vicente até áreas afastadas da costa, como o Farol da Moela e a Laje de Santos. Todos esses locais representam corpos d’água que, direta ou indiretamente, participam da drenagem das áreas correspondentes às fontes poluidoras. O texto sintetiza mais de 30 mil dados fornecidos pela avaliação das amostras de água, sedimentos e organismos da região.

Passivo ambiental

Segundo o estudo, e como sustentam as campanhas publicitárias que propagam a revitalização do meio ambiente da Baixada, houve recuperação ambiental do estuário. Essa afirmação, no entanto, é contestada pelo engenheiro químico e perito do Ministério Público (MP) Élio Lopes: "Não se pode falar em recuperação. O que houve foi uma redução da carga poluidora". Efetivamente, em termos de volume, houve uma diminuição significativa dos poluentes lançados no sistema estuarino: os orgânicos sofreram redução de 93%, e a emissão de metais pesados caiu 97%. Mas esses valores isolados, e mesmo se consideradas algumas melhorias dos ecossistemas aquáticos da região, como o aumento do número de aves, não são suficientes para atestar recuperação ambiental.

Segundo a Cetesb, os investimentos no controle das fontes poluidoras do ar, do solo e da água da Baixada a partir de 1984 foram da ordem de US$ 800 milhões. O resultado, como aponta o relatório, foi uma drástica diminuição na emissão de poluentes. Entretanto, ainda segundo o documento, esse controle não pode ser considerado efetivo na "reversão dos efeitos deletérios da poluição". Quando muito, pode ser responsável pela manutenção da situação, que permanece grave. Afinal, recuperar não significa apenas deixar de poluir, mas reparar a contaminação já existente.

Muito mais sérias do que as emissões presentes são aquelas que se depositaram ao longo dos anos, na forma de sedimentos, no leito dos rios e corpos d’água da região, ou, o que é mais grave, que se acumularam nos organismos aquáticos. E sobre isso a postura das empresas – principais responsáveis por essa contaminação – não poderia ser mais reticente.

O mapa da poluição do sistema estuarino, apesar do número elevado de pontos de amostragem, restringe-se, pela importância e pela concentração dos poluentes, a umas poucas áreas, que estão na zona de influência de grandes indústrias. O trecho mais crítico é a bacia onde se localiza a Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa). Outro foco é o estuário de Santos, onde desembocam os rios Cubatão, Perequê e Piaçagüera, que concentra toda a contaminação proveniente do pólo industrial de Cubatão. Além disso, também agrega os fluxos oriundos dos canais do porto de Santos e do terminal marítimo da Cosipa. Outro caso que merece destaque é a situação do rio Santo Amaro, no Guarujá, que desemboca na porção externa do estuário de Santos depois de receber os efluentes da Dow Química.

Nessas áreas, segundo as amostras coletadas, a maior variedade e freqüência de poluentes foram detectadas nos sedimentos, o que indica uma contaminação passada, ou passivo ambiental, das indústrias. Segundo o gerente regional da Cetesb na Baixada Santista, Jorge Moya, o volume de lodo contaminado dragado por ano é da ordem de 5 milhões de metros cúbicos.

Os poluentes encontrados em níveis mais preocupantes nos sedimentos ao longo do estuário e nos rios da região são o BHC, um pesticida organoclorado, metais pesados – especificamente cádmio, chumbo, mercúrio e zinco – e os hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (PAHs). Estes últimos, segundo o relatório, estão presentes em níveis "extremamente elevados no canal da Cosipa". Nesse ponto, ainda de acordo com o documento, "os níveis de PAHs são muito superiores àqueles determinados em ambientes considerados poluídos em outras regiões do mundo".

Todos esses agentes, em alguma das amostras, apresentaram concentração que põe em risco a vida aquática. E o consumo de animais contaminados por cádmio e PAHs pode provocar câncer. "Não existem níveis seguros para essas substâncias no organismo. Qualquer concentração é perigosa e capaz de gerar dano celular", enfatiza o médico toxicologista Eládio Santos Filho, também perito do MP.

Outros poluentes de potencial carcinogênico – as dioxinas e os furanos – foram pela primeira vez avaliados em ambientes aquáticos no relatório da Cetesb. Não existe parâmetro, nacional ou internacional, para o comportamento dessas substâncias nesses ecossistemas. Alguns tipos de dioxinas – responsáveis pela contaminação de um depósito de cal na fábrica da multinacional belga Solvay, em Santo André, na região do ABC paulista – foram encontrados em 100% das amostras de sedimentos. Já os furanos foram detectados em 91% delas.

O principal problema da contaminação de sedimentos é a disposição final do material poluído. Como o lodo se acumula em grandes volumes nas zonas portuárias, é necessária a dragagem desse conteúdo para impedir o assoreamento dos canais. Entretanto, devido à presença de agentes poluentes no sedimento, seu armazenamento deveria ocorrer em locais apropriados. Em função do descarte indevido de lodo contaminado, áreas marinhas bastante distantes do estuário apresentaram altos índices de poluição.

A empresa cujo processo produtivo tem contaminado de modo mais preocupante os sedimentos é a Cosipa. A Cetesb exigiu da companhia um estudo que forneça alternativas para uma dragagem ambientalmente segura. "A técnica mais indicada para o caso da Cosipa é a construção de valas subaquáticas para depositar o lodo contaminado em maiores profundidades, recobrindo-o de sedimento não poluído", diz Luiz Roberto Tommasi, diretor-presidente da Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas (Fundespa), encarregada da elaboração da análise. Até que seja realizado um estudo satisfatório, qualquer dragagem dos canais do sistema estuarino está proibida pela Cetesb.

Sem histórico

O relatório da agência ambiental traz também o resultado da análise de amostras de organismos aquáticos – peixes, siris, caranguejos, ostras e mexilhões – encontrados no sistema estuarino. Nenhum estudo pôde, até hoje, estabelecer com precisão o risco que representa a ingestão desses animais para as comunidades que deles se alimentam com freqüência. De qualquer maneira, a Cetesb recomenda aos órgãos de saúde uma avaliação desse tipo, uma vez que alguns índices de contaminação dos organismos ultrapassaram os limites para consumo humano.

Do total de amostras analisadas, 14% excederam o nível tolerável para ingestão devido à contaminação por bifenilas policloradas (PCBs). "As PCBs têm sido relacionadas a câncer ginecológico e de mama. Além disso, podem ser transmitidas pela placenta, causando malformações fetais", explica Santos Filho. Cobre, níquel e zinco também ultrapassaram o limite. No caso deste último elemento, 18% das espécies coletadas indicaram concentração perigosa. Outra fonte importante de contaminação dos organismos foram os PAHs, especialmente os de alto peso molecular, que apresentam elevado potencial carcinogênico.

Os primeiros estudos sobre a poluição na Baixada foram realizados em 1972. Desse período até o relatório de 2001, a única avaliação abrangente sobre o sistema estuarino foi feita em 1988. Assim, não se pode estabelecer um quadro preciso da evolução da contaminação. "Precisaria haver uma série histórica de monitoramento", atesta o toxicologista.

A ausência desse panorama temporal da poluição acabou limitando o relatório da Cetesb. A companhia pôde constatar em seu estudo a redução dos níveis de poluentes importantes como o hexaclorobenzeno, organoclorado conhecido como HCB. Em 1989, 74% das amostras de peixes e 71% das de siris apresentavam traços desse poluente. Em 2001, esses números se reduziram para 2,5% e 6%, respectivamente. Entretanto, para agentes que nunca haviam sido avaliados, caso dos PAHs, PCBs, dioxinas e furanos, não se pode falar em redução ou aumento dos níveis de contaminação.

Esse fator se agrava uma vez que, sem uma avaliação histórica da poluição por esses agentes, não é possível determinar seus efeitos sobre os organismos aquáticos e as populações carentes que dependem desses animais como fonte de alimento e de renda. "O estuário continua impactado por substâncias altamente nocivas ao homem, mas não sabemos quanto as pessoas estão sendo afetadas", conclui Santos Filho.

Pesca improdutiva

Espremida pela maciça ocupação industrial da região, a comunidade de Sítio Conceiçãozinha tem hoje apenas 300 metros de abertura para as águas do estuário. Dali, a paisagem predominante é a das máquinas dos terminais portuários do canal de Santos. Porém, mais desolada é a vista das palafitas erguidas sobre o mangue. "Isto aqui era um sítio. Havia banana, mexerica. Hoje, é uma favela", diz, desconsolado, Ilson Vaz, morador local há 45 anos. Como muitos ali, trabalha como estivador, no terminal da Cosipa. Outros tantos vivem unicamente da pesca, atividade com a qual sustentam suas famílias. Direta ou indiretamente, pescadores e estivadores dependem das águas do estuário.

Essa é a situação da comunidade, estabelecida nessa área há mais de cem anos. De uma forma ou de outra, depende do emprego gerado pelas mesmas indústrias que degradam seus meios de subsistência. O Sítio Conceiçãozinha situa-se próximo à foz do rio Santo Amaro, que recebe poluentes da Dow Química. As amostras de sedimento do local apresentaram contaminação por vários metais pesados, além de BHC e PAHs. Em junho deste ano, a vereadora de Guarujá Maria Antonieta Brito elaborou um requerimento em que exigia um posicionamento da empresa quanto aos dados apontados pelo relatório da Cetesb e a denúncias das organizações não-governamentais (ONGs) Greenpeace e Coletivo Alternativa Verde (Cave), que motivaram, em 1998, uma representação contra a Dow no Ministério Público Federal. Em agosto, a empresa alegou que estava coletando "informações necessárias à prestação dos esclarecimentos solicitados" pela vereadora.

O relatório da Cetesb sobre as condições de contaminação do estuário e dos rios que nele desembocam só comprova o que populações como a do Sítio Conceiçãozinha experimentam no cotidiano. "Quando se pergunta a qualquer pescador dessas áreas, todos têm uma só opinião: a poluição acabou com o pescado", afirma Valton Bezerra, da União de Pescadores de Conceiçãozinha. Com isso, os cerca de 230 pescadores da comunidade precisam cada vez mais se afastar da costa, em direção ao alto-mar, em busca da antiga produção. Mesmo assim, a poluição já atingiu o Farol da Moela e a Laje de Santos. Segundo Newton Rafael, morador de Conceiçãozinha desde que nasceu, há 51 anos, os siris e os camarões praticamente desapareceram. "Com certeza por causa da poluição química das indústrias", diz ele.

Não bastasse a escassez, o consumo de peixes e frutos do mar também tem diminuído devido à possibilidade de contaminação. "Eu mesmo só como pescado de fora do estuário", confessa Ilson Vaz. E tudo isso acabou por trazer mais dificuldades aos pescadores, muitos dos quais, segundo Newton Rafael, foram obrigados a penhorar seus barcos.

Outros fatores poluentes, como a falta de saneamento básico, são também considerados culpados pela escassez da pesca na região. Entretanto, não se pode desprezar a ação industrial como a principal interferência nesse processo. Em outubro passado, a Dow Química alegou que o estudo da Cetesb "não permite identificar de maneira conclusiva, nesta fase, a efetiva origem dos agentes poluidores encontrados em todo o estuário". Esse dado é contestado pela gerente da divisão de análises hidrobiológicas da Cetesb, Marta Lamparelli. "Houve associação entre fontes e poluentes nos casos da Dow e da Cosipa", afirma ela. Outra grande responsável pela contaminação do sistema estuarino da região, a Cosipa, nem mesmo se manifestou sobre o assunto.

Na verdade, uma das alegações da Dow não pode ser questionada, pois não há possibilidade de relacionar definitivamente as substâncias poluidoras às indústrias de origem. A máxima associação consiste em ligar os locais poluídos às fábricas mais próximas, o que foi feito pela Cetesb, e indicar as empresas como prováveis responsáveis pela emissão daqueles agentes. O fato indiscutível é que o estuário e os rios da região encontram-se profundamente degradados. "A carga remanescente é alta o suficiente para manter a taxa de contaminação elevada", afirma o médico Eládio Santos Filho. Em vez de apontar culpados, a única iniciativa possível para a reversão do quadro é as indústrias assumirem o problema como global e investirem conjuntamente na recuperação ambiental, e não apenas no controle das emissões.

Questão de saúde

Aziz Nacib Ab’Sáber, geógrafo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), mantém-se cético sobre a recuperação da região. "Acabar com o problema é impossível", diz ele. "No caso de Conceiçãozinha, somando-se o número crescente de pessoas, o descaso do governo e o espaço estagnado do mangue, anuncia-se uma grande tragédia humana", completa o professor.

Para Newton Rafael, "quem perde o meio de subsistência, perde a dignidade". Essa frase sintetiza a situação dos moradores daquela comunidade e de outras que dependem da pesca e da coleta de animais na área do estuário e nos rios da região. À Cetesb cabe, em curto prazo, fiscalizar as empresas e estabelecer parâmetros restritivos à emissão de poluentes, através de mais estudos. "Estamos instalando sistemas de monitoramento contínuo nas indústrias e dando prosseguimento às avaliações da região", afirma Jorge Moya.

Outro órgão governamental envolvido, o Ministério Público, deve zelar para que os crimes ambientais cometidos na região não venham a se repetir. "Estamos efetuando investigações para a tomada de eventuais providências jurídicas", garante o procurador Antonio Daloia.

É escassa a legislação brasileira sobre saúde relacionada aos efeitos da poluição. A própria resolução 20 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), datada de 1986, que serviu de referência para muitos dos parâmetros adotados no estudo da Cetesb, não é suficiente diante dos efeitos da contaminação industrial.

Diante disso, torna-se urgente a elaboração da avaliação de risco recomendada pela Cetesb aos órgãos de saúde. Devem integrar o trabalho estudos sobre os hábitos alimentares das comunidades e exames que verifiquem a contaminação a que foram submetidas essas populações, especialmente através da ingestão de organismos afetados. "A via de ingestão é realmente preocupante", sustenta Marta Lamparelli. Por essa razão, está sendo constituído um grupo de trabalho formado pela Cetesb, pelo Centro de Vigilância Sanitária (CVS) e pelo Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE). "É um caso complexo, ainda mais por se tratar de uma área metropolitana", diz o diretor de Meio Ambiente do CVS, Sérgio Valentim. "Nosso objetivo é proceder à caracterização das fontes poluidoras e das populações para definir que iniciativas podem ser adotadas em benefício da saúde pública", complementa.

Enquanto isso, os pescadores e suas famílias continuam convivendo com a poluição e seus efeitos, à espera de soluções que, neste caso, dependem não só do poder público, mas principalmente "da boa vontade" de grandes grupos industriais.