Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

O poder da fantasia

 


Cena da peça "A borboleta sem asas" /
Foto: Marco Antonio Sá

Falta espaço e patrocínio, mas peças infantis fazem sucesso

Na platéia, os olhos atentos dos pequenos espectadores não perdem um detalhe da trama que se desenvolve no palco, onde uma borboleta que não pode voar, um vaga-lume cego e uma libélula muda enfrentam suas dificuldades com muita determinação. A peça A Borboleta sem Asas, extraída da obra original de César Cavelagna e adaptada por Carlos Alberto Soffredini, Marcos Okura e Marcos Ferraz, trata, com sutileza e propriedade, da deficiência física.

Por uma estranha coincidência, porém, essa montagem serve também como metáfora para descrever a situação em que se encontra o teatro infantil no eixo Rio-São Paulo. Não que faltem talentos para criar ou atuar – as deficiências aparecem mesmo é na disputa por espaço com as peças para o público adulto e, principalmente, no escasso interesse dos patrocinadores em investir em montagens para crianças.

A atriz Zezé Fassina, protagonista de Bonequinha de Pano, escrita por Ziraldo e encenada pela Cia. Stromboli da Cooperativa Paulista de Teatro, confirma que há um desgaste desnecessário nas ocasiões em que um espetáculo adulto e um infantil têm necessidade de utilizar os mesmos equipamentos. "Algumas vezes é por essa razão que nos deparamos com produções malcuidadas destinadas às crianças. Tem de haver mais seriedade e respeito com esse público", afirma.

As restrições, no entanto, não se esgotam aí. Para Irene Ravache, que também atuou em peças infantis no início de carreira e dirigiu, no final da década de 90, A Gema do Ovo da Ema, de Silvia Ortoff, os baixos salários e a limitação dos recursos destinados às montagens acabam afastando os atores consagrados, embora ela reconheça que há muitos profissionais competentes em atividade. Na opinião da atriz, é preciso muito jogo de cintura para fazer teatro infantil, uma vez que não é fácil trabalhar com a espontaneidade desse público. "Mesmo assim", diz ela, "imagino que seria divertido atuar num espetáculo a que meus netos pudessem assistir."

Já o produtor Fernando Lyra Júnior atribui aos próprios integrantes do universo teatral – entre eles atores e produtores de peças para adultos – a desvalorização do teatro infantil. "Começa pelo preconceito de afirmar que o profissional que atua em montagens para crianças é aquele que não deu certo." Lyra, que administra a sala de teatro da União Cultural, em São Paulo, também destaca o papel educativo dessa modalidade de arte: "No União, a escolha das peças é feita pelas próprias crianças. Estamos formando um público que chama a atenção do pai, se o celular dele toca durante o espetáculo".

Cofres fechados

Falar de falta de recursos no Brasil pode parecer redundante, mas no caso do teatro infantil trata-se de uma realidade com a qual os profissionais da área têm de lidar rotineiramente. Para o professor de dramaturgia do curso de Comunicação e Artes do Corpo, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), José Rubens Siqueira, a função da arte, além de divertir, é despertar e desenvolver o poder de questionamento das pessoas, e por isso não pode estar desvinculada da educação.

Com a bagagem de um diretor que sempre trabalhou com espetáculos infantis, Rubens Siqueira faz questão de ressaltar que a cultura não é uma mercadoria, mas um instrumento de conhecimento. Porém, em sua opinião, o que prevalece na prática é a lógica de mercado. Por conta do reduzido apoio oficial, as produções teatrais destinadas às crianças trabalham com verbas ínfimas. "Enfrentamos uma verdadeira censura econômica", diz ele. E desabafa: "Os governos não têm política cultural".

Na verdade, a questão do patrocínio é controvertida. Se por um lado ele é bem-vindo, por outro abre espaço para aproveitadores. O produtor carioca João Luiz Azevedo acredita que alguns critérios deveriam ser revistos, pois considera um absurdo o fato de certos espetáculos patrocinados gastarem R$ 600 mil numa produção e ficarem em cartaz por apenas dois meses.

A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, por sua vez, desenvolve o projeto Formação de Público, que em 2001 levou 200 mil pessoas ao teatro. A obra da companhia interessada em encenar nos espaços da prefeitura tem de passar pela avaliação de uma comissão curadora para obter a cessão, mediante uma taxa de 10% sobre a bilheteria, e permanece em cartaz por cerca de três meses. Segundo Celso Frateschi, responsável pela Divisão de Teatro da secretaria, não há uma destinação de verba específica para o teatro infantil. "Procuramos manter uma programação que atinja a população como um todo", explica ele.

Contudo, João Luiz Azevedo, que produziu o clássico de Maria Clara Machado A Bruxinha Que Era Boa, diz que prefere os teatros particulares – onde é possível contar com melhor promoção – aos espaços mantidos pela prefeitura e pelo estado. O motivo é o fato de os atores de sua produtora receberem um percentual de bilheteria. "Sem uma boa divulgação, não haverá público e, conseqüentemente, a renda cairá."

Os problemas de caixa, porém, às vezes são fruto das circunstâncias. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a produção da peça Bonequinha de Pano, que, por uma questão de prazo, teve de abrir mão do incentivo da Lei Rouanet para que a estréia pudesse acontecer na data prevista. Apesar disso, o espetáculo – um monólogo de 50 minutos que aborda temas como abandono e morte e não tem um final feliz – contou com um patrocínio de R$ 60 mil. A primeira apresentação aconteceu na Bienal do Livro, em São Paulo, no final de abril deste ano, e em seguida a peça entrou em cartaz no Rio de Janeiro.

Nos bastidores

Produzir um espetáculo de maneira que ele conquiste o público, muitas vezes sem contar com patrocínio ou apoio oficial, só mesmo sendo artista. Além de sensibilidade, é necessário talento empresarial e habilidade administrativa para impedir que os custos estourem o orçamento. Cenários, figurinos, músicos, iluminação, elenco competente, tudo isso tem um preço, e, invariavelmente, custa caro. Porém, não é o dinheiro que garante o sucesso, assim como a falta dele não significa, necessariamente, fracasso.

Montagens enxutas também caem no gosto popular quando conseguem usar a criatividade para contornar a escassez de recursos. É o que faz, por exemplo, a Cia. Stromboli, que produz os próprios espetáculos e controla os gastos na ponta do lápis. Como ela, o Grupo Escala da Cooperativa Paulista de Teatro não tem patrocínio e arca com todos os custos, além de pagar o salário dos atores. "Trabalhamos com material reciclado, como sobras do desfile de carnaval doadas pelas escolas de samba Gaviões da Fiel e X-9 Paulistana", conta o diretor Paulo Perez. "Também pedimos maquiagem para a Avon", acrescenta. Aqueles que integram o Grupo Escala não têm só ensaios e aulas de dança e coreografia em sua rotina. Todos também colaboram costurando os trajes e apresentando idéias.

Desde 1991, quando começou a trabalhar com o Grupo Escala, Perez já dirigiu vários clássicos infantis, como Robin Hood, Alice no País das Maravilhas, A Bela Adormecida, Cinderela e Pinóquio, que lhe valeram a conquista de quatro premiações da Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo (Apetesp) como diretor e coreógrafo, além de dois outros prêmios Coca-Cola e um Mambembe. "No Brasil, as peças infantis não são prioridade. Porém, como o Escala é proprietário do Teatro Paiol, ali o espetáculo para público adulto é que tem de se adaptar ao espaço", diz ele.

De fato, não é sempre que os espetáculos para crianças acabam relegados a segundo plano. A Cia. Stromboli, por exemplo, criou o Ciclo da Barata, com O Casamento da Baratinha, escrito e dirigido por José Rubens Siqueira, para crianças, e Metamorfose, de Franz Kafka, para adultos. Vingou o infantil, que caiu no gosto popular. Para a montagem, os recursos (R$ 25 mil) vieram do Prêmio Estímulo Flávio Rangel, conquistado pela companhia em 2001.

Fantasia e realidade

Engana-se quem acha que fazer teatro infantil é mais fácil do que encenar para adultos. Silvana Teixeira, que encarna a Malévola da peça A Bela Adormecida, diz que o processo de ensaios e o desgaste são os mesmos em ambos os casos. Ela também reclama da desvalorização dos espetáculos para crianças e afirma que freqüentemente essa discriminação parte dos próprios atores. "Muitos deles vêem esse espaço apenas como uma oportunidade para quem está começando profissionalmente, para aprender, se lançar e se promover. Depois, quando ficam famosos, não querem nem ouvir falar de teatro infantil." Mas não é isso o que acontece com Silvana. Ela diz que adora representar para os pequeninos e que a reação desse público é mais autêntica.

Antes da apresentação, quando o cenário, a iluminação e os figurinos já estão preparados, no camarim os atores se concentram num aspecto muito importante, principalmente nos espetáculos infantis: a maquiagem. "Nas produções para adultos", diz Silvana, "o público é mais crítico em relação ao desempenho do ator. Já as crianças se interessam mais pelo personagem propriamente dito, simpatizando ou não com ele." Embora a bruxa tenha uma forte conotação negativa, a Malévola interpretada por ela é sensual, cativante e divertida. "Tive essa preocupação para que os pequenos não sentissem tanto medo. Nós encenamos durante toda a semana em escolas, e há crianças de todas as idades", justifica.

Outro fator de destaque nas montagens para crianças é a música. "O ator precisa ter preparo vocal e técnico como um cantor", diz Cláudio Calunga, responsável pela preparação musical da peça A Borboleta sem Asas, em que o elenco canta sem playback e uma banda fica no palco durante todo o espetáculo. E ele acrescenta: "Principalmente porque as canções quase nunca saem do mesmo jeito. A linguagem é a mesma, mas o ritmo pode mudar ao sabor do momento".

Mas há também a questão do didatismo, e quem chama a atenção para esse aspecto é o ator Marco Aurélio Campos, que faz um caramujo na peça A Borboleta sem Asas. Em sua opinião, o teatro infantil, além de ser um difusor de cultura, está formando o público do futuro e por essa razão requer mais cuidado. "Facilitar o entendimento é um equívoco. Não se deve subavaliar o potencial da criança", alerta ele.


Um aliado na educação

O papel educativo do teatro é reconhecido por psicólogos, pedagogos e artistas. É uma eficiente ferramenta na recuperação de crianças com dificuldades de leitura, aprendizagem e comunicação. "Muitos conflitos que as crianças enfrentam dos 7 aos 12 anos podem ser resolvidos com o contato com o teatro e os contos de fadas", garante a psicopedagoga Cintia Constantino. A psicóloga Luciana Matos, por sua vez, não perde uma oportunidade de levar a filha Júlia, de 5 anos, às peças infantis. "Ela assiste ao espetáculo e participa ao mesmo tempo, interiorizando o conteúdo e aprendendo através do brincar", diz.
Na verdade, os recursos visuais e sonoros presentes nas peças teatrais são muito mais completos do que os apresentados nas imagens frias dos filmes ou nas páginas estáticas dos livros.