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Governo fragmentado

 


Campanha política de 2002 em São Paulo / Foto: Gabriel Cabral

Número excessivo de partidos dificulta a governabilidade

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES

No dia 12 de setembro, quase um mês antes das eleições de 2002, o Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo promoveu um debate sobre a situação político-partidária do país. O convidado foi Leôncio Martins Rodrigues, professor e especialista em ciência política. Autor de diversos livros e estudioso do assunto, Martins Rodrigues desenhou um mapa da situação partidária e ideológica do Congresso Nacional, analisando as perspectivas do novo governo a partir de seu relacionamento com o parlamento saído das urnas de outubro. Reproduzimos abaixo um resumo da palestra e do debate que a seguiu.

Meu objetivo é especular sobre a situação político-partidária que o presidente eleito em outubro encontrará. À luz dos resultados das eleições de 1990, 1994 e 1998, vou avaliar a força dos partidos e fazer uma reflexão sobre o mapa partidário da Câmara dos Deputados e do Senado e, conseqüentemente, do apoio parlamentar que o futuro presidente poderá ter em dois dos órgãos legislativos mais importantes da nação. Vou analisar mais detidamente a evolução dos partidos na Câmara dos Deputados, limitando-me a algumas observações sobre a composição partidária do Senado.

Na tabela abaixo vemos a distribuição das cadeiras por partido na Câmara dos Deputados, tal como resultou da eleição de 98, deixando de lado as trocas de legendas que aconteceram no decurso da legislatura. Uma das coisas que chama a atenção é a existência de um número grande de "partidos parlamentares", quer dizer, legendas que têm pelo menos uma cadeira na Câmara dos Deputados. Esse número parece excessivo e é freqüentemente responsabilizado pelos aspectos negativos do funcionamento do sistema político brasileiro. Note-se que, entre esses 18 partidos, oito elegeram menos do que três deputados.

Distribuição de cadeiras na Câmara
(1998)

PFL 20,5% PCdoB 1,4%
PSDB 19,3% PPS 0,6%
PMDB 16,2% PSD 0,6%
PPB 11,7% PMN 0,4%
PT 11,5% PSC 0,4%
PTB 6% Prona 0,2%
PDT 4,9% PSL 0,2%
PSB 3,5% PST 0,2%
PL 2,3% PV 0,2%
Fonte: Câmara dos Deputados

Vista a distribuição partidária do ângulo da governabilidade, da constituição de maiorias estáveis de apoio ao Executivo, o problema não está, pois, no número total de legendas mas no fato de que, com exceção do PFL, todos os chamados "grandes partidos" apresentam menos do que 20% das cadeiras da Câmara, porcentagem muito baixa.

O eleito em outubro precisa ter a habilidade de juntar as bancadas de pelo menos três partidos, provavelmente quatro ou mais. Para conseguir algum consenso, terá de pôr de lado propostas extremadas, tanto à esquerda quanto à direita, porque é mais fácil obter consenso indo para o centro.

O perfil partidário do Senado não é muito diferente do da Câmara dos Deputados. É interessante notar que num organismo com apenas 81 lugares haja dez partidos representados. A fragmentação partidária é tão elevada que as coligações parlamentares necessitam agregar-se em torno de quatro partidos.

Um parêntesis: a fragmentação tende a se repetir em algumas das assembléias legislativas, embora, no âmbito estadual, os índices de fragmentação sejam menores.

Esse mapa partidário tem-se mantido relativamente estável desde 1990. Desde esse ano, o número de partidos parlamentares parece ter-se estabilizado em torno de 18. No final da legislatura eleita em 86 havia 21 partidos parlamentares. Mas houve migrações e o número de legendas na Câmara se reduziu a 18.

Voltando ao tema principal, minha hipótese é que após outubro de 2002 deveremos estar com um número próximo de 18 partidos parlamentares, talvez um pouco menos em razão de certa seleção imposta pela competição.

No momento atual, o número de três partidos que podem ser chamados de grandes, com 81 ou mais deputados, parece estabilizado. O fenômeno interessante foi a queda de seis para três dos partidos que chamamos de tamanho médio, os que têm entre 31 e 80 parlamentares. Esses partidos, em princípio, reduzem os coeficientes de governabilidade.

Como se observa na comparação com a distribuição das cadeiras por partidos resultante da eleição de outubro de 1998 (ver tabela abaixo), houve mudanças de legendas. O número dos pequenos partidos (de 10 a 30 deputados), por exemplo, passou de três para cinco e o dos minipartidos (menos de dez cadeiras) baixou de nove para sete. E, durante a legislatura que termina em 2002, houve algumas alterações significativas na dimensão das bancadas. Os casos mais notórios foram o do PL, que elegeu 12 mas passou para 26 deputados; o do PT, que elegeu 59 mas pulou para 77; e o do PTB, que tinha 38 e baixou para 31.

Evolução do tamanho dos partidos na
Câmara dos Deputados

Partidos

1986 1990 1994 1998 9/2/2002
Grandes* 2 2 2 3 3
Médios** 1 6 6 3 3
Pequenos*** 3 3 3 3 5
Míni**** 5 8 7 9 7
Total 11 19 18 18 18
* 81 ou mais parlamentares / ** 31 a 80 parlamentares /
*** 10 a 30 parlamentares / **** Menos de 10 parlamentares
Fonte: Leôncio Martins Rodrigues, "Partidos, Ideologia e Composição Social"

Um número elevado de pequenos e médios partidos aumenta a fragmentação, leva a governos multipartidários e dificulta a tarefa de governar. Mas a distribuição partidária nos organismos legislativos admite muitas combinações.

Para possibilitar comparações, os cientistas políticos comumente utilizam alguns índices, embora com algumas deficiências. Um deles é o de Douglas Rae, que vai de zero a 1. Quanto mais próximo de 1, mais fragmentado é um sistema partidário. Se o índice fosse zero, significaria que um único partido teria recebido todos os votos. Outra fórmula, de Markku Laakso e Rein Taagepera, permite calcular o número de partidos relevantes, os que realmente contam.

Usamos essas fórmulas para avaliar o caso brasileiro. O índice de fragmentação, próximo de 0,90, é bastante elevado. Com muito otimismo, podemos acreditar que nosso sistema partidário avança lentamente para a redução do número de legendas. Mas é difícil esperar mudanças drásticas nas eleições de outubro porque, a não ser em certas ocasiões excepcionais, geralmente de ruptura ou forte crise institucional, a volatilidade eleitoral, em democracias consolidadas, procede mais lentamente. Provavelmente, na melhor das hipóteses, teremos cerca de seis partidos relevantes e um total de 18 partidos parlamentares.

Para uma análise mais precisa das mudanças no sistema partidário brasileiro, separei as principais legendas na Câmara para avaliar como evoluíram nas três últimas eleições. Destaquei o PPB/PPR (PPB não existia nas eleições de 90 e 94), o PFL, o PMDB, o PSDB, o PTB, o PT e o PDT. Esses partidos representavam, na atual legislatura, mais de 80% do total das cadeiras na Câmara dos Deputados (pesquisa sobre a performance dessas agremiações políticas está publicada no livro Partidos, Ideologia e Composição Social, de minha autoria).

Analisando retrospectivamente o desempenho dessas sete legendas ao longo das eleições anteriores, podemos traçar o seguinte quadro: crescimento muito forte e constante do PSDB; avanço forte e contínuo do PT; declínio pequeno do PPB; crescimento pequeno e constante do PFL; relativa estabilidade do PTB; redução acentuada e constante do PMDB; declínio muito forte e contínuo do PDT, o que sugere que esta legenda, a partir da próxima eleição, arrisca-se a se transformar num partido sem expressão.

Uma previsão sobre a distribuição ideológica dos partidos pode nos dar algum elemento de análise para a próxima composição da Câmara dos Deputados. Entre 1990 e 1998, a direita perdeu aproximadamente 13% de cadeiras. O centro cresceu 11% e a esquerda, muito pouco. É provável que essa situação se repita nas próximas eleições. E muito improvável que subitamente a esquerda chegue muito acima de 20% ou 25%.

Percebe-se que o bloco composto pelos partidos classificados como de centro foi o que mais avançou. Entendo que uma estabilização do mapa partidário está em curso e que ela está ligada a um deslocamento de todas as legendas relevantes em direção a posições de centro, que são as mais lucrativas eleitoralmente.

Se assim é, a hipótese mais provável, com a qual devemos operar, é a da manutenção, com pequenas alterações, da atual distribuição de força dos partidos. Parece mais certa uma simplificação dos campos ideológicos em virtude de uma reordenação que se efetuaria em torno de três legendas principais: o PFL, o PSDB e o PT. Com isso, provavelmente ocorrerá também uma pequena redução do número de partidos efetivos na Câmara dos Deputados para aproximadamente seis.

Para terminar, julgo que poderíamos extrair dos perfis das legislaturas anteriores a conclusão de que está em curso a estabilização do sistema partidário brasileiro. Se a conclusão parece muito forte, poderíamos dizer, de modo menos categórico, que não temos um sistema que pareça caminhar para a desagregação ou para mudanças muito acentuadas que viriam do enfraquecimento e mesmo da morte súbita de um ou mais partidos e do nascimento de outros, como ocorreu na passagem do bipartidarismo do regime autoritário para o multipartidarismo que seguiu a Constituição de 88.

A dominância nos três campos ideológicos dos partidos principais antes mencionados não implica uma redução equivalente no número de legendas relevantes. Partidos de tamanho médio, com alguma capacidade de pressão, continuariam a existir.

 

Debate

ISAAC JARDANOVSKI – Os números apresentados mostram que há uma predominância das legendas de direita e de centro no Congresso, alguma coisa perto de 80% da estrutura partidária. Você não acha que é pelo menos inusitada a ausência de um candidato de direita à presidência da República?

LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES – Acho que sim, e vou mais longe. Um aspecto muito curioso da política brasileira é que as pessoas não gostam de se dizer de direita. Fiz uma pesquisa com os constituintes, e apenas 6% deles se disseram de direita radical – a maioria afirmava que era de centro. Os que se punham à esquerda eram muitos. Isso está ligado a nossa cultura política. Essa classificação de esquerda, no caso da maioria dos candidatos, não resistiria a uma avaliação mais séria de suas posições. Não consigo explicar isso, mas é visível também que hoje em dia diminuiu um pouco o encanto de ser de esquerda, é melhor ser de centro-esquerda.

ROBERT APPY – Há esperança de uma reforma política na próxima legislatura?

LEÔNCIO – Não acredito em reforma política nenhuma. Essa história de voto distrital misto é quase impossível nas condições do federalismo brasileiro. As eleições são simultâneas para as assembléias legislativas e a Câmara dos Deputados. Isso criaria uma complicação enorme e não atenderia, no caso do Brasil, a nenhuma das vantagens proclamadas, como aproximar o eleitor de seu deputado ou melhorar a representação.

JULIAN CHACEL – De acordo com sua exposição, o novo presidente terá de estabelecer uma coalizão, e isso significa, evidentemente, que a margem de manobra para modificações radicais nos rumos da política, sobretudo econômica, será restrita. Na verdade o novo presidente poderá fazer aquilo que as circunstâncias permitirem, o voluntarismo político terá de ser deixado de lado.

LEÔNCIO – Estou de acordo. Todos os que passaram pelo governo devem ter percebido a dificuldade de levar à prática certas idéias que defendiam quando estavam fora.

JANICE THEODORO – Em relação ao crescimento de alguns partidos, o que isso significa em termos de realidade brasileira? Para onde estamos indo? Como fica a governabilidade?

LEÔNCIO – Os deputados não são insensíveis aos chamados do Executivo, então não é muito difícil conseguir apoio se o presidente for suficientemente hábil. E na verdade eles têm sido, como José Sarney e Fernando Henrique Cardoso. Só Fernando Collor não foi.

MANUEL HENRIQUE FARIAS RAMOS – Parece-me que está havendo um certo deslocamento dos partidos, da questão política para a econômica. Basta ver a bancada rural, a dos bancos, etc. Fiquei sabendo que as grandes redes varejistas de supermercados querem fazer uma bancada de 50 deputados. São grupos que decidem. Creio que a questão política precisaria ser descolada da econômica.

LEÔNCIO – As bancadas corporativas existem e atuam fortemente. Mas os estudos mostram que, apesar de sua ação, os interesses corporativos não se apresentam assim de uma maneira tão clara. Na legislatura que termina em 2002, cerca de 60% dos parlamentares do PFL e do PPB tinham sido ou eram empresários. Eles apareciam em bom número também no PMDB, diminuíam no PSDB e no PDT e praticamente desapareciam no PT.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Já li que a origem da designação direita e esquerda está na assembléia que se instalou em Paris após a Revolução Francesa. À esquerda da mesa sentavam-se os mais radicais e à direita, os outros. É também engraçada a colocação de conservadores e progressistas, como se aqueles também não visassem o progresso e estes não conservassem alguma coisa, até como base para o progresso. É portanto muito superficial esse jogo de palavras.
O conferencista deixou claro que não vê uma importância muito grande na reforma política. Coloco uma posição contrária, pois acredito que a reforma essencial é a política, nela incluída necessariamente a partidária. Até porque só através dela poderíamos mudar o sistema atual, eivado de vícios, que se transformou em uma porta aberta à corrupção e troca de favores.
Concordo, entretanto, que seria muito difícil executar uma reforma política competente, honesta e eficaz, que somente poderia ser realizada pelos que não têm interesse nenhum em fazê-la, para manter seus privilégios. A conclusão é pessimista: ainda por muito tempo teremos de conviver com as mazelas e os desencontros do que aí está.

LEÔNCIO – No Brasil, a circunscrição básica é o estado. Cada estado tem direito pela Constituição a um mínimo de oito e um máximo de 70 deputados na Câmara. É praticamente impossível mudar o modelo de federação brasileira ou dar a São Paulo cento e poucos lugares, tirar sete do Acre, etc.

JACOB KLINTOWITZ – O centro no Brasil, no seu levantamento, tem maioria. Será possível o entendimento dessas categorias em relação às novas questões contemporâneas, como a legislação trabalhista, a formação de blocos políticos internacionais?

LEÔNCIO – Na realidade, é possível encontrar ou definir posições a partir de questões concretas. Algumas coisas são muito contraditórias entre direita e esquerda. A direita é associada a conservadorismo e a esquerda seria progressista, mas penso que é o contrário, pois a esquerda é conservadora em quase tudo, é contra o progresso.

FÉLIX SAVÉRIO MAJORANA – Se em vez de usarmos esquerda e direita adotarmos o espectro de cores, diríamos que o PL é branco e o PT, vermelho. O senhor acha que com essa coligação dos dois o PT fica mais róseo ou o PL é que vai ficar mais vermelho?

LEÔNCIO – Vai dar laranja.

NEY PRADO – A grande dificuldade é saber se essa mudança de atitude de determinados partidos não é apenas uma estratégia de acesso ao poder.

LEÔNCIO – No que diz respeito à oposição ao governo, uma mudança importante nestes últimos tempos foi o desaparecimento dos partidos anti-regime. O próprio PCdoB esquece o seu passado albanês, chinês e stalinista. O PT escondeu essa sua parte.
Pelo conhecimento que tive de Lula no início de sua carreira política, como líder sindical, sempre achei que dentro do partido ele era o mais direitista, o mais pragmático, mesmo porque não tem informação para entrar em debates ideológicos com os militantes intelectuais do PT. Mas para o partido era o único candidato com possibilidades de chegar ao poder. A força de Lula era o carisma que se traduzia em votos.
A briga no governo provavelmente será por cargos com uma cobertura ideológica. As facções que se sentirem prejudicadas vão dizer que Lula está traindo a bandeira. Posso citar uma quantidade enorme de exemplos de esquerdistas que, chamados para exercer um cargo governamental, esquecem tudo o que falaram.

ISAAC – Isso vale até para o presidente atual.

LEÔNCIO – Tenho medo da incompetência de uma nova equipe. Mas não creio que Lula vá colocar em prática nenhuma política mais à esquerda.


O crescimento do PT

A eleição de 6 de outubro de 2002 praticamente confirmou as análises de Leôncio Martins Rodrigues. Os partidos principais na Câmara são quatro: PT (91 deputados), PFL (84), PMDB (74) e PSDB (71). A diferença a notar foi o grande crescimento do PT, que de 11,5% das cadeiras em 1998 passou para 17,7%. O PFL, que detinha 20,5%, caiu para 16,3%. O PMDB diminuiu de 16,2% para 14,4% e o PSDB, de 19,3% para 13,8%.

No Senado, esses quatro partidos também lideram, e o fenômeno PT igualmente se revelou: de 9,9% que detinha em 1998, passou para 17%, enquanto o PMDB viu sua bancada reduzida de 27,1% para 23% e o PSDB de 18,5% para 14%. O PFL também cresceu, de 22,2% para 23%.

Observe-se que os valores indicam o resultado da eleição de outubro de 1998, e não consideram transferências ocorridas durante o mandato.