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Tempos de imagem

Ilustração: Thiago Lopes
Ilustração: Thiago Lopes

*Por Lívia Aquino


"Comprou uma passagem eterna num trem que nunca acabava de viajar. Nos cartões-postais
que mandava das estações intermediárias, descrevia aos gritos as imagens instantâneas
que tinha visto pela janela do vagão,  e era como ir rasgando em tiras e jogando
ao esquecimento o longo poema da fugacidade."

"Cem anos de Solidão" - Gabriel Garcia Márquez

 

O cartão-postal é um objeto que remete a distintas experiências desde a sua criação, no século XIX. Pode estar relacionado à correspondência, às informações e aos afetos trocados, a vistas compartilhadas e ao conhecimento do mundo por meio de suas estampas. Inúmeras são as instituições que abarcam coleções desses artefatos importantes para o estudo da nossa relação com as viagens e com a percepção das imagens nesse campo.

Nesse momento, tomamos como ponto de partida uma cena do filme Les carabiniers, traduzido no Brasil como Tempos de Guerra, de Jean-Luc Godard (1963). Ali, os personagens Ulysses e Miguel Ângelo voltam da guerra para casa trazendo apenas uma pequena mala; dentro dela, dizem, há tesouros do mundo exibidos em cartões-postais de monumentos, meios de transporte, lojas, obras de arte, indústrias, riquezas da terra, maravilhas da natureza, paisagens, animais, continentes e até planetas. Enfatizam que, naturalmente, cada parte se divide em vários pedaços, que por sua vez se repartem em outros. Começam então a colocar sobre a mesa essas pequenas porções de mundo, em movimento compulsivo que aos poucos delata sua crença de que aqueles artefatos representam lugares que lhes pertencem. Muito embora o filme retrate uma viagem feita para ir a uma guerra, faz analogia do valor e do lugar das imagens por meio desses suvenires que os fazem crer, ingenuamente, na posse do mundo que percorrem. Em parte, as fotografias presentes nos cartões sugerem certa noção de permanência da experiência em imagem desenhada com a modernidade, e Les carabiniers aponta isso naquele momento de crescimento do turismo de massa.

Vale lembrar que a fotografia se encontra presente em diversos aspectos da vida social ligada às viagens, desenvolve-se nos estúdios que surgem em cidades e pontos de paragem para os turistas e também na difusão dos cartões-postais e suvenires. Entre 1840 e 1915, aproximadamente 750 fotógrafos suprem os turistas que visitam Roma com diversos tipos de vistas de paisagens, monumentos, ruínas, arquitetura e arte. Somente na década de 1910, a venda de cartões-postais chega a 860 milhões.

Ao longo do século passado, o turista produz novas impressões ao visualizar cenas e situações não observadas no dia a dia. Seu olhar acaba tornando-se visualmente objetificado por meio dos suvenires, como cartões-postais e guias, ou mesmo pela realização de imagens que remetem aos locais visitados e que ali se originam na própria fotografia que produz. O viajante passa a desejar e consumir não só aquilo que envolve o deslocamento e a estada, mas também objetos e lugares que compõem a experiência moderna de ser turista, pois, no conjunto, compra-se uma viagem como qualquer outro bem de consumo.

Assim como no filme de Godard, o turista moderno parece tomar posse das coisas e dos lugares por meio das fotografias e cartões-postais, que exibe como troféus em encontros de amigos ou na atualidade das redes sociais. Ao mesmo tempo, ele cria e consome imagens no contexto de uma cultura visual relacionada às viagens, fazendo parte de um circuito de operações no qual pequenas partes do mundo são catapultadas para outras tantas.

 

Pesquisadora do campo das artes visuais, Lívia é professora e artista. Doutora em Artes Visuais e mestre em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente, é coordenadora da pós-graduação em Fotografia: Práticas Poéticas e Culturais e professora da pós-graduação em Práticas Artísticas Contemporâneas da FAAP. Autora do livro “Picture Ahead: a Kodak e a construção do turista-fotógrafo”. Vive e trabalha em São Paulo, Brasil.
 

 

No mês de outubro, quando se comemora os 70 anos de atividades de Turismo Social, o Sesc São Paulo convida o público a conhecer melhor e refletir sobre a história e importância do cartão-postal por meio do Festival de Turismo Paisagens Postais, que acontece no período de 27 de outubro a 11 de novembro de 2018 nas unidades do Sesc em todo o Estado.

Aqui na EOnline apresentamos algumas histórias sobre este objeto tão marcante no universo das viagens – e que, seja como registro histórico, manifestação de afeto ou item de colecionismo, atravessa o tempo e se reinventa de acordo com o contexto histórico e social em que está inserido, a localidade onde é produzido e o propósito que orienta sua confecção.

Boa leitura e boa viagem!

Saiba mais em sescsp.org.br/paisagenspostais