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Nos encontramos lá no centro

Por Guilherme Wisnik

São Paulo é uma cidade que não cultiva sua memória, fazendo da transformação permanente a sua identidade, sua condição de existência. Foi o que percebeu o antropólogo Claude Lévi-Strauss ainda nos anos 1950, identificando o fato de que em São Paulo a pujança construtiva coincide muitas vezes com o estágio de abandono e ruína. Portanto, as construções nem bem chegam a terminar e, frequentemente, já se vêem abandonadas, assumindo a incompletude como um estado de “ser”. São Paulo: três cidades em um século, é o título de um livro clássico do professor Benedito Lima de Toledo. Três cidades construídas vorazmente uma por cima da outra, como um palimpsesto, num breve espaço de tempo: as cidades de taipa, de alvenaria e de concreto.

São Paulo cresceu e se expandiu, no século XX, seguindo a lógica predatória da degradação e da revalorização, guiada pela especulação imobiliária e pelo rodoviarismo. Assim, novos centros econômicos são gerados, deslocando o vetor de valorização fundiária, e deixando atrás de si rastros de abandono. Nesse processo, buscando um certo idílio protetor, as elites e classes médias se refugiam em áreas cada vez mais distantes, em condomínios fechados, renegando a cidade e, com ela, o seu significado maior: a ideia de espaço urbano como lugar de convivência fraterna e conflituosa; lugar da prática da cidadania, do encontro com a diferença.

Do ponto de vista do capital financeiro, nossa “paisagem de poder” foi se deslocando progressivamente na direção sudoeste. Primeiro, da colina histórica onde surgiu para a chamada “cidade nova”, do outro lado do Vale do Anhangabaú, em torno da Praça da República, onde se localiza o Sesc 24 de Maio. Depois, seguiu dali para o espigão da Av. Paulista, em seguida para os baixos da Av. Faria Lima, e de lá para a Av. Luís Carlos Berrini e para a Marginal Pinheiros. Enquanto isso a área central, dos dois lados do Anhangabaú, se viu esvaziada. Ao mesmo tempo, foi sendo progressivamente ocupada por populações de baixa renda, em apartamentos de aluguéis baratos, em cortiços, em ocupações clandestinas, e por populações que vivem nas ruas. A região apresenta um alto índice de imóveis vazios, o que é um enorme contrassenso numa cidade com tanta carência de moradias, sobretudo em uma área tão bem equipada de serviços em geral.

As consequências mais evidentes disso são o empobrecimento da região, e o seu visível esvaziamento durante a noite, já que boa parte da população que a ocupa diariamente o faz sobretudo, e apenas, em horário comercial. Ao mesmo tempo, não é certo afirmar que o centro precise ser “revitalizado”, como se estivesse, hoje, em uma condição pouco vital. Quem anda pelas ruas Vinte e Cinco de Março, Florêncio de Abreu ou Santa Ifigênia, por exemplo, encontra tudo menos um lugar desvitalizado. O discurso da revitalização é, em geral, ideológico. Promove uma ideologia “gentrificadora”, não assumindo a força popular do centro como um valor genuíno.

A área central da antiga “cidade nova”, situada justamente entre o Vale do Anhangabaú e a Praça da República (eixo da Av. Ipiranga), é também um tecido urbano sui generis e muito rico, caracterizado pela presença de inúmeras galerias comerciais, que atravessam quarteirões através de aberturas internas, permitindo passeios agradáveis e surpreendentes. Refiro-me, por exemplo, à Galeria do Rock, à Nova Barão, e à Califórnia – esta, projetada por Oscar Niemeyer –, entre várias outras. Trata-se de um sistema de espaços públicos e comerciais de caráter eminentemente metropolitano, feito para a fruição pedestre, equivalente em certa medida ao famoso sistema de galerias comerciais de Paris – as “Passagens” – tão bem analisado por Walter Benjamin como o epítome da modernidade urbana. Um modelo de cidade que foi superado em grande medida pela emergência do automóvel, mas que permanece intacto nessa região de São Paulo, aludindo a uma experiência urbana mais genuína e menos controlada pelos sistemas excludentes de segurança e de consumo, tais como aqueles que balizam os shopping-centers. Portanto, a vida urbana que está suposta nesses espaços centrais de São Paulo, e que é elogiada e potencializada pelo novo Sesc 24 de Maio, com seu térreo público, é a vida do pedestre que usufrui da cidade como um lugar de encontro aberto ao acaso, às experiências imponderáveis, e não como um destino de circulação motorizada, higienizado pela segurança, e blindado pelo consumo.

Guilherme Wisnik é professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Crítico de arte e arquitetura, é autor de livros como Lucio Costa (2001), Caetano Veloso (2005) e Estado crítico: à deriva nas cidades (2009). É membro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), da Latin American Studies Association (LASA) e vice-diretor do Centro Universitário Maria Antônia (USP)