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Receita para avançar na fusão e animar a festa do jazz

Stephen Brunner, o Thundercat. (Foto: Érika Mayumi)
Stephen Brunner, o Thundercat. (Foto: Érika Mayumi)

Por Antonio Carlos Miguel 

Imaginemos um híbrido de dois dos mais influentes baixistas dos anos 1970, o mestre do jazz fusion Stanley Clarke e o finado líder da banda progressiva Yes Chris Squire, adicionemos algumas pitadas do funk psicodélico e do histrionismo de Bootsy Collins, e estaremos perto de uma definição para o perfil artístico de Stephen “Thundercat" Brunner. Com essa receita para Monstro de Frankstein musical algum botar defeito, liderando um poderoso power trio completado por Dennis Hamm (teclados) e Justin Brown (bateria e vocais), o baixista, cantor e compositor de 32 anos segurou e encantou por cerca de uma hora e 45 minutos o público que, na noite de ontem, lotou a Comedoria do Sesc Pompeia.

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O baixista americano abriu a segunda semana do festival Jazz na Fábrica. (Foto: Carol Vidal)

Um dos concertos que abriu a segunda semana do Jazz na Fábrica, enquanto, no Teatro, apresentava-se a Globe Unity Orchestra (que, hoje, às 21h, volta ao mesmo palco), Thundercat amplia ainda mais o conceito e as fronteiras do jazz fusion. Fusão garantida em grande parte pelo já respeitável e eclético currículo dele, que inclui cerca de uma década na banda (igualmente híbrida) de metal-funk-punk Suicidal Tendencies, discos e turnês com a cantora de soul & hip-hop Erykah Badu, o rapper Snoop Dogg, o saxofonista e compositor Kamasi Washington e o cantor de rap e r&b Kendrick Lamar.

O repertório do show de ontem, que também terá segunda dose nesta sexta, esteve concentrado principalmente nas 23 faixas do terceiro álbum solo de Thundercat, Drunk. Lançado em fevereiro deste ano, coproduzido por outro artista contemporâneo que vem quebrando barreiras estilísticas, o DJ Flying Lotus, o disco chegou ao sexto lugar da parada de r&b. Sucesso e diversidade em parte garantidos pelo diversificado elenco de colaboradores que participou das sessões de gravação, incluindo o já citado Kamasi Washington, o orquestrador Miguel Atwood-Ferguson, e ainda cantores como os veteranos Michael McDonald e Kenny Loggins e os contemporâneos Pharrell Williams e Kendrick Lamar.

Reproduzir ao vivo, apenas num trio, o mosaico musical conseguido com tanta gente num estúdio não é tarefa fácil, mas, os três mostraram saber o caminho das pedras sonoras, trocando a diversidade pela intensidade. Com seu baixo de seis cordas, o canto em falsete e o figurino chamativo - cabelo pintado de vermelho sob o boné, legging amarelo com lista vertical azul e jaqueta escura -,Thundercat é o centro das atrações, só que muito bem escoltado pelo tecladista Dennis Hamn, que se alterna nos solos, e pelo estupendo baterista Justin Brown, este, o motor propulsor fundamental para a pressão mantida através da noite, e que em muitos momentos também reforça o canto fazendo a segunda voz.


O bateirista Justin Brown. (Foto: Érika Mayumi)

Como cantor, Thundercat segue uma linha que, na música soul, teve como pioneiros Marvin Gaye e Donny Hathaway, passou por Michael Jackson e Prince ou mesmo o brasileiro Ed Motta e chega até contemporâneos como Bruno Mars. Mas, sem a mesma abrangência timbrística desses exemplos, abusa do falsete. Redundância que é compensada pelo instrumental, em canções que se parecem e servem de base para os grooves hipnóticos e os solos nos quais técnica e virtuosismo dão as caras.


Thundercat solando. (Fotos: Carol Vidal)

Após noventa minutos essa é uma receita que pode levar à exaustão, mas, através da noite, o público paulistano deu várias provas de que estava aprovando e chamou o trio de volta ao palco para mais um número, que se estendeu por quase dez minutos. Antes desse bis, em meio a euforia que é uma das marcas de sua música, Thundercat dedicou uma canção às vítimas do atentado de ontem em Barcelona. Durante o show, além dos elogios de praxe, e sinceros, ao Brasil, ele já tinha agradecido à plateia pela recepção calorosa e, ao sair, estampava a sensação de dever cumprido.

Jazzistas ortodoxos podem até torcer o nariz, mas, há décadas que o gênero se abriu em muitas correntes, até antagônicas entre si. Já nos anos 1940, o bebop escandalizava aos que se apegavam ao estilo Dixieland nascido nos bordéis de New Orleans ou mesmo ao swing que, nos 1930, imperou como a música mais popular dos Estados Unidos. O jazz fusion, que viveu seu apogeu nos anos 1970, tinha virado saco de pancada da crítica, em parte com razão, dada a exaustão de sua fórmula. Mas, sobreviveram à peneira do tempo trabalhos como os dos grupos Return to Forever (com, entre outros, o pianista/tecladista Chick Corea e o baixista Stanley Clarke) e Weather Report (do tecladista Joe Zawinul e do saxofonista Wayne Shorter, por onde passou outra forte referência de Thundercat, o finado baixista Jaco Pastorious), assim com as fases elétricas-eletrônicas de Miles Davis e Herbie Hancock. Sim, pode ser muito cedo para cravar que Stephen Bruner terá um lugar garantido nessa galeria de mestres, mas, pelo que mostrou em seus discos e, agora, em sua participação no Jazz na Fábrica, ele está procurando seu próprio caminho. E animando a festa.

Antonio Carlos Miguel é jornalista e crítico musical, mantém uma coluna no site G1. 

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O baixista conversou com a Eonline no camarim momentos antes de entrar no palco. Assista:

Veja as fotos do show de Thundercat no Jazz na Fábrica:

sescsp.org.br/jazznafabrica