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Caos organizado para abrir as mentes e viajar pelo universo dos sons

O pianista alemão Alexander Von Schlippenbach, líder da Globe Unity Orchestra. (Foto: Carol Vidal)
O pianista alemão Alexander Von Schlippenbach, líder da Globe Unity Orchestra. (Foto: Carol Vidal)

Por Antônio Carlos Miguel

Se pensarmos numa linha evolutiva do centenário jazz, o estilo free, nascido na virada dos anos 1950 para os 60, foi o último degrau. Caminhando lado a lado com a vanguarda clássica da época, pós-dodecafonismo, que também avançou além dos limites e dos parâmetros do que se conhecia como música. Movimento radical, sem concessões comerciais, indigesto para muitos, que, entre outros efeitos, provocou um afastamento do grande público, mas nunca abriu mão de seus ideais estéticos. Desde então, outras tendências podem ter surgido, mas, quase sempre abrindo rotas paralelas ou mesmo regressivas, sem avançar nas conquistas formais e nas viagens sem plano de voo definido que caracterizam os improvisos do free jazz. Para quem está aberto ao inesperado é fascinante experiência, como o público paulistano pode vivenciar nas noites de quinta-feira e ontem, no Teatro do Sesc Pompeia, durante as apresentações da Globe Unity Orchestra.

Por cerca de 70 minutos, num único tema sem interrupção, a big band liderada pelo pianista alemão Alexander Von Schlippenbach criou a partir do nada. Como, após o concerto de ontem, contou o trompetista Célio Barros (brasileiro que vive há dois anos na Noruega e, junto Thomas Rohrer, foi um dos convocados para se unir ao grupo para os concertos no Jazz na Fábrica), Von Schlippenbach não apresentou tema base algum para ser desenvolvido. Também nada de linha melódica ou marcação rítmica definidas, apenas alertou os músicos que abriria a apresentação ao piano com toques minimalistas e ralentados, sons e pausas. A partir daí a criação livre e coletiva se desenvolve, em movimentos circulares, indo do silêncio à cacofonia, mundos sonoros nascendo e morrendo. Estímulos que, dependendo da sensibilidade de cada ouvinte, podem traduzir o caos contemporâneo ou interpretar o Big Bang que detonou a expansão do Universo. Delírios? Talvez, mas essa é também uma das funções da arte e, fiel à música sem amarras feitas pelos grandes nomes do free jazz, a Globe Unity Orchestra sonha alto e leva junto aqueles que embarcam com a mente aberta nessa viagem.


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Von Schlippenbach e o baterista Oliver Steidle. (Foto: Carol Vidal)

Às 21h10m de ontem, com Von Schlippenbach e o baterista Oliver Steidle no centro do palco e um naipe de dez sopros formando uma parede junto à uma das laterais do teatro, a invenção começa. Piano e, logo em seguida, bateria dão os primeiros estímulos e, aos poucos, saxofones, trompetes, clarinetas, trombones vão encorpando as camadas sonoras. Através da apresentação os músicos de sopro - Gerd Dudek (sax soprano e tenor e clarinete), Henrik Walsdorff (sax alto), Rudi Mahall (clarinete e clarinete baixo), Axel Dörner (trompete), Ryan Carniaux (trompete), Manfred Shoof (trompete), Christof Thewes (trombone), Gehard Gschlössl (trombone), Célio Barros (trompete) e Thomas Rohrer (trompete) - se alternam em solos, desenvolvem temas paralelos, entram em rota de colisão, parecendo duelar ou cruzar caminhos. Um dos saxofonistas sai da formação em parede e sola junto a um dos poucos microfones instalados em frente ao piano e à bateria; outros músicos se movimentam, até que os dez estão espalhados, ocupando todo o palco, rodando a esmo em volta do núcleo formado pelo pianista/maestro e pelo baterista. 

É uma coreografia que traduz em movimentos no espaço cênico o efeito caótico gerado pelos sons produzidos. De alguma forma, tal concepção permite um paralelo com os primórdios do jazz em New Orleans, em tradição que se mantém viva até hoje nos cortejos dos funerais que tomam as ruas da cidade puxados pelas bandas metais e sopros. Só que no lugar de uma marcha em linha reta rumo ao cemitério, este é um cortejo desconstruído, errático, como que flagrando os primeiros momentos após a tal explosão que gerou a vida. 

Ainda entre os (mundos sonoros) paralelos possíveis, a música livre de Hermeto Pascoal é outro deles, só que no caso do alagoano-universal, trata-se de uma invenção que parte da brasilidade natural e muito presente.

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A big band conta com quase dez instrumentistas de sopro. (Foto: Carol Vidal)

Através dos 70 minutos apresentados pela Globe Unity, zoeira e cacofonia se alternam com pausas, em trechos mais intimistas, apenas com o piano e leves intervenções da bateria, quando os dez instrumentistas de sopro voltam a formar a parede na lateral do teatro. Se houvesse uma partitura ou um mapa registrando música e movimentação cênica, o desenho seria circular ou em espiral, um indo e vindo constante, sempre tentando expandir os limites conhecidos. Até o grande final, quando Alexander Von Schlippenbach sai do piano e caminha até a frente da parede humana para reger a saída. Quem experimentou até o fim - ontem, com cerca dos 70% de seus 700 lugares ocupados, foram poucos os “desertores” -, saiu revigorado pela catarse sonora.

Ainda segundo o que contou Célio Barros após o concerto, a movimentação dos músicos também varia conforme o ambiente. Dois dias antes, durante a passagem do som, ao conhecer o inusitado formato do Teatro do Sesc Pompeia - o palco no centro, com plateias à esquerda e à direita -, é que o grupo definiu como captar o som, com poucos microfones, usando da acústica natural, e como se espalhar no ambiente. Poucas regras estabelecidas e muita liberdade de criação. Isso é free jazz!

Antonio Carlos Miguel é jornalista e crítico musical, mantém uma coluna no site G1. 

 

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